• Nenhum resultado encontrado

O ADENSAMENTO DA DISCUSSÃO NOS SÉC XVI E XVII: VINCULATIVIDADE JURÍDICA DA PROMESSA – JUSTIÇA COMUTATIVA VS

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 57-64)

C O DIREITO CANÓNICO : EM PARTICULAR , A INFLUÊNCIA DE A QUINAS

3.1.2. O ADENSAMENTO DA DISCUSSÃO NOS SÉC XVI E XVII: VINCULATIVIDADE JURÍDICA DA PROMESSA – JUSTIÇA COMUTATIVA VS

LIBERALIDADE

Os juristas medievais desenvolveram bases sólidas teóricas interpretativas dos textos romanos em conjunção com os velhos pensamentos filosófico-jurídicos aristotéticos até então postos de parte. De maneira reflexa e imediata – e maioritariamente a propósito da causa civilis obligandi – esta contaminação do

pensamento filosófico no sistema jurídico (re)abriu a discussão sobre a vinculatividade jurídica das declarações promissórias. A ideia que tinha ficado presente nos textos dos juristas medievais mais antigos era a de que as obrigações emergentes em declarações promissórias se tornavam vinculativas se houvesse

causa, que, para este efeito englobava as ideias liberalidade e contrapartida. Por um lado, a doutrina jusnaturalista de AQUINO veio assentar a dicotomia

entre o direito natural e o direito positivo, dicotomia essa que tinha sido ao de leve pincelada por ARISTÓTELES, atribuindo-lhe, porém, outro significado. Para aquele

autor, os indivíduos encontram-se obrigados a cumprir as suas promessas pelo simples facto de estas derivarem do direito natural e não de normas jurídicas positivadas em textos e documentos oficiais, variáveis em função de critérios espaço-temporais. Por outro lado, a teoria da causa de BARTOLUS, encontrou uma

justificação para a ilicitude do incumprimento de declarações promissórias. In

tribus verbis, estas duas inferências são usualmente identificadas como justiça comutativa e (pura) liberalidade184. Também como tinha já definido ARISTÓTELES

na obra Nicomachean Ethics, existe justiça comutativa (voluntária) se as partes tivessem elaborado uma transação assente em critérios equitativos; ela seria justa sempre que aquilo que se dava correspondia em termos valorativos àquilo que se recebia185. De igual modo, o ato era dotado de liberalidade sempre que ele fosse

184 HOGG, Promises and Contract Law, p. 118.

185 Os contratos de função económico-social de troca correspondiam aos paradigmas da justiça comutativa (GORDLEY, Foundations of Private Law, pp. 361 e ss.; “Contract Law in the

dotado de virtude– dar à pessoa certa a quantidade adequada de dinheiro na altura ideal186. É de notar que Nicomachean Ethics não é um texto de pendor jurídico:

trata, isso sim, das virtudes humanas, sendo uma delas a virtude da “promessa- vinculativa”187. AQUINO relacionou os conceitos de liberdade e justiça

comutativa188 considerando que não é só meramente ilícito, mas igualmente

injusto, o incumprimento de uma promessa vestida – e investida – de pura liberalidade: enquanto que os critérios de justiça comutativa relacionam o indivíduo horizontalmente com os seus pares e com a sociedade, o ato de pura liberalidade relaciona-o internamente com ele próprio e, em última análise, verticalmente, com DEUS. Desde o séc. XII que o direito privado canónico se

distanciou do direito privado romano, nomeadamente através da inclusão de princípios morais e fundamentos de direito natural. Tal distanciamento afetou naturalmente a parte relativa à vinculatividade das declarações promissórias189. A

comunhão entre a teoria da causa dos glosadores e comentadores com os pensamentos aristotélico-tomistas constituíram o primeiro indício doutrinário da clivagem teórica entre as promessas unilaterais e os contratos190.

Aristotelian Tradition”, p. 297). Segundo o filósofo grego, a justiça distributiva garantia ao cidadão uma justa quota-parte da riqueza e da honra que a sociedade tinha para dividir; a justiça comutativa tinha exatamente por objeto a preservação dessa mesma quota-parte (ARISTÓTELES,

Nicomachean Ethics, Cap. V, 2, 4 e 5). Como corolário, a redistribuição da riqueza e da honra baseada na justiça comutativa deveria transferir os valores de forma equitativa o que significava, por sua vez, que após transação, a soma dos valores distribuídos pelos cidadãos se manteria inalterável. Neste sentido, pode concluir-se que a justiça comutativa realterava os tipos e as quantidades valorativas (associadas a cada tipo) individualmente consideradas, sem nunca mexer na quantidade do universo abstratamente distribuível nem na quantidade dos valores efetivamente atribuídos aos cidadãos. Para desenvolvimentos, GORDLEY, The Philosophical Origins of Modern

Contract Doctrine, pp. 65-7 e 94 e ss.

186 ARISTÓTELES, Nicomachean Ethics, Cap. V, 4 e 5.

187 GORDLEY,“Contract Law in the Aristotelian Tradition”, p. 266. 188 GORDLEY, Foundations of Private Law, pp. 292-97, 352.

189 LESAFFER, “Medieval cannon law and early modern treaty law”, pp. 182-3.

190 ZIMMERMANN, The Law of Obligations, p. 551; GORDLEY, “Natural Law Origins of the Common Law of Contract”, pp. 372-82; GORDLEY, The Philosophical Origins of Modern

Estas são, resumidamente, as bases históricas da discussão renascentista e pós-renascentista sobre os atos unilaterais auto-vinculativos que foi encabeçada primeiramente pelo canonista dominicano TOMASSO DI VIO, também conhecido

por TOMÁS CAETANO, e que perduraram até ao período moderno nos sistemas

jurídicos continentais europeus. Em sede de comentários à Summa Theologicae, CAETANO vincou as ideias de AQUINO, afirmando que o beneficiário de uma

promessa unilateral baseada num ato de liberalidade não poderá exigir o seu cumprimento com base em princípios de justiça comutativa191. AQUINO tinha

colocado em planos normativos diferentes as obrigações morais (debitum morale) e as obrigações jurídicas (debitum legale): enquanto estas são baseadas nas virtudes da própria justiça, aquelas respeitam a virtudes justapostas à ideia de justiça192. E são exatamente as virtudes da justiça que estão intrinsecamente

acopladas, por sua vez, à ideia de equidade patrimonial inter-partes. Aproveitando esta clivagem, CAETANO distinguiu a ideia de equidade patrimonial da equidade

moral, concluindo que o desvalor para aquela será entendido como um ato

juridicamente ilícito e para esta, um ato moralmente injusto, ou seja, a vinculação é juridicamente eficaz no plano jurídico para aqueles atos de natureza comutativa e eficaz no plano moral para atos de pura liberalidade193. No ponto de vista de

CAETANO, a inadimplência do promitente não coloca o beneficiário numa posição

pior do que estaria se a prestação tivesse sido efetuada, o que não sucede no caso de existir uma contrapartida194. Porém, poderia exigir o cumprimento se houvesse

a afetação patrimonial no beneficiário195. Esta posição comporta implicações

191 Assim, CAETANO, Commentaria, n.º 35, II-II, Q. 88, art. 1; Q. 113, art. 1; Cfr. GORDLEY, The

Jurists: a Critical History, p. 96; The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, p. 73. 192 AQUINO, Summo Theologiae, questão 8, artigo 1.

193 GORDLEY, Foundations of Private Law, p. 293. É de realçar que a interpretação a contrario deste facto mantém-se verdadeira.

194CAETANO, Commentaria, ibid.

195 GORDLEY,“Contract Law in the Aristotelian Tradition”, p. 327; The Jurists: a Critical History, p. 96. Para CAETANO, toda esta discussão era referente a declarações promissórias unilaterais com vista à entrega de uma coisa, ou seja, baseadas na datio (em sentido amplo) – corresponde, grosso

modo, à expressão inglesa promise of gifts. Já LESSIUS discutia a mesma questão alargando o argumento para as promessas em geral, incluindo promessas umbilicalmente conexas a uma

imediatas na datio, no sentido de reforçar uma ideia que se extraia diretamente nos textos romanos segundo a qual a traditio era a única forma de transferência de propriedade sobre uma coisa se função económico-social fosse a liberalidade.

Outros juristas acompanharam com agrado as revolucionárias teses de CAETANO, tal como aconteceu com o francês FRANCISCUS CONNANUS que veio

ainda reforçar a noção da vinculação promissória através de outros dois fatores que, segundo CONNANUS, também deveriam ser tidos em conta para a constituição

de atos promissórios vinculantes: (i) a seriedade por parte do promitente, e (ii) a

prudência do beneficiário196. Fácil é de notar que ambos estes elementos tocam

em elementos subjetivos e, segundo CONNANUS, eram subcategorias da

reciprocidade negocial: apenas as promessas dotadas de reciprocidade eram, de facto, juridicamente vinculativas. Esta visão doutrinária foi sujeita a muita contestação pelos académicos, juristas e canonistas da época, de entre os quais se destacaram os escolásticos salamanquinos da escola de direito natural (em especial, DOMENICUS SOTO, LUÍS DE MOLINA e DIEGO DE COVARRUBIAS).

MOLINA, também ele partindo da análise da datio, criticou a solução apontada por

CAETANO questionando a necessidade da traditio para a transferência de

propriedade da coisa. Segundo MOLINA, o que verdadeiramente importa é o animus obligandi, bastando a enunciação de declarações promissórias para a emergência de promessas gratuitas197. O animus obligandi assumia-se como

condição essencial para a constituição de uma obrigação, seja jurídica ou moral; o problema que se podia colocar era se o efeito pretendido pelo promitente implicava ou não uma datio; se não houvesse animus, a obrigação emergente da promessa era vinculativa apenas plano moral por motivos de honestidade e de honra, e não por motivos de justiça198.

contrapartida (GORDLEY, Foundations of Private Law, pp. 292-97, 352; HOGG, Promises and

Contract Law, p. 118).

196 CONNANUS, Commentariorum, I, 6, V, 1.

197 GORDLEY, The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, p. 74. 198 MOLINA, De iustita et iure tractatus, 262.

O jesuíta LEONARDUS LESSIUS também criticou as ideias de CAETANO,

distanciando-se, contudo, de MOLINA. LESSIUS definiu, no entanto, o conceito de

promessa de forma concordante com o escolástico salamanquino ao referir que “prometer não é meramente afirmar que se vai entregar ou fazer alguma coisa a alguém, mas para além disso, é obrigar-se perante essa pessoa, conferindo-lhe um direito à prestação199”. O seu desentendimento com CAETANO tinha que ver com

as implicações da teoria do incumprimento nas promessas que não se fundavam em critérios de justiça comutativa. LESSIUS afirmava que as posições de CAETANO

e de CONNANUS levariam a uma desvinculação aleatória das promessas

gratuitas200. A definição de promessa por si proposta acabava por ultrapassar o

problema de CAETANO, atribuindo-lhe natureza comutativa, distorcendo o

conceito tal como fora desenhado por ARISTÓTELES. Defendeu a ideia de que todas

as promessas eram vinculativas independentemente do facto de o direito romano prever formalismos para certos atos gratuitos de forma a permitir uma prévia ponderação à prática do ato dispositivo201. A partir do séc. XVI, os juristas

começaram por admitir três situações segundo as quais não seria necessário o registo da promessa unilateral de uma prestação baseada em atos puramente liberais: promessas ad causas pias (promessas por motivos de caridade); promessas ad nuptias vel propter nuptias (promessas à futura contraparte ou a terceiros no âmbito da celebração de casamento); a donatio remuneratoria (promessa de recompensa)202. É aqui que surge o seu distanciamento perante a

doutrina de MOLINA:LESSIUS assenta a sua argumentação na irrelevância jurídica

da liberalidade porquanto todas as promessas se baseiam na lógica da justiça comutativa.

199 LESSIUS, De iustitia et iure, Cap. 18, 8, 52. 200 HOGG, Promises and Contract Law, p. 118.

201 LESSIUS, idem; GORDLEY, The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, p. 74. 202 Para desenvolvimentos, GORDLEY, Foundations of Private Law, pp. 355 e ss. No que respeita a esta última situação, o escolástico salamanquino defendia que estes casos não configuravam uma doação, pois estaria sempre em causa uma contrapartida por um determinado ato positivo ou negativo – MOLINA, De iustita et iure tractatus, 278, n.º 3.

LESSIUS, MOLINA e SOTO foram os primeiros juristas que escreveram que

as meras enunciações de promessas unilaterais de uma prestação eram constitutivas de um direito de crédito do lado do beneficiário e foram, outrossim, os primeiros juristas a colocar a questão da exigibilidade do ato unilateral de aceitação por parte deste, como requisito de eficácia da promessa203. Esta tese foi

obtida após breves reflexões sobre dois temas: (i) a necessidade comunicativa da declaração promissória como elemento constitutivo da promessa e (ii) a exigibilidade de aceitação do beneficiário. Quanto ao primeiro, SOTO e MOLINA –

apoiados porAQUINO – entendiam que, enquanto o direito positivo requeria um

ato comunicativo externo, já o direito natural não compreendia tal exigência. O próprio silêncio poderia produzir efeitos auto-vinculantes204. LESSIUS,

contrariando MOLINA, defendia que a visão deste autor era impraticável porque

seria impossível, de um ponto de vista prático-jurídico, saber com a precisão adequada quando e como se constitui uma obrigação proveniente de uma promessa que não é exteriorizada205. Já no que respeita ao segundo tema, LESSIUS defendeu

que a aceitação era condição de eficácia da promessa206-207. Para além da

necessidade de exteriorização ao beneficiário, este tinha impreterivelmente de

aceitar a promessa para que a obrigação fosse juridicamente eficaz. Segundo o jurista, esta seria a única forma de explicar que, aquando da celebração de

contractus (hic: onerosos), o promitente poderia sempre desvincular-se da prestação prometida antes do ato de aceitação. A posição de LESSIUS constituiu

uma das bases históricas da teoria da proposta-aceitação (“offer-acceptance”)208.

203 Os juristas romanos nunca trataram este tópico de forma precisa e sistemática (vide GORDLEY,

The Enforceability of Promises, p. 14).

204 HOGG, Promises and Contract Law, p. 119. 205 LESSIUS, De iustitia et iure, Cap. 18, 15.

206 GORDLEY, The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, p. 80. 207 LESSIUS, De iustitia et iure, cap. 18, 8.

208 Assim, GORDLEY, The Enforceability of Promises, p. 14; HOGG, Promises and Contract Law, p. 119

MOLINA209, SOTO210 e COVARRUBIAS211, por seu turno, escreveram no

sentido oposto: todas as promessas são juridicamente vinculativas independentemente da aceitação por parte do beneficiário. Outro entendimento seria contrário à doutrina anteriormente referida relativa à desnecessidade de exteriorização do ato promissório. A posição de MOLINA era a de que o promitente

se encontraria vinculado à prestação simplesmente porque a promessa seria eficaz do ponto de vista jurídico após enunciação externa ou interna. O autor fundamentou a sua conclusão com o exemplo clássico da pollicitatio cuja eficácia não estaria dependente de qualquer aceitação212, concluindo que enquanto os contractus onerosos estão sujeitos a aceitação, já os contractus gratuitos vigoram independentemente desse ato (negócios unilaterais). LESSIUS respondeu às críticas

de MOLINA afirmando que as suas teorias relativas à condição de eficácia da

promessa na pollicitatio eram incompatíveis com a exigibilidade desta obrigação no ius romanum. A consequência jurídica era apenas uma: a irrevogabilidade da

promissio213.

209 De iustitia et iure, 263.

210 De iustitia et iure, livro 3, q. 5, art. 3.

211 Variarum ex iure pontificio, regio et caesareo resolutionum, p. 2, §2.

212 MOLINA tinha plena consciência de que tal instituto jurídico-romano emanava do direito positivo. De forma a ultrapassar a questão de saber se a exigibilidade de aceitação provinha do direito natural, MOLINA entendia que o direito positivo não poderia abrir afluentes desconexos

com as bases do direito natural sempre que o resultado provocasse uma injustiça desnecessária. Assim, assumindo a premissa de que o ius romanum partia de valores de justiça, seria injusta a inexigibilidade da prestação da pollicitatio perante o direito natural já que o direito positivo atribuía eficácia à promissio sem aceitação (MOLINA, De iustitia et iure, 263). É de notar que MOLINA nunca discute o inverso – a ineficácia da promessa da pollicitatio não-aceite – partindo

sempre do pressuposto de que a eficácia de um determinado ato jurídico é resultado da aceitabilidade implícita das fontes legais.

213 LESSIUS, De iustitia et iure, cap. 18, 6. Em seguida, o autor tratou da questão de saber qual o momento a ser considerado para efeitos de aceitação da promessa. Na medida em que a aceitação é condição sine qua non de eficácia, o momento deve partir da perspetiva do promitente. Para o efeito, distinguiu consoante a natureza onoerosa ou gratuita do ato: se for oneroso, o promitente só se quer vincular após o conhecimento da aceitação; se for gratuito, a sua intenção auto- vinculativa existirá ainda antes dessa aquiescência (LESSIUS, ibid)

3.2. PENSAMENTO JURÍDICO INGLÊS: A ASCENSÃO E QUEDA DA PROMESSA

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 57-64)