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N ECESSIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM MODELO JURÍDICO LINGUÍSTICO

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 109-115)

P ARA UMA TEORIA DA PROMESSA

1. N ECESSIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM MODELO JURÍDICO LINGUÍSTICO

À primeira vista, a ideia de promessa não parece levantar especiais problemas. É indiscutível que a larga maioria dos indivíduos, independentemente da sua cultura, religião, grau educacional ou idade, consegue apresentar uma definição relativamente correta do que significa “prometer determinada coisa a alguém”. Isto é o resultado de um enraizamento profundo desta figura no quadro dos atos comunicativos que, durante milénios, não sofreu mutações concetuais ou amadurecimentos axiológicos. Como vimos, a História das ideias promissórias demonstra que a mutabilidade dos valores apoiados nas macro-estruturas sociais, políticas, económicas e culturais, jamais afetou a ideia de promessa: a questão apenas se punha quanto à sua eficácia jurídica. Esta invariabilidade concetual não se confunde com os efeitos jurídicos a ela inerentes porquanto estes são uma circunstância exógena a tal imutabilidade. A promessa assume-se como uma poderosa ferramenta responsiva no que toca aos mais diversos problemas da vida, tais como resolução pacífica de conflitos (sejam inter-estaduais, meta-estaduais ou inter-individuais), a atribuição de direitos (ou abrir a possibilidade jurídica de transferência de direitos e bens), a consolidação de relações sociais, ou até se apresentando como meio de comunicabilidade entre o ser humano e o divino. O

uso quotidiano da promessa em diferentes contextos e propósitos evidenciou-a como o mais importante fenómeno comunicativo de natureza auto-vinculativa.

As diversas manifestações da promessa vêm acompanhando o ser humano antes mesmo do nascimento de uma consciência normativa social. Ela esteve sempre presente nos dois tipos morfológicos inter-relacionais que eu denomino por estruturas promissórias verticalizadas e horizontalizadas. A estrutura vertical consiste na relação do ser humano com o divino e pode ser dividida em duas sub- modalidades consoante o movimento em que são produzidas em função do papel de cada interveniente: (i) no sentido ascendente, relações humano-divinas, nos termos das quais o indivíduo se coloca na posição de promitente e a divindade se assume como promissário ou beneficiário e, inversamente, (ii) no sentido descendente, relações divino-humanas em que é a própria divindade a fazer a promessa e o indivíduo – ou a coletividade – a posicionar-se como beneficiário da mesma437-438. As promessas ancestrais de estrutura vertical tiveram um papel

preponderante no desenvolvimento do valor da palavra e na relevância do conceito de honra, contaminando relações promissórias de estrutura horizontal até à atualidade. Estas, por seu turno, consistem na relação estabelecida entre pessoas –

437 Neste âmbito, “promessa” ou “juramento” são ambos sinónimos. No que toca o segundo termo, a tradução para a língua inglesa compreende duas palavras: “vow” e “oath”. Não há consenso nos juristas anglófonos quanto ao escopo de cada um destes vocábulos. HOGG define “vow” como a

promessa feita a DEUS (estrutura vertical no sentido ascendente) e “oath” como uma declaração

auto-vinculante, feita por um indivíduo, expressada perante outros, nos termos da qual DEUS é

chamado a testemunhar a sinceridade de tal declaração, mas em que não há necessariamente a identificação de um beneficiário da promessa (HOGG, Promises and Contract Law, p. 39). Por

seu turno, é possível encontrar certas passagens em ATIYAH segundo as quais o autor utiliza o termo “vow” no sentido de auto-promessa (“vow to oneself”) (ATIYAH, Promises, Morals and

Law, p. 54).

438 As promessas divinas (estruturas verticais de sentido descendente) são muito comuns nos textos bíblicos, em particular no Antigo Testamento, onde se pode encontrar diversas referências à palavra dada por DEUS. Veja-se a promessa feita a DAVID (Salmo 89 – Poema da coleção de

Etan, natural de Canãa: “(…) Tu (DEUS) dizes: fiz um pacto com o meu escolhido, / fiz uma

promessa ao meu servo David: / a tua descendência continuará para sempre / e o teu trono manter-se-á eternamente” – AA.VV., Bíblia Sagrada, p. 643) ou com a promessa a ABRAÃO da

Terra Prometida (Génesis, 12, 1-4; “O Senhor disse a Abraão: Deixa a tua terra, os teus parentes

e a casa do teu pai e vai para a terra que eu te vou mostrar. Farei de ti um grande povo; hei-de abençoar-te e tornar-te famoso. O teu nome será uma bênção.” Génesis, 12, 7: “(...) “Vou dar

pessoas singulares ou coletivas – onde se situam as promessas juridicamente relevantes.

Quando abordei a temática evolução das ideias promissórias, realcei a sua presença numa panóplia de funções e integrações normativas: desde a inserção da

promissio na stipulatio romana até à discussão (quase) eterna na Europa continental sobre a eficácia da promessa nos diversos planos ontológicos, sem nunca esquecer a identificação do seu papel de “anti-herói” nos sistemas jurídicos de common law. Evitei sempre tocar na problemática conceitual, assumindo-a como garantida. Chegou a hora de abordá-la com o detalhe adequado.

Na ordem normativa, é no quadro das teses voluntaristas jusnaturalistas de GROTIUS que surge a primeira definição. Em De jure belli ac pacis, separou os

conceitos de “promessa” e “aceitação” que, até ao momento, constituíam uma

unidade ontológica: só era concebível falar em promessa se existisse num outro pólo o ato de a aceitar439. Espremida, a noção de GROTIUS de promessa assenta em

três elementos característicos: (i) declaração que exprima a vontade presente e sincera de praticar ou abster-se de praticar um ato futuro; (ii) expressão de credibilidade; (iii) intenção de atribuição de um direito a outrem. Mais tarde, HUME discorre sobre as obrigações decorrentes de promessas sem qualquer alusão

à sua noção440. Mas como indica PITSON, o texto de HUME consagra

implicitamente os elementos fundamentais do conceito de promessa propugnados no séc. XX pelos filósofos analíticos, em particular, pela filosofia da linguagem441.

Nunca antes a Filosofia tinha tratado da teoria da linguagem como método filosófico-científico442. Ela foi responsável pela “descoberta”443 e pelo primeiro

439 Esta unidade ontológica foi dogmaticamente conceptualizada séculos atrás, no período intermédio, através dos glosadores, pós-glosadores e canonistas.

440 HUME, A Treatise on Human Nature, Livro III, Parte II, Secção V. 441 PITSON, “Hume on Promises and their Obligation”, pp. 176 e ss.

442 SEARLE, Intentionality, ix; “Interview: Von der Sprachaktheorie zur Intentionalität”, p. 25; MULLIGAN, “Promisings and other Social Acts”, pp. 29 e ss.

443 MULLIGAN, considera as teorias promissórias “descobertas quase-científicas” (“Promisings and other Social Acts”, passim, em especial, §1). Não tenho dúvidas de que Direito é Ciência, compreendendo a adoção de uma metodologia e linguagem características, mas aquilo a que

grande desenho filosófico da ideia de promessa, tendo sido incrivelmente bem recebida pelos juristas de common law e evitada pelos de civil law444. Destacam-

se, entre muitos outros, os contributos dos juristas e filósofos, como REINACH,

ATIYAH, AUSTIN, VON WRIGHT, SOLJAR, FARNSWORTH e, principalmente,

SEARLE.

No que toca ao sistema jurídico diz respeito, é importante mencionar que a promessa está essencialmente ligada aos atos jurídico-declarativos que assumem, por sua vez, um desenvolvimento dogmático no quadro específico do direito civil, em especial, na teoria do negócio jurídico. O tratamento que os privatistas dão à figura da promessa reflete-se – e é refletido – na conceptualização que o ordenamento jurídico a consome. Nem todos os sistemas jurídicos desenvolvem as suas teorias do negócio jurídico com base numa equivalente ideia de promessa. Esta diferenciação é manifestamente visível quando se analisa a teoria do contrato. Por um lado, a tradição romanística – que constituiu historicamente a genesis dos sistemas jurídicos de civil law – foi atribuindo ao longo dos séculos diferentes graus de relevância e, bem assim, de conteúdo normativo: no direito romano tinha uma posição “terciária” 445, estando incluída nas figuras jurídicas da fides- promissio e da stipulatio (e pouco mais); no direito intermédio, sobretudo por

MULLIGAN define como “descobertas” não pode, de todo, ser equiparado ao modelo que é

transversal às ciências exatas. No Direito não se “descobre”; a “descoberta” jurídica é bicéfala:

(i) tanto pode inserir pela melhor interpretação e desconstrução de uma multiplicidade de figuras, institutos, princípios, regras (etc.) jurídicos, assentes numa base dogmática sólida (de jure

conditio), nos termos da qual se verificam impulsos e intromissões comunicativas de outros sistemas normativos, como também (ii) pode inserir pela busca de um melhor Direito (de jure

condendo). Em ambas as situações a função comunicativo-argumentativa constitui o modelo-base metodológico do desenho das premissas bem como da sua análise no período pré-conclusivo. Por este exato motivo é que “melhor”, não significa necessariamente ética ou moralmente mais justo ou judicativo, mas sim aquilo a que, de um ponto de vista profundamente racional, se exprime como a solução mais adequada ou idónea (nunca olvidando, como mencionei, manifestações sistémicas de outras ordens normativas). A descoberta jurídica é, na verdade, o descortinar da linha argumentativa e nada mais.

444 Com exceção, entre nós, de FERREIRADE ALMEIDA que, abraçando as teorias da linguagem como mecanismo interpretativo das estruturas textuais do negócio jurídico, dedica uma parte da sua (ainda) inovadora teoria precisamente à figura da promessa enquanto função eficiente (cfr. FERREIRADE ALMEIDA, Texto e Enunciado, I, §20, pp. 458 e ss.).

influência dos canonistas, foi ganhando relevância enquanto fonte obrigacional. Mas após a escola da Pandectas ter criado a teoria do negócio jurídico e nela ter incorporado a declaração negocial (Willenserklärung), a promessa, enquanto conceito jurídico autónomo e negocialmente estruturante – e não enquanto função eficiente –, foi incorporada por uma subcategoria do negotium juridicum: o negócio jurídico unilateral obrigacional (einseitige Rechtsgeschäft, e, dentro deste,

einseitige Versprechen). Por outro lado, sofreu uma dogmatização diferente nas famílias de common law, atravessando períodos de ascensão e queda. A ascensão resultou da influência desmesurada das raízes romanísticas; a queda, por seu turno, deu-se por “culpa” da doutrina da consideration em dirimi-la no eixo estrutural do

contract que, hodiernamente e em termos gerais, pode ser definido como promessa ou união de promessas446. A evolução histórico-comparativa das ideias

promissórias demonstra que a multiplicidade semântica do conceito de promessa nestas duas grandes famílias não é apenas um problema meramente lexical, mas mais do que isso, é um verdadeiro problema conceitual447; não é apenas uma

questão da teoria dos atos sociais como procurou demonstrar REINACH448, mas é,

outrossim, uma problemática inteiramente jurídica.

Na medida em que a ideia de promessa se encontra intrinsecamente ligada às relações sociais como um “norm-guided affair”449, mesmo quando consumida

pelo princípio do contrato ela nunca desapareceu por completo na linguagem

446 LERNER, “Promise of Rewards”, p. 58. Criticando este tipo de approach dogmático, LIGHTSEY, “A Critique of the Promise Model of Contract”, pp. 45 e ss.

447 Contra, FERREIRA DE ALMEIDA, Texto e Enunciado, I, pp. 462-4. 448 Refiro-me ao seu extenso artigo “Zur Phänomologie des Rechts” (1913).

449 HUSI, “Is Promising a Practice and Nothing More, Normatively Speaking?”, p. 109. Embora consiga acompanhar o raciocínio do autor, nomeadamente quando se reporta ao efeito meta- normativo da promessa, e bem assim quando trata da irrelevância da expressão “a promessa deve ser sempre cumprida” para efeitos de análise validativa, penso que os argumentos deHUSI partem

de uma premissa errada. Com efeito, discordo da sua posição quando escreve que “quando faço uma promessa estou, repentinamente, sujeito a determinados standards que me dizem o que devo fazer em seguida” (ibid.). Julgo que esta afirmação compreende uma certa confusão entre o enunciado da declaração promissória e os efeitos por ela pretendidos (função eficiente), efeitos esses que são atribuídos pela força ilocutória presente nesse mesmo enunciado.

jurídica das famílias de civil law450. Numa rápida viagem que se pode fazer pelo

Código Civil, é possível verificar alguns artigos cujo enunciado451 legal integra o

substantivo “promessa” ou o seu verbo, “prometer”. Tal alusão aparece em três dos cinco Livros do Código Civil, não existindo referência apenas no Livro III e no Livro V452. A invocação no texto legal da promessa não se reconduz unicamente

ao direito civil pese embora seja nele que a sua concetualização se encontra mais condensada453. O problema que se põe com a noção de promessa no contexto das

famílias de tradição romano-germânica, como sucede com o caso português, assenta no facto de a lei nunca a definir, não obstante a multiplicidade de invocações454. Esta ausência não poderá certamente resultar numa arbitrariedade

hermenêutica nem tão-pouco daí retirar-se a ilação segundo a qual a promessa não é um conceito jurídico455: todas as invocações têm necessariamente de conter um

significado próprio que é (ou, pelo menos, deve-ser) transversal. Tudo isto se torna ainda mais relevante quanto a própria lei indica que a promessa é, para todos os

450 Na língua inglesa, de acordo com a fonte www.wordcount.org, a palavra “promise” encontra- se na posição n.º 2525 do ranking das palavras mais usadas, num total de 86800 que, de acordo com a Lei de Zipf, é parte do main core das palavras mais usadas (para mais, SAICHEV et al.,

Theory of Zipf’s Law).

451Utilizo a palavra “enunciado” com o sentido atribuído pela filosofia analítica da linguagem. O termo é pouco usado na linguagem jurídica. Como pioneiro do termo neste campo específico de conhecimento, ROSS, na obra Directives and Norms.

452 Como exemplos, cfr. artigos 282.º, 457.º, 459.º, 410.º e ss., 214.º, 1591.º

453 O recurso a este termo encontra-se presente em diversas áreas do Direito – por exemplo, no Código do Trabalho (promessa de contrato de trabalho – artigo 103.º), no Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (promessa de contrato – artigo 106.º), no Direito dos Seguros (promessa de seguro – artigo 13.º do DL n.º 169/81, de 20 de junho), no Código Penal (no crime de corrupção passiva – artigo 373.º).

454 Mesmo nos ordenamentos jurídicos de common law ouvem-se algumas vozes no sentido de

procurar uma efetiva definição (jurídica) de promessa – assim procurou fazer ÁRDAL, “Ought we

Keep Contracts Because They Are Promises”, pp. 657 e ss.

455 Quanto a este segundo aspeto, entendo que a jurisdicidade concetual de um determinado termo no quadro do sistema jurídico não tem necessariamente de ser formulada pela noção expressa no texto legal: ela pode ser extraída, de forma implícita, do contexto normativo. Neste sentido, a ausência de uma noção genérica de promessa, leva – outrossim e paralelamente – o intérprete a fazer uso de mecanismos hermenêuticos cujo desenho conceptual pode ser encontrado, numa visão teubneriana, fora das fronteiras sistémico-específicas do Direito.

efeitos e devidos limites em função da lateralidade, uma fonte obrigacional inserida no quadro das fontes baseadas na autonomia privada.

Com efeito, pretendo fazer uma clivagem à figura da promessa, apresentando todos os seus elementos subjetivos e objetivos, textuais e meta- textuais, com particular destaque para a integração dogmática na temática dos atos jurídico-declarativos, em particular, na teoria do negócio jurídico unilateral como fonte de obrigações. As ferramentas analíticas que usarei serão extraídas das teorias da linguagem e do próprio sistema jurídico456.

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 109-115)