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S TAIR E O DESVIO DO DIREITO ESCOCÊS

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 88-92)

B F ORMS OF ACTION

3.4. S TAIR E O DESVIO DO DIREITO ESCOCÊS

O direito escocês merece destaque porque é único ordenamento jurídico em toda a Europa que mais bebeu da tese canónica de que todas as promessas unilaterais devem ser vinculativas. Esse legado perdura até aos dias de hoje. Por variadíssimos motivos históricos que não importam agora desenvolver349, o direito

escocês teve desde há muitos séculos uma forte ligação com os direitos de civil

law, motivo pelo qual se tornou num sistema jurídico híbrido. Foi influenciado pelo direito eclesiástico e pelas tradições romanísticas que constituíam objeto de

348 PUFENDORF, Elementorum jurisprudentiae universalis, I, XII, 12.

349 Para um aprofundamento, vide, inter alia, as seguintes obras coletivas: AAVv, An Introductory

Survey of the Sources and Literature of Scots Law; AAVV, New Perspectives in Scottish Legal

History. Para um desenvolvimento sobre o jusnaturalismo na “Alemanha”, AHRENS, Das

estudo pelas universidades estrangeiras e que formavam juristas escoceses350. No

período intermédio, encontram-se referências a glosadores e comentadores feitas pelos advogados perante os tribunais eclesiásticos. Conhecedores de toda a discussão sobre a vinculatividade da promessa que aquecia os palcos doutrinários da Europa continental, as influências de autores estrangeiros tornaram-se – num piscar de olhos – constitutivas de um grande afluente dogmático face ao – também insular – direito inglês351.

Desde o início do séc. XVII, com a criação da Grã-Bretanha através do

Treaty of Unity, que a Escócia é jurisdicionalmente autónoma352, vivenciando uma

progressão histórico-jurídica um tanto ou quanto antagónica em comparação com o percurso presenciado em Inglaterra. Enquanto que em solo inglês se procurou restringir o poder jurisdicional aos tribunais eclesiásticos (sendo um dos objetivos exatamente forçar a inexigibilidade jurídica das promessas unilaterais, contrariando as ideias canónicas), atribuindo mais poder ao common law, na Escócia, por sua vez, sucedeu uma fusão entre a jurisdição civil e canónica. Esta osmose veio introduzir no direito privado escocês a ideia de que a promessa é – a par com o contrato – fonte voluntária das obrigações. Na Escócia, a promessa sujeita à condição de aceitação chama-se “oferta”, tendo este ato como efeito a constituição de uma obrigação, transformando a figura da promessa num contrato – e, a promessa pura, sem necessidade de aceitação, é eficaz ab initio, desde que exteriorizada e comunicada353.

Este facto tornou-se substancialmente visível após o legado de JAMES

DARLYMPLE, mais conhecido por VISCONDE DE STAIR, influente jurista escocês

do séc. XVII. STAIR era conhecedor tanto da morfologia do direito inglês como

350 O jurista WILLIAM DE SPYNIE estudou arte e direito canónico em Paris e direito romano, provavelmente em Avignon (para mais exemplos,WATT, A Biographical Dictionary of Scots

Graduates to 1410). Note-se que só em 1413 é fundada a primeira Universidade (University of

St. Andrews).

351 E, por arrastamento colonial, ao direito norte-americano. 352 Cfr. Treaty of Unity, artigo 19.

dos direitos de civil law que contaminavam a Europa continental. Em The

Institutions of the Law of Scotland, na esteira de GROTIUS e PUFENDORF354,

construiu uma verdadeira teoria clássica da vontade, tecendo críticas à doutrina de CONNANUS ao defender a ideia de que as promessas gratuitas não constituem

apenas obrigações morais, mas compreendem constituições de vínculos obrigacionais juridicamente relevantes355. Apenas as promessas em que se

encontram vicissitudes quanto a pressupostos formais são vinculativas no plano moral – justificou esta conclusão com base nos valores da consciência e honestidade356. STAIR dedicou muito tempo à descrição e análise das instituições

do direito privado romano com o objetivo de criar paralelismos e harmonizar influências romanísticas no quadro do direito escocês357, distinguindo os discursos

dialogais dos monologais. Criou uma tripartição concetual de espécies promissórias: a promessa sob condição de aceitação (deupleiros), a promessa unilateral (monopleuros)358 e o caso especial da figura jus quaestium tertio

(estipulação a favor de terceiro).

STAIR arruma numa só gaveta os termos “pactum” (vestido), “contractus”,

“convenção” e “acordo”, afirmando que todos eles têm por base a ideia de consentimento359. A promessa condicionada à aceitação deve ser interpretada

como “oferta”: o ato de aceitação tem como efeito imediato a transformação da

354 Os jusnaturalistas tiveram uma maior influência direta no direito escocês do que no direito inglês (ATIYAH, Promises, Morals and Law, p. 13).

355 STAIR, Institutions, pp. 94-5.

356 Ibid. Acompanho a posição de HOGG quando defende que a alusão aos valores da honestidade por parte de STAIR relembra a teoria de ARISTÓTELES da promessa como ato linguístico fundado na verdade e honra (Promises and Contract Law, p. 135, nota de rodapé 124).

357 Curiosamente, STAIR faz uma única alusão ao instituto da pollicitatio nomeadamente quando elabora uma clivagem entre, por uma banda, a promessa e a pollicitatio e, por outra, o pactum, contrato e oferta (cfr. STAIR, Institutions, p. 91). Existe um debate aceso na Escócia no sentido de

interpretar esta referência à pollicitatio não como uma invocação do instituto romano na sua aceção originária, mas uma equiparação do conceito à noção contemporânea de promessa

unilateral (neste sentido apontam MACCORMACK, “A Note on Stair’s Use of the Term

Pollicitatio, pp. 121-6; CROSS, “Bare Promise in Scots Law”, pp. 138 e ss.). Ver também,

amplamente, GORDON, Roman Law, Scots Law and Legal History.

358 STAIR, Institutions, p. 92. 359 Idem, pp. 94-5.

declaração promissória num contrato (ainda que gratuito)360. Uma das grandes

novidades da teoria das obrigações de STAIR é a desnecessidade de causa ou consideration das declarações promissórias dos contratos gratuitos, requerendo-se tão-somente a aquiescência das partes361. Noutra prateleira, STAIR produz uma

doutrina da promessa unilateral “simples e pura” (bare promise), atribuindo-lhe validade e eficácia jurídica, sem nunca explicar o verdadeiro sentido de simplicidade e pureza. Parece-me que estas adjetivações só poderão quer dizer uma coisa: que os efeitos obrigacionais da promessa não se encontram condicionados a uma aceitação ou adesão do beneficiário. Ao admitir a eficácia de promessas unilaterais puras – desprovidas de causa e consideration – o autor distancia-se de GROTIUS e de LESSIUS e da larga maioria dos jusnaturalistas

continentais seus contemporâneos, posicionando-se ao lado da escolástica salamanquina, nomeadamente junto de SOTO, MOLINA e COVARRUVIAS, ao fazer

notar que o direito escocês deriva, outrossim, do direito canónico e este direito admitia, sem dúvida, a vinculatividade dos pacta nuda362.

É bastante visível na sua obra que as ideias aristotélicas de justiça comutativa e de liberalidade se encontram contaminadas pelas conceções de autonomia da vontade que na altura florescia na filosofia do direito privado da família jurídica romano-germânica. STAIR preferiu trocar as virtudes de

liberalidade para motivos de confiança, igualdade entre os homens, justiça divina, e bem assim razões comerciais363. E é exatamente aqui que jaz a justificação

teórica para o abandono da importância da teoria da causa, sendo substituída pela vontade do promitente, ou, nas palavras de STAIR, pela sua “fé”364. Não considero

360 Idem, p. 92.

361 STAIR, Institutions, pp. 97-8. Este facto representa uma manifestação da ainda nascitura teoria da vontade de SAVIGNY.

362 STAIR, Institutions, p. 92. Por outro lado, critica MOLINA e SOTO– apoiando-se em GROTIUS e PUFENDORF– quando afirma que a promessa só será vinculativa se for expressamente enunciada

(idem, p. 91).

363 STAIR, Institutions, pp. 94-5. 364 STAIR, Institutions, p. 91.

por isso que o autor se tenha distanciado da visão humanística do direito natural365,

mas sim que se tenha embebido dessa visão adicionando-lhe toques de protestantismo e ideias racionalistas provindas de um uma ratio pré-iluminista. Tentou compatibilizar estas fontes de forma coerente e lógica, e conseguiu deixar um legado jurídico-filosófico na Escócia que hodiernamente reconhece o seu trabalho como uma das obras fundamentais do direito privado escocês366.

No documento OS LIMITES DA VINCULAÇÃO UNILATERAL (páginas 88-92)