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A abordagem biográfica – características e questões éticas.

Capítulo III: Metodologia do Estudo

3.1 Temática, questões, objetivos e campo de estudo

3.1.2 A abordagem biográfica – características e questões éticas.

O facto de procurarmos compreender os percursos de mudança dos professores que optam pela educação especial como carreira, identificando assim dimensões de natureza idiossincrática e compreendendo-as tendo em conta os contextos sociais em que emergem, justifica, em nosso entender, a opção em termos metodológicos pela realização de entrevistas de natureza biográfica, privilegiando assim os relatos sobre os percursos profissionais dos participantes no estudo.

De facto, a análise dos objetivos do estudo sugere a pertinência de uma abordagem biográfica, já que só a partir dos relatos de vida profissional dos participantes foi possível caracterizar os seus percursos, conhecer as motivações que fundamentam a escolha da educação especial, identificar as mudanças de conceções pedagógicas e, por fim, caracterizar os processos de socialização na “nova” profissão.

As abordagens biográficas e auto - biográficas constituem métodos de investigação que possibilitam, segundo Ball e Goodson (1994), compreender “como é

que os professores vêm o seu trabalho e as suas vidas”. Estes autores consideram que

para compreender “algo tão intensamente pessoal quanto o ensino é fundamental

conhecer a pessoa do professor”, sublinhando assim o valor para a investigação da

história de vida dos professores. Estudar a vida e o trabalho do professor é, portanto, colocá-lo no centro da ação, preconizando-se assim uma reconceptualização da investigação educacional, de forma que a sua voz seja ouvida, conferindo-lhes assim poder e conhecimento.

Assim sendo, o estudo das narrativas quer na sua forma oral, quer escrita, permite compreender as representações e explicações dos indivíduos sobre as suas experiências. A análise da narrativa pode ser perspetivada como “o abrir de uma janela na mente ou,

cultura” (Cortazzi, 1993:2)70. Em termos de investigação, a análise da narrativa constitui uma técnica fundamental quando se pretende compreender o pensamento, a cultura, o comportamento, em última análise, as perspetivas e perceções que os professores têm das suas experiências profissionais (Cortazzi, 1993).

Se, como refere White (1981), as narrativas traduzem conhecimento sobre o que se diz/narra, então, desenvolver investigação através da análise da narrativa é olhar para o que é narrado, para voltar atrás ao seu próprio conhecimento. Nessa medida, a possibilidade de os professores analisarem as suas próprias narrativas permite, como sublinha Dewey (1938), que se tornem “alunos do seu próprio conhecimento” (Cortazzi, 1993:139).

Segundo Denzin (1983), foi devido à crise dos métodos quantitativos que temos vindo a assistir a um renovado interesse pelo método biográfico.

Para Denzin (1989:7, cit. in Erben, 1998), o método biográfico consiste no estudo de uma vida e assinala a sua imprevisibilidade empírica, uma vez que a experiência, os acontecimentos e as pessoas que encontramos ao longo da vida são, em parte, imprevisíveis. Na perspetiva de Goodson (1994), o objetivo fundamental da investigação baseada em histórias de vida consiste em localizar o próprio relato do professor no marco de uma análise contextual mais ampla, ou seja, como refere Stenhouse, em construir “ uma narrativa da ação dentro de uma teoria do contexto” (citado por Goodson, p. 50). Este autor, propõe uma reconceptualização da investigação educativa, entende que todos os grupos têm direito a falar por si próprios, com a sua própria voz e a fazer reconhecer a autenticidade e legitimidade dessa voz.

Assinalando outra dimensão, Measor e Sikes (2004) consideram que as histórias de vida e as biografias permitem aos investigadores obter, a partir das experiências alheias, a evidência de que não estão sós com as suas dificuldades, os seus sofrimentos, os seus prazeres e as suas necessidades.

Inserindo-se num paradigma de investigação hermenêutica, o método biográfico centra-se na análise e interpretação da narrativa de vida, e constitui assim um processo que permite aceder a dimensões ocultas e significativas (Erben, 1998).

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Na educação especial e no âmbito da investigação com base em narrativas pessoais e histórias de vida, são de referir os seguintes estudos citados por Brantlinger (2005): estudo de caso de Helen Keller (Keller, 1955), estudo de Edgerton (1967) “Cloak of Competence: Stigma in the lives of the Mentally Retarded” e finalmente, estudo de Bogdan & Taylor (1976) ,“The social meaning of mental retardation: two life stories. New York: Teachers College Press.

As vantagens da utilização deste método na investigação têm sido assinaladas por alguns autores (Denzin,1970; Bertaux,1981;Goodson 2004; Moreira, 2007; Medrano, 2007). Entre eles, Digneffe e Beckers (2005) referem que o método biográfico permite:

a) Sair da oposição entre indivíduo e sociedade – o objetivo é descobrir a relação entre as condições concretas de existência e necessariamente sociais e as vivências. Tendo como base o pensamento de Ferrarotti (1983) no qual se sublinha que qualquer narração autobiográfica conta uma prática humana, aqueles autores consideram que a essência do homem se situa no conjunto de relações sociais e, nessa medida, qualquer prática individual é uma atividade sintética, uma totalização do contexto social. Neste cenário ganha particular relevo a conclusão de Ferrarotti quando refere que, e citamos:

“Se nós somos, se cada indivíduo representa a reapropriação singular do

universal social e histórico que o rodeia, podemos conhecer o social partindo da especificidade irredutível de uma práxis individual”( Ferrarotti, 1983, p. 51).

b) Captar as relações dialéticas entre o ponto de vista subjetivo do homem e a sua inscrição na objetividade de uma história, possibilitando também compreender o que de ativo e passivo há no ser humano. Trata-se de, através do relato, perceber e captar a influência dos determinantes sociais no sujeito e a relação e a criatividade deste perante esses determinantes. Em última análise o que está em causa é compreender a relação dialética entre o indivíduo produtor da sua história e produto da história (Ferrarotti, 1983).

c) compreender de que modo a conduta do ser humano é continuadamente remodelada de modo a ter em conta as expectativas dos outros;

d) captar a diversidade social na sua multiplicidade de dimensões: o particular, o marginal, as ruturas, os equívocos; aceder a estas dimensões implica reconhecer valor sociológico ao saber individual e entender que só se pode captar o sentido de um fato social através da experiência vivida e do discurso que sobre ela é produzido.

e) estudar os percursos dos indivíduos, compreender os processos de transição de um estado para outro, compreender as mudanças; em suma, o método biográfico permite analisar os momentos de rutura, as formas de organização ou de reorganização num espaço social em mudança (Digneffe e Beckers 2005, p.243).

Por outro lado, importa ter em linha de conta as limitações inerentes ao próprio método biográfico, nomeadamente a constatação da distinção fundamental entre a vida vivida e experimentada e a vida relatada (Goodson, 2004). A este propósito, Denzin (1989) numa postura atenta e lúcida refere que, e citamos:

(…) Não existe nenhuma janela que nos permita ver a vida interior de uma

pessoa, porque toda a janela está sempre mediada pelo cristal da linguagem, dos signos e do processo de significação. E a linguagem, seja em forma oral ou escrita, é sempre instável e feita de vestígios de outros signos e enunciados simbólicos. Por conseguinte, nunca pode existir uma enunciação de uma intenção nem de um significado clara e carente de ambiguidades” (Denzin, 1991, p. 14).

No que diz respeito às críticas, é de realçar de novo o contributo de Denzin uma vez que chama a atenção para o perigo de, com esta abordagem se correr o risco de não dar a devida atenção às estruturas sociais que causam opressão, uma vez que se privilegia como centro de interesse o individuo e a sua biografia. Goodson (2004), apesar de não concordar com as críticas deste autor na sua totalidade, entende também que um dos efeitos colaterais do trabalho sobre relatos de vida é a eventualidade de uma despolitização da investigação.

Para além destas dimensões, a abordagem biográfica coloca ao investigador questões éticas que julgamos necessário ter em atenção. A este respeito, e porque o conhecimento adquirido surge da interação absolutamente recíproca entre observador e observado (Ferrarotti,1981), a investigação desenvolvida, enquanto processo social, exige à partida que se tenha em conta o respeito pela pessoa, pela sua individualidade e pela forma como interpreta o mundo. Nesta ordem de ideias, Measor e Sikes (2004) assinalam a importância da relação entre investigador e os intervenientes no estudo, sublinhando a relevância do acordo estabelecido entre ambas as partes; as regras definidas sobre o papel e sobre o que é espetável de cada um constituem, no entender daquelas autoras, bases fundamentais para o desenvolvimento de uma relação que, pela sua própria natureza, é artificial e assimétrica. E, a propósito da relação estabelecida durante a realização de entrevistas biográficas sublinham a necessidade do entrevistador ter uma postura de neutralidade e de não revelação de aspetos da sua pessoa, eventualmente facilitadores da recolha de dados (pela eficiência da reciprocidade enquanto estratégia), mas pouco éticos em termos de processo de pesquisa. Estas autoras referem ainda que a validação, por parte dos intervenientes/entrevistados, da análise realizada constitui a melhor forma de assegurar e salvaguardar os aspetos éticos envolvidos neste tipo de estudos.

Em função do que foi dito, é fundamental desenvolver processos de investigação caracterizados pela colaboração entre investigadores e intervenientes, entendendo-se

assim os professores como sujeitos ativos na construção da sua própria história, e desenvolvendo procedimentos metodológicos de “consentimento informado” e de devolução e negociação de todos os dados (Bertaux, 1981; Measor e Sikes, 2004; Goodson, 2004).

No âmbito deste método, Ferrarotti (1988) considera que existem dois tipos de materiais que podem ser usados: os materiais primários, ou seja, as narrativas ou relatos autobiográficos recolhidos pelo investigador através de entrevistas e os secundários, nos quais inclui correspondências, diários, narrativas diversas, documentos, fotografias, etc, cuja produção não teve, à partida, por objetivo a investigação.

O design de uma investigação qualitativa é consequentemente aberto, “emergente”, “desenvolvendo-se e evoluindo em cascata”, (Guba,1986) e, sendo assim, é possível ao longo da investigação considerar novos meios de recolha de dados, que permitam uma maior compreensão do fenómeno em estudo.

Ao longo do estudo desenvolveram-se processos que garantissem o necessário equilíbrio entre rigor e relevância (Guba,1989) dos dados. No seu desenrolar procurámos ter em linha de conta os critérios referidos como fundamentais num estudo desta natureza (Guba, 1989; Boavida e Amado, 2008) a saber: credibilidade, transferibilidade, confiabilidade e confirmabilidade.