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Socialização profissional dos professores: paradigmas e modelos.

Capítulo I: Socialização, Identidade e Mudança

1.2 Socialização profissional – contributo dos primeiros estudos.

1.2.1 Socialização profissional dos professores: paradigmas e modelos.

Numa definição de carácter geral, Merton, Reader, & Kendall (1957: 287)7 definem socialização como “o processo pelo qual os indivíduos adquirem seletivamente

os valores e atitudes, os interesses, as habilidades e o conhecimento - em síntese a cultura dominante dos grupos a que pertencem ou onde pretendem ser membros”.

Nesse sentido, a investigação sobre a socialização dos professores constitui, segundo Danziger (1971), citado por Zeichner & Gore, (1990) uma área de estudo que procura compreender o processo pelo qual um indivíduo se torna membro participante na sociedade dos professores.

Zeichner & Gore (1990) analisaram os estudos realizados a partir dos anos setenta do século passado e consideram que existem três tradições/paradigmas distintos, a saber: funcionalista, interpretativo e crítico.

Tendo como referência de base os pressupostos do positivismo sociológico ( Durkheim, 1938), o paradigma funcionalista procura fornecer explicações positivistas, deterministas e nomotéticas para os fenómenos, entendendo assim possível uma investigação capaz de produzir um conhecimento objetivo, explicativo e preditivo.

É no âmbito deste paradigma que os primeiros estudos sobre a socialização profissional se realizaram, tendo em conta outras profissões, nomeadamente a medicina, e centrando-se nos períodos de formação; é disso exemplo, o estudo de Merton, Reader e Kendall (1957) baseado no relato do processo de socialização de um estudante de medicina, ou seja na forma como a faculdade transmitiu ao aluno os conhecimentos e habilidades necessários e fundamentais para o exercício da profissão (Zeichner & Gore, 1990).

Quanto à socialização profissional dos professores, vários autores (Lacey,1986; Zeichner & Gore, 1990; Richardson e Placier,2001) referem como pioneiros os estudos realizados por Waller8e por Lortie9.

Aplicando uma teoria social funcionalista e teorias psicológicas, Waller (1961), citado por Richardson e Placier (2001) procurou perceber o que é que o ensino faz aos professores. Concluiu que mesmo quando os professores escolhiam o ensino porque

7 Trata-se da obra The Student Physician. Cambridge, MA: Harvard University Press, referenciada em diversos

estudos sobre a socialização profissional dos professores, nomeadamente nos estudos de Lacey (1986) e nas revisões sobre a investigação produzida neste domínio realizadas por Zeichner e Gore (1990) e por Staton e Hunt (1992).

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Waller, W. (1961). The sociology of teaching. New York: Russell & Russell. Cit in: Richardson e Placier, 2001.

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achavam que iam conseguir, mesmo quando realizavam cursos de formação, muitos tinham grandes dificuldades em se adaptar ao seu papel docente.

No entender deste autor, a escola enquanto organização molda os professores de forma a produzir traços como inflexibilidade, formalidade, inibição, e paciência “porque esses traços têm valor para a sobrevivência nas escolas de hoje. Se uma

pessoa não as tem quando inicia a formação, tem de as desenvolver, ou então morre de morte académica”(Waller,1961, p. 382, op cit, p. 923).

Na mesma linha de ideias, Lortie (1975) entende que a escola enquanto organização molda o prático e conclui que após uma “aprendizagem por observação” na qual os sujeitos internalizam as práticas dos seus próprios professores, após uma fraca preparação formal, e uma mini - aprendizagem que reforça formas tradicionais de ensino, os novos professores são lançados para as salas de aula onde irão ter as mesmas responsabilidades que os professores com mais anos de serviço. Este autor sublinha o isolamento diário que caracteriza o trabalho do professor com os seus alunos e a elevada ansiedade que experimenta perante os problemas que não pode antecipar e que surgem inevitavelmente; assinala ainda o facto da resolução desses problemas não envolver a eventual ajuda dos pares, uma vez que não existe uma cultura profissional e um consenso sobre “o que deve ser feito nestes casos”, como acontece noutras profissões.

Lortie (1975) conclui que a socialização no ensino é amplamente auto - socialização e, nessa medida, os professores socializam-se a si próprios para reproduzir formas semelhantes de ensino. Numa postura crítica, atribui esta forma de socialização à aprendizagem por observação, à história do ensino como ocupação que atrai pessoas conservadoras, e à estrutura e cultura escolares.

Importa sublinhar que subjaz ao paradigma funcionalista uma visão estática da sociedade à qual o indivíduo se adapta e, nessa medida, a socialização profissional envolve a adaptação passiva do indivíduo a essa sociedade; no caso dos professores, e como assinala Lacey (1986:635), trata-se de, e citamos: “encher um copo vazio, através

do qual o neófito adquire os valores e skills necessários para se tornar membro da profissão”.

Neste cenário, a socialização pode ser definida como o processo através do qual o professor integra a cultura profissional dominante. Assim sendo, como Carvalho (1996) sublinha, neste paradigma a socialização dos professores é perspetivada como um processo mediante o qual um indivíduo se torna membro da sociedade dos professores, através da interiorização de uma cultura, comum ao grupo ocupacional, caracterizada

por um conjunto de valores, atitudes, interesses, conhecimentos e habilidades. Este autor assinala a prevalência da interiorização das normas sociais e da representação da realidade social com base numa análise de tendência central (o que significa que se considera como não problemática a aquisição da cultura e do sistema de valores dominante).

A socialização é assim entendida como um processo que produz continuidade, não se enfatizando a natureza complexa e contraditória da intervenção do sujeito. Assume-se que o indivíduo se modifica de forma a desempenhar os papéis determinados pela estrutura social e considera-se que a aquisição da cultura e do sistema de valores dominante não é de todo problemática e conflitual.

Numa postura crítica, Lacey (1986) sublinha a precariedade dos fundamentos teóricos do paradigma funcionalista, ou seja, a ideia de que é possível identificar e reconhecer boas práticas e bons professores, bem como a existência de consenso quanto aos papéis que devem desempenhar na escola, e refere as implicações negativas daqueles pressupostos no tipo de estudos realizados. A procura de consenso quanto ao papel do professor e, posteriormente, a utilização de testes que permitam selecionar os sujeitos que melhor possam adquirir o papel prescrito revelou-se, em termos de investigação, tarefa difícil e inadequada dada a complexidade e singularidade da profissão docente e dada a natureza idiossincrática do processo de socialização profissional.

E, neste cenário, a autora refere um conjunto de dimensões reveladoras de uma profissão dividida, a saber: as disciplinas, a formação, o estatuto e função das instituições onde os professores exercem funções, a origem social dos mesmos e o desacordo relativamente às finalidades e objetivos da educação.

Na mesma ordem de ideias, Zeichner e Gore (1990) assumem uma postura crítica dos estudos de carácter funcionalista, nos quais os professores, ora prisioneiros do seu passado ora prisioneiros do presente, são perspetivados como sujeitos passivos; neste cenário, as experiências da infância (socialização antecipatória) e as pressões atuais do local de trabalho constituem elementos determinantes da socialização profissional. Ora, para estes autores, a socialização profissional do professor envolve um processo constante de inter-relação entre o assumir de opções e escolhas individuais e o aceitar de regras e constrangimentos inerentes à organização escolar.

É neste contexto que podemos situar o contributo do paradigma interpretativo10, no qual se valoriza a dimensão subjetiva do conhecimento, uma vez que se pretende compreender a natureza fundamental do mundo social com base na experiência dos indivíduos.

No âmbito deste paradigma, Zeichner & Gore (1990) fazem referência aos estudos desenvolvidos por Becker, Geer, Hughes e Strauss (1961) 11 que procuraram compreender as experiências dos alunos enquanto estudantes de medicina e aos estudos de Lacey (1977) sobre a socialização precoce dos professores - alunos; em ambos se valoriza a ação do sujeito e a capacidade de se transformar perante as exigências do meio social, o que significa, em última análise, que se perspetiva a socialização como um processo complexo, onde a ação autónoma do sujeito possibilita a escolha individual e a mudança social.

Com efeito, para Lacey (1986, p. 634), a socialização profissional de professores constitui um processo de mudança através do qual os indivíduos se tornam membros da profissão e assumem progressivamente e com maturidade os papéis de professor. Nessa medida, com base nos resultados do estudo que realizou com alunos/futuros professores, sugere que a adaptação à profissão envolve os seguintes mecanismos/respostas: a adaptação internalizada, a submissão estratégica e a redefinição estratégica.

Na adaptação internalizada, o indivíduo cede e concorda com as pressões e constrangimentos, acreditando que contribuem para a obtenção de melhores resultados; já na submissão estratégica o indivíduo submete-se, embora com reservas, às exigências da situação, revelando assim uma resposta utilitária face às pressões do meio; por último, a redefinição estratégica acontece perante situações que são contrárias aos interesses e expectativas do futuro professor, mas face às quais procura desencadear mudanças, introduzindo novos valores, novos conhecimentos e novas soluções para os problemas (Lacey,1986).

Resulta assim evidente que nos estudos desta autora o indivíduo é perspetivado como agente ativo e autónomo, capaz de desencadear mudanças sociais decorrentes das escolhas e das estratégias usadas no processo de socialização. Nessa medida, demonstra-se que, apesar da existência de constrangimentos estruturais ou

10 Fundamentando-se na tradição idealista do pensamento alemão (Dilthey, 1976; Husserl, 1929; Kant, 1876; Schutz,

1967; Weber, 1947), no âmbito deste paradigma interpretativo desenvolveram-se várias escolas, a saber: a hermenêutica (Dilthey, 1976; Gadamer, 1975), a fenomenologia (Husserl, 1929; Sartre, 1948; Schutz, 1967), e a etnometodologia (Garfinkel, 1967).

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institucionais, o estudo da socialização dos professores deve partir da análise dos significados subjetivos dos participantes. Assim sendo, a negociação efetuada entre o indivíduo e o contexto em que se insere, bem como a atribuição de um significado especial à experiência subjetiva de cada pessoa constituem dimensões relevantes neste paradigma interpretativo e possibilitam uma visão mais complexa e problemática do processo socializador (Flores, 1999).

Segundo alguns autores (Zeichner & Gore,1990; Carvalho, 1996; Flores,1999) a partir dos estudos de Lacey e decorrente da influência de perspetivas interpretativas na investigação educacional, os estudos sobre a socialização dos professores têm vindo a enfatizar a natureza interativa do processo, uma vez que aprender a ser professor envolve uma constante inter-relação entre escolha e constrangimento. Como sublinha Carvalho (1996) no paradigma interpretativo entende-se que a cultura dos professores é naturalmente heterogénea, dadas as diferenças existentes nas matérias que ensinam, no estatuto e funções que exercem nas escolas, na formação e origem social, no género e, por fim nas opções pedagógicas que determinam a intervenção.

Por último, no paradigma crítico12 o processo de socialização é perspetivado como contraditório e dialético, coletivo e individual, situando-se no contexto das instituições, da sociedade, da cultura e da história. As pessoas são consideradas simultaneamente produtos e criadores das situações sociais em que vivem e, nessa medida, valoriza-se a capacidade de criticar os dados adquiridos sobre a vida quotidiana. A preocupação central é a transformação social de forma a aumentar a justiça, a igualdade, a liberdade e a dignidade humana.

Neste cenário, e tendo como referência a conceção de socialização proposta por Nóvoa (1987), na qual esta surge associada ao processo socio-histórico de profissionalização da profissão, Carvalho (1996, p. 15) sublinha por um lado, a força socializadora da estrutura escolar sobre a cultura dos professores e, por outro, a intervenção destes na sua construção. Resulta assim evidente a preocupação deste autor em assinalar o papel ativo e criativo dos professores durante o processo de socialização, entendendo que apesar do carácter paradoxal dos fenómenos de escolarização e da ocupação docente, existem “espaços para a reapropriação” e para “a resistência por

parte dos professores”.

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As escolas de pensamento em que o paradigma crítico se fundamenta derivam do marxismo e da Escola de Frankfurt. Duas abordagens principais podem ser identificadas neste paradigma: uma que enfatiza a reprodução ( Althusser, 1971; Bernstein, 1979; Bourdieu, 1977; Bowles e Gintis, 1976) e outra a produção (por exemplo, Giroux, 1981, 1983; Willis, 1977) In: Zeichner & Gore (1990).

Segundo Zeichner & Gore (1990), embora a investigação desenvolvida no âmbito do paradigma crítico seja escassa, ela deve ser participativa e colaborativa, de forma a reparar as desiguais relações de poder entre investigadores e investigados. Estes autores consideram limitadas as perspetivas sobre a socialização decorrentes dos estudos funcionalistas e dos estudos interpretativos e defendem um paradigma crítico que, contrariamente aos outros, seja capaz de desafiar o” status quo”.

Nas últimas décadas realizaram-se várias revisões da investigação produzida sobre a socialização, entre elas são de assinalar a de Zeichner e Gore (1990) que temos vindo a referenciar, e a de Staton e Hunt (1992). Na primeira, como já referimos, sugere-se o desenvolvimento no futuro de estudos que se enquadrem no paradigma crítico; na segunda, os autores também têm uma postura crítica em relação ao paradigma funcionalista, mas preconizam um paradigma interpretativo, no qual a biografia do professor atua como um filtro na análise e interpretação das experiências afetivas do professor, do seu comportamento e das mudanças cognitivas que decorrem das interações com os agentes de socialização ao longo do tempo. (Richardson e Placier, 2001).

De facto, no modelo proposto por Staton e Hunt (1992) que transcrevemos seguidamente na figura nº1, torna-se evidente a importância da biografia, das experiências decorrentes da formação e do exercício profissional no processo de socialização do professor.

Segundo as autoras deste modelo, o processo de socialização envolve uma procura de significados partilhados, ou seja, uma comunicação constante entre os agentes de socialização dos diversos contextos e o professor de forma a este poder, por um lado, conhecer as expectativas que outros têm sobre si e, por outro, revelar as suas próprias expectativas, de modo a desempenhar papéis e comportamentos adequados.

Uma vez que nesta perspetiva se valoriza a comunicação, a investigação deverá centrar-se nas formas de construção de significados partilhados entre professores e agentes de socialização, e considerar que a influência de uns e de outros é recíproca (Staton e Hunt, 1992). As autoras do modelo em análise procuram assim dar resposta à necessidade, antes evidenciada por Zeichner e Gore (1990), de estudos que procurem compreender de que modo os professores são influenciados, e por sua vez influenciam as estruturas onde se socializam.

A influência e a importância atribuída à biografia e ao percurso posterior do professor na socialização profissional são referidas por outros autores (Tardif e Lessard, 1999 e Blin, 1997). De facto, para Tardif e Lessard, (1999, p. 376), a socialização profissional envolve um processo contínuo, um processo de formação do individuo que se desenvolve durante toda a sua história de vida; este processo apoia-se nas socializações anteriores à entrada para o ensino, realiza-se através de momentos e de lugares instituídos (por exemplo a formação inicial), continua a desenvolver-se através das múltiplas experiências e relações de trabalho ao longo da carreira, envolvendo, portanto, ruturas e continuidades.

Também Blin (1997, p. 199) considera que a socialização profissional dos professores começa na infância, sublinhando que alguns professores podem constituir modelos de referência que influenciam e que marcam a prática profissional atual e os valores que lhe subjazem.