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A AFIRMAÇÃO DA NARRATIVA BREVE NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 110-114)

II. DO DESENVOLVIMENTO, ESPECIALIZAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE NARRAÇÃO ORAL

7. A AFIRMAÇÃO DA NARRATIVA BREVE NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA

Na teoria sobre a narrativa breve encontra-se uma distinção fundamental entre os produtos da tradição atrás observada e os contos literários modernos, expressa sem equívocos na língua inglesa através dos termos tale, para referir o primeiro caso, e short

story, para o segundo (Marler 1994). A tradição dos tales, no qual se enquadram

genericamente as narrativas enquadradas de Boccacio ou de Chaucer, os exempla, os

fabliaux, as fábulas, os “contos de fadas” ou os “contos populares”, assim entendida,

apresenta-se como um antecessor da short story, o conto literário cujo desenvolvimento e profusão interessa agora observar. Porque, como refere Marina Sanfilippo, um dos fatores que permitiram o desenvolvimento da narração oral enquanto prática artística profissionalizada prende-se com o prestígio que a narrativa breve conquistou ao longo do século XX (Sanfilippo 2007. 18).

Na maior parte dos contextos em que se assistem movimentos de narração oral, a tradição dos tales, ou seja, do conto tradicional no sentido abrangente, constitui um

corpus privilegiado de fontes para os repertórios dos “novos” narradores. No entanto,

ainda que menos expressivo, as short stories também estão presentes. Conforme é possível apurar a partir do trabalho de Sanfilippo (ibidem: 194-203), bem como da

observação realizada ao longo deste estudo, a presença desses contos de autor, que assumem portanto um caráter inequivocamente literário, parece ser mais notada no contexto espanhol e sul-americano (Palleiro e Fischman 2009: 49). Sanfilippo refere inclusivamente a polémica sobre os direitos de autor consequentes da passagem destes textos à performance no trabalho de diversos narradores (Sanfilippo 2003: 194-196). Efetivamente, nos trabalhos de Simon Heywood (2001) ou Patrick Ryan (2003) sobre a realidade anglo-saxónica, ainda que mais centrados no Reino Unido, ou nos estudos de Veronika Görög-Karady (1990) e Maria Patrini (2002) sobre o movimento do renoveau

du conte em França, a presença das short stroies passa desapercebida. Sublinha-se que os

limites entre o conto dito tradicional e o conto literário, aparte um critério temporal, são tanto mais ténues quanto maior a profusão de autores, estilos e temas, o que pode dificultar ilações a partir do entendimento que os próprios narradores têm do seu repertório, como questiona Patrick Ryan (2003: 83). Ainda assim, apesar de um contexto cultural que, como se verá no seguimento desta reflexão, leva a que as fontes destes novos narradores sejam maioritariamente escritas, é visível na maior parte dos movimentos de narração oral uma preferência pelo material “tradicional”, num sentido lato.

De qualquer modo, o fenómeno do short story, do conto literário, por assim dizer, não está ligado aos movimentos de narração oral apenas enquanto material de trabalho, ou seja, fonte de repertórios. A sua influência no desenvolvimento destas dinâmicas prende-se com a valorização da prática de contar narrativas breves em prosa enquanto atividade artística, o que está estritamente ligado, antes de mais, à afirmação do conto enquanto género literário, ou seja, enquanto forma dotada de uma validade estética. Do mesmo modo que a valorização da oralidade e a profusão do imaginário maravilhoso contribuíram para o gosto pelo “tradicional” e que a institucionalização das práticas de narração no contexto da escola e da biblioteca, a par com a sua legitimação enquanto instrumento pedagógico, criaram um espaço privilegiado de ação, a afirmação da narrativa breve enquanto género literário desenvolveu, por sua vez, um gosto pelo “conto” que tornou bem vinda a sua performatização.

O género short story é, segundo o discurso consensual de uma vasta teoria, uma invenção do século XIX que coincide com a disseminação das publicações periódicas, jornais e revistas (May 1994). Nos Estados Unidos, um dos primeiros autores celebrizados do género foi Washigton Irving, com a obra Sketch Book of Geoffrey

Crayon, Gent. (Irving 2009), publicado em série entre 1919 e 1920, onde consta o

famoso conto “The Legend of Sleepy Hollow”. Depois de Irving, outras figuras proeminentes foram Nathaniel Hawthorne, especialmente com obras como Twice-Told

Tales (Hawthorne 2001), publicada em 1837, e Edgar Allan Poe, conhecido pelo estilo

gótico e pelos mistérios policiais como, por exemplo, “Os Crimes da Rua Morgue”, publicado pela primeira vez em 1841. Poe destaca-se também pela sua contribuição para o desenvolvimento de uma teoria sobre o género (Marler 1994). Uma viragem para o Realismo, numa tendência transversal na produção literária da época, dá-se pouco mais tarde na obra de Herman Melville, reunida, por exemplo, em Piazza Tales, em 1856 (Melville 2005).

Em Inglaterra, por sua vez, o género encontrou mais resistências. Apesar das incursões de alguns romancistas como Charles Dickens, George Eliot ou Sir Walter Scott, bem como de alguma produção em revistas por outros autores, o fenómeno parece ter alcançado a sua maturidade apenas no fim do século, já numa tendência realista, com Robert Louis Stevenson e Rudyard Kipling. E, se na Alemanha, entre os percursores do género se encontram Ernst Theodor Amadeus Hoffmann e Heinrich von Kleist, já em França, ainda sob a corrente romântica, Charles Nodier produziu uma obra marcada pelo fantástico e Prosper Mérimée veio redefinir o género com a obra fundamental “Mateo Falcone” (2004), publicado em 1829. Honoré de Balzac e Gustave Fleubert fizeram também incursões no género, mas foi Guy de Maupassant que nas últimas décadas do século concretizou uma viragem para o Realismo, com textos como “Boule de Suif”, para citar apenas um (Maupassant 2014). Outros autores importantes do género foram também Alfred de Musset e Alphonse Daudet.

Na Rússia, o fenómeno foi semelhante, com autores como Nikolai Gogol e Aleksander Pushkin a sobressair, numa tendência realista que culminaria na obra de Anton Chekhov, considerado um dos nomes mais significativos do género. E é acompanhando este mesmo movimento para o Realismo e o Naturalismo que a short

story se desenvolveu um pouco por toda parte, avançando para o século XXI numa

progressiva afirmação enquanto género literário de pleno direito, que culmina com a atribuição do Prémio Nobel a Alice Munro, em 2013.

Num universo muito amplo, que permite apenas exemplos, nomes como Machado de Assis, Franz Kafka, William Somerset Maugham, Italo Calvino ou Jorge Luis Borges foram, ainda que não dedicados exclusivamente ao género, autores determinantes para

este processo de afirmação da narrativa breve. Interessa ainda observar, pela sua influência nos movimentos de narração oral, que a literatura sul-americana foi próspera na produção de narrativas breves ao longo do século XX, graças a autores como Júlio Cortázar, Gabriel Garcia Marques ou Eduardo Galeano. Com efeito, e conforme se pode também observar no estudo de Marina Sanfilippo, estes autores têm uma presença significativa nos repertórios dos novos narradores de língua espanhola (Sanfilippo 2007: 200-204).

Assim, a afirmação deste género literário foi um fator decisivo no desenvolvimento dos movimentos de narração oral. Em primeiro lugar, a proliferação de autores e obras e a sua divulgação editorial fundou um gosto pela narrativa breve: por um lado, estimulando narradores a quem serviu e serve de material de trabalho e inspiração, por outro, criando um público que, já apreciador deste género literário, é facilmente atraído pela performatização destes textos. Em segundo lugar, a legitimação do conto enquanto género literário emprestou ao ato de contar em prosa, ou seja, à prática performativa destes novos narradores, uma validade estética antes alcançada no campo literário.

Como foi observado no princípio deste capítulo, a performance narrativa parece ter feito sempre uso da versificação, da música ou da dramatização para validar a sua natureza de objeto de arte e entretenimento, valorizada enquanto produto de troca e permitindo, assim, uma profissionalização da atividade. Por sua vez, o contar em prosa, sem outros recursos estéticos, corresponderia às práticas tradicionais em que o ato de narrar está inserido na vida quotidiana, familiar ou comunitária, e que por isso, nas palavras de Francisco Assis de Sousa Lima, “dá-se e circula como um objecto sem preço, um bem comum” (Lima 2005: 60).

Esse contar histórias que se apoia na legitimidade artística do conto afasta-se do paradigma do homo narrans, do ato de narrar quotidiano que não tem outro valor que a sua função social, de memória e partilha comunitária. A qualidade literária do contar torna-se, enfim, um elemento de apreciação que contribui para a legitimação da narração oral enquanto prática artística.

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 110-114)