• Nenhum resultado encontrado

A PROFUSÃO DO IMAGINÁRIO MARAVILHOSO

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 91-98)

II. DO DESENVOLVIMENTO, ESPECIALIZAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE NARRAÇÃO ORAL

3. A PROFUSÃO DO IMAGINÁRIO MARAVILHOSO

A profusão do imaginário maravilhoso na cultura popular contemporânea é um fator essencial de dinamização das práticas de narração oral, consequente de uma natural associação entre a prática de contar histórias e o repertório dos “contos de fadas”, na

aceção abrangente do termo. Esta profusão do imaginário maravilhoso não se concretiza apenas na transposição de narrativas do género “contos de fadas” para outras linguagens, mas também na disseminação de motivos próprios do universo mágico que o caracteriza, presente também noutros géneros. Deste modo, incluem-se nessa profusão do imaginário maravilhoso as narrativas mágicas presentes no ciclo arturiano, celebrizadas na literatura contemporânea, em livros como As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, ou no cinema, em Excalibur, de John Boorman, entre muitas outras adaptações mais recentes. Do mesmo modo, enquadra-se neste fenómeno a presente difusão da literatura de fantasia de J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis, J. K. Rowling, ou mais recentemente, G. R. R. Martin, autores cujas obras foram adaptadas para o cinema de forma intensiva já no século XXI. Neste sentido, a aqui chamada profusão do imaginário maravilhoso não diz respeito apenas ao género específico dos “contos de fadas”, mas às estruturas narrativas centradas na demanda do herói ou heroína, nas criaturas fantásticas e nos animais falantes, nos objetos mágicos e nas metamorfoses.

Como nota Marina Warner, esta profusão do imaginário maravilhoso fora do universo específico da tradição oral ou das suas concretizações literárias não é um fenómeno recente:

Fairy tales have never been exclusively verbal, and the slippery interactions of oral and written transmission over the course of the genre’s history result as much from stories’ constant reincarnations on stage and on screen, from pantomime to puppet shows, again showing its affinity with migrating tunes, cross-pollinating plants (Warner 2014: 159).

Conforme evidencia a autora, a adaptabilidade dos “contos de fadas” e o atrativo das suas estruturas narrativas centradas no pequeno e marginalizado herói, da sua fantasia que apela à evasão e ao encantamento, fazem transbordar os seus temas e motivos para fora do meio literário. Os “contos de fadas” são, assim, absorvidos por todas as expressões artísticas, como o teatro, a música, a ópera, o ballet e, finalmente, o cinema e os meios de comunicação.

Ao abordar o género dos “contos de fadas” de forma mais específica, Marina Warner nota como, a partir do Iluminismo, o imaginário maravilhoso invade os palcos, inspirando óperas e ballets (Warner 2014: 158-177). A Flauta Mágica de Wolfgang Amadeus Mozart, apresentada pela primeira vez em 1791, ou as peças de ballet de Pyotr Ilich Tchaikovsky, como O Lago dos Cisnes e A Bela Adormecida, no século seguinte, são disto exemplos célebres, entre os muitos que a autora enumera. No que diz respeito ao teatro, Warner salienta a influência da commedia dell’arte de Carlo Gozzi que, na

segunda metade do século XVIII, adapta temas dos “contos de fadas”. Traduzido para o alemão, o trabalho de Gozzi foi admirado por escritores como Friederich Schiller, Johann Wolfgang Goethe, ou os irmãos Friederich e August Wilhelm Schlegel. A sua influência chega ao século vinte através de célebres adaptações para ópera: a sua primeira peça,

L’amore dele Tre Melarance, versão do conto “As três cidras do amor” (ATU 408),

serviu de base para a montagem de Sergey Prokofiev, The Love for Three Oranges, em 1921; Turandot, peça inspirada num conto persa, mas cuja adaptação de Gozzi situa a ação na China, e que deu nome ao tipo de conto na classificação de Aarne e Thompson (851A AT), sinal da sua popularidade, foi a base para a ópera homónima de Giacomo Puccini, em 1926.

Com o surgimento do cinema, desde o princípio, o universo maravilhoso dos “contos de fadas” tronou-se temática recorrente na sétima arte, apelando à infinita possibilidade de ilusão e encantamento das técnicas cinematográficas em constante evolução. Esta relação profícua começa, desde logo, com o pioneiro Georges Méliès, que nas suas experiências baseadas em montagens fotográficas e efeitos especiais adaptou contos como “A Gata Borralheira” (ATU 510A), em Cendrillon, de 1899, ou ainda “O Assassino de Donzela (Barba-Azul)” (ATU 312), em Barbe-bleue, de 1901. Segundo Donald Haase, se os primeiros filmes centravam-se mais em personagens humanas e a magia estava confinada às possibilidades técnicas da altura, a partir do fim do século XX, adaptações de contos como “A Bela e o Mostro” (ATU 425C) começam a proliferar, refletindo a evolução dos efeitos especiais (Haase 2007a: 345). Uma das primeiras abordagens ao conto foi La Belle et la Bête, de Jean Cocteau, em 1946, seguida de outros exemplos, como Panna a netvor, de Juraj Herz, em 1978.

No entanto, o conto mais adaptado para o cinema é, provavelmente, “A Gata Borralheira” (ATU 510A), mais conhecido por “Cinderella”. A popularidade destes filmes parece estar associada, como nota Donald Hasse (ao fazer referência ao pensamento crítico de Jack Zypes), às suas estruturas narrativas centradas na riqueza e na beleza, que se enquadram nas tendências capitalistas e nos discursos publicitários centrados “on white, middle-class, male-dominated ideal” (ibidem: 344). Uma das primeiras versões cinematográficas do conto foi Cinderella de James Kirkwood, em 1914. Versões mais recentes e populares são: Ever After, de Andy Tennant, em 1998;

Ella Enchanted, de Tommy O’Haver, em 2004 (numa adaptação mais livre dos originais

por Haase, foi Tři oříšky pro Popelku, de Václav Vorlíček, em 1973, que apresenta uma heroína forte e ativa (ibid.).

No que diz respeito às adaptações cinematográficas de contos tradicionais, mesmo dentro de Hollywood, à medida que estas se vão afastando das sua fontes mais recorrentes, as versões de Perrault e dos Grimm, valores centrais sobre a classe e o género tendem a ser subvertidos, bem como o paradigma do “final feliz” (Zipes 1979, Haase 2007, Warner 2014). Exemplo desta tendência são filmes como The Company of

Wolves, de Neil Jordan, em 1984, e Hard Candy, de David Slade, em 2005, que revisitam

o conto “O Capuchinho Vermelho” (ATU 333) de forma surpreendente e original. Inspirados noutros contos, ou apresentando narrativas originais que seguem o modelo dos “contos de fadas”, filmes como Snow White and the Hunstman de Rupert Sanders, em 2012, ou Maleficent de Robert Stromberg, apresentam, o primeiro, uma branca de neve armada de espada e escudo, o segundo, uma heroína improvável. Outros realizadores adotam livremente motivos dos contos maravilhosos, como no célebre exemplo de Star

Wars, de George Lucas, cuja narrativa, segundo Jack Zipes, é uma revisitação do modelo

dos “contos de fadas” (Zipes 1979). A série iniciada nos anos setenta e retomada a partir de 1999, com mais três novos episódios, é um fenómeno popular e uma marca de franchising rentável, que volta a ser explorada com Star Wars: The Force Awakens, de J. J. Abrams, em 2015.

Exemplos mais próximos do universo tradicional dos “contos de fadas” são, entre outros: The Brothers Grimm, de Terry Gilliam, em 2005, que reinventa as próprias personagens dos irmãos recoletores; El Laberinto del Fauno, de Guillermo del Toro, em 2006; e grande parte da obra de Tim Burton, que mais próximo da literatura fantástica do que dos “contos de fada” propriamente ditos, contribuiu para a profusão do imaginário maravilhoso através de filmes como The Nightmare Before Christmas, de 1993, ou

Corpse Bride, de 2005, e que realizou a adaptação para o cinema da obra de Lewis Carol, Alice in Wonderland, em 2010.

É provavelmente no cinema de animação onde proliferam de forma mais visível as adaptações de “contos de fadas” ou as histórias inspiradas no género. Os primeiros passos nesse sentido foram dados por Lotte Reiniger, que a partir de um trabalho característico sobre a técnica de “sombra chinesa” adaptou as Mil e Uma Noites, em The

440), em The Frog Prince, de 1954, ou “A Gata Borralheira” (ATU 510A), em

Cinderella, de 1955 (Haase 2007, Warner 2014).

A massificação dos “contos de fadas” tem lugar, no entanto, com Walt Disney e a industria cinematográfica que fundou. A suas versões “embonecadas”, para utilizar um termo de Bruno Bettelheim (2010), são muitas vezes criticadas por veicularem valores conservadores sobre o género e as classes (Haase 2077a: 347). De qualquer forma, de

Snow White and the Seven Dwarfs, em 1937, passando por Sleeping Beauty, em 1956, até The Little Mermaid, em 1989, ou The Beauty and the Beast, em 1991, as personagens

animadas criadas pelos estúdios Disney ficaram impressas no imaginário popular contemporâneo de forma indiscutível. A adaptação de “contos de fadas” para o cinema de animação, ou os filmes cujas narrativas emprestam os motivos e o imaginário mágico destes, são constantes na produção norte-americana e, por conseguinte, nas salas de cinema onde chega a massiva distribuição dessa industria, onde se incluem também estúdios como a Dreamworks ou a Pixar. Também no cinema de animação, as adaptações gradualmente procuraram inverter os valores sobre as classes e, principalmente, sobre os géneros, normalmente associados a esse tipo de narrativas: em Shrek, de 2001, a princesa Fiona foge aos conceitos de beleza estabelecidos, em Tangled, de 2010, Rapunzel é uma heroína ativa e aventureira, em Frozen, de 2013, a irmã mais nova resiste a tempestades e provações para salvar a irmã mais velha, tarefa que nos contos tradicionais normalmente cabe aos rapazes (Warner 2014: 166).

A análise da natureza das adaptações operadas pelos maiores difusores dos “contos de fada”, como Perrault e os irmãos Grimm, nas suas versões literárias, ou a Disney, na era do cinema, e o modo como serviu os interesses de determinadas épocas, de uma elite e de um poder masculino e conservador, tornou-se uma pedra de toque no estudo sobre este género de narrativas (Zipes 1979, Warner 2014). Entre as questões que essas abordagens apontam, uma das que maior atenção tem merecido diz respeito às representações da mulher. Também nas práticas artísticas contemporâneas, a subversão dos temas e dos motivos associados às versões mais “conservadoras” dos “contos de fadas”, a sua livre apropriação e adaptação, tem sido um espaço recorrente de experimentação artística: da pintura de Paula Rego, passando pela célebre escrita de Angela Carter ou, ainda, pela fotografia de Cindy Sherman, um lugar de questionamento da representação da mulher no universo dos “contos de fadas” encontra uma pertinência inequívoca no pensamento e na arte contemporânea (Warner 2014).

Esta profusão do imaginário maravilhoso não termina nas adaptações artísticas, mas abarca todos os meios de comunicação presentes nas sociedades contemporâneas. Neste contexto, a publicidade parece cumprir um papel fundamental na difusão intensiva de lugares comuns e de preconceitos associados aos “contos de fadas”. Patricia A. Odber de Baubeta, ao analisar a profusão de motivos maravilhosos na publicidade, insiste no efeito “reconfortante” dos “contos de fadas” e no seu poder persuasivo: “fairy tales are amusing, attractive and acessible” (Baubeta 1997: 37). Apesar da paródia ter um lugar especial na revisitação dos “contos de fadas” pelos criativos publicitários (ibidem), é possível reconhecer um tendência generalizada, e muito séria, para o aproveitamento dos apelos do consumismo fundado no estatuto social e na objetivação sexual da mulher, veiculando mais uma vez um “white, middle-class, male-dominated ideal”, para citar novamente Haase (2007a: 334). As evidentes conotações sexuais da imagem da “capuchinho vermelho” tornou a personagem uma constante na publicidade, acompanhada ou não pelo “lobo mau”: num filme publicitário do Chanel nº5, o lobo obedece à jovem perfumada; numa imagem publicitária da bebida Campari, uma “capuchinho vermelho” com uma das pernas sensualmente descobertas tem o lobo pela trela; já no caso das ferramentas Vito, uma sensual “capuchinho vermelho” lida com uma motosserra. Com feito, todas são “capuchinhos vermelhos” sem medo do “lobo mau”: mas que dizer das representações que estas imagens veiculam, senão que aportam um apelo sexual imediato e uma objetivação da mulher tão comum na linguagem publicitária? Por outro lado, estão também muito divulgadas as publicidades de detergentes e produtos de limpeza que recorrem a este imaginário, numa associação entre a dona de casa e a “fada do lar”, como no exemplo paradigmático do detergente fairy.

As questões levantadas pela presença do imaginário dos “contos de fadas” na cultura popular e nos meios de comunicação está bem resumida por Patricia A. Odber de Baubeta quando nota que:

Feminist critics bemoan the perpetuation of certain stereotypical types of female behaviour, pointing to the passivity, submissiveness and helplessness of fairy tale heroines. Psychoanalytical commentators use the ideas of Freud and Jung as their point of departure, and there is more than one doctoral thesis waiting to be written on advertisements as a locus for (Lacanian) desire. Marxist analysts comment in deeply pessimistic terms on mass-mediated culture, and those dedicated to Cultural and Media studies frequently express dismay about the “disneyfication” of fairy tales and folklore in general (Baubeta 1997: 38).

De qualquer forma, à parte as problemáticas que as adaptações dos “contos de fadas” aportam sobre os discursos do poder, faltaria ainda mencionar, na variedade de

meios de comunicação aqui enumerados, a profusão do imaginário maravilhoso na produção ficcional televisiva. De facto, as fadas, os dragões, os gigantes e outros seres mágicos preenchem a programação de manhã à noite, em narrativas épicas que seguem as atribulações de heróis e heroínas, seja nas séries de ficção para adultos e jovens, seja nas animações dedicadas ao público infantil. São disto exemplos séries recentes como

Once Upon a Time, da ABC, e a adaptação da célebre obra de George R. R. Martin para

a televisão, Game of Thrones, da HBO. No caso dos desenhos de animação, a abundância é tão expressiva que dispensa uma enumeração de exemplos. No entanto, e como não foi referido a propósito dos casos exemplares no cinema, é pertinente lembrar os desenhos animados inspirados na famosa Sininho, companheira de Peter Pan desde a peça de James Matthew Barrie, estreada em 1904, e que já foi adaptada para o palco e para o ecrã inúmeras vezes.

Finalmente, refere-se os jogos de vídeo e computador, que, ora inspirados na produção cinematográfica, ora vice versa, são outro exemplo do modo como o imaginário maravilhoso e fantástico é omnipresente na cultura popular contemporânea. Jogos como Dungeons & Dragons, Dragon Age, Final Fantasy, World of Warcraft, entre muitos outros, apresentam criaturas fantásticas, lugares e objetos mágicos, heróis e heroínas auxiliados por animais falantes. Sem dúvida, restaria ainda mencionar o fenómeno mundial do jogo de cartas Magic: The Gathering, com uma comunidade internacional dedicada, jogadores profissionais, competições e conferências por todo o mundo.

De forma sucinta e inspirada, Jack Zipes resumia, há três décadas, a frequente aparição do imaginário maravilhoso na cultura popular e nos meios de comunicação da seguinte forma:

Everywhere one turns today fairy tales and fairy-tale motifs pop up like magic. Bookshops are flooded with fairy tales by Tolkien, Hesse, the Grimm Brothers, Andersen, C. S. Lewis, and scores of sumptuously illustrated fantasy works. Schools and theatres perform a wide range of spectacular fairy-tale plays for the benefit of children. Operas and musical works are based on fairy-tales themes. Famous actors make fairy-tales recordings for the radio and other mass-media outlets. Aside from the Disney vintage productions, numerous films incorporate fairy-tale motifs and plots. Even porno films make lascivious use of Snow White and the Seven Dwarfs and Sleeping Beauty. Fairy-tale scenes and figures are employed in advertisements, window decorations, TV commercials, restaurant signs, and club insignias. One can buy banners, posters, t-shirts, towels, bathing suits, stickers, ashtrays, and other household goods plastered with fairy-tale designs. Indeed, the fantastic projections of the fairy-tale world appear to have become "in", consuming the reality of our everyday life and invading the inner sanctum of our subjective world (Zipes 1979: 2).

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 91-98)