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A LEGITIMAÇÃO DAS ANILES FABULAE

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 107-110)

II. DO DESENVOLVIMENTO, ESPECIALIZAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE NARRAÇÃO ORAL

6. A LEGITIMAÇÃO DAS ANILES FABULAE

Como observado no ponto anterior, o contexto de maior desenvolvimento das práticas de narração oral tem sido o da educação e do entretenimento das camadas mais jovens. Foram as suas aplicabilidades lúdicas e pedagógicas que permitiram uma especialização e, por sua vez, a profissionalização de uma atividade que parece ter sempre pertencido a este meio: a infância. No entanto, o enquadramento da prática de contar histórias no contexto do kindergarten, da escola e da biblioteca, conforme retratado, está estritamente associado a um processo de legitimação dos modelos e temas das narrativas ditas tradicionais, os “contos de fadas”, para utilizar o termo literário de forma generalizada.

A literatura clássica grega apresenta, como refere Anna Pellowski (1990: 5-8), várias referências ao ato de contar histórias no contexto da educação e do entretenimento dos mais novos, mostrando-se seriamente preocupada com o conteúdo e o género de histórias contadas às crianças. Nestas referências, contar histórias é representada como atividade de um determinado grupo etário e social encarregue da educação e do entretenimento dos mais jovens, como amas, criadas, ou parentes idosos. O repertório destes antigos educadores ficou conhecido na tradição latina como aniles fabulae, e está representado no Asno de Ouro de Apuleio de forma paradigmática, como referido, em que uma velha embriagada entretém uma jovem raptada contando-lhe a história de Eros e Psique.

Como notam diversos autores, este corpus de narrativas encontrou, ao longo dos tempos, uma grande resistência por parte das elites culturais (Warner 1995, Heywood 2001, Graverini 2006). É de Platão que nos chega a primeira expressão do preconceito, referindo-se a este tipo de histórias nos seguintes termos: “a false myth, a story that has no rational ground and that should have no place in the philosopher´s utopia” (Garvernini 2006: 90). Segundo Marina Warner, é na obra do filósofo ateniense, mais especificamente em Górgias, que se encontra aquela que é provavelmente a referência mais antiga a este tipo de prática e de narrativas (Warner 1995: 14). No entanto, Platão

também tece considerações sobre o assunto na República: através da argumentações de Sócrates, o filósofo considera que todas as histórias que mães e amas contam às crianças deveriam ser cuidadosamente escolhidas, de modo a excluir as que têm evidentes efeitos nefastos na educação dos jovens cidadãos (Gavernini 2006: 90-93). Neste sentido, se as aplicabilidades da prática de contar histórias é reconhecida, bem como os benefícios de certas histórias (escolhidas e moldadas pela elite ateniense), o tipo de narrativas presente no repertório das velhas amas estaria, pela vontade do filósofo, condenado à censura. Depois de Platão, os intelectuais romanos não foram menos antagónicos a este género de narrativas. Se no entendimento de Quintiliano as histórias triviais e moralmente repugnantes, do tipo das aniles fabulae, deveriam dar lugar aos mitos tratados por autores de renome, para Séneca, qualquer história fantasiosa consistia numa literatura inútil, destituída de moral e filosofia (ibidem).

Assim, ao longo da história do pensamento europeu, o termo aniles fabulae ganhou um significado específico, associado a um tipo de história fantasiosa, desprovida de verdade e de ensinamentos úteis. Conforme propõe Marina Warner:

It is still, in English, an ambiguous phrase: an old wives’ tales means a piece of nonsense, a tissue of terror, an ancient act of deception, of self and others, idle talk. As Marlow writes in Dr Faustus, "Tush, these are trifles and mere old wives’ tales". On a par with trifles, "mere old wives’ tales" carry connotations of error, of false counsel, ignorance, prejudice and fallacious nostrums – against heartbreak as well as headache; similarly "fairy tale", as a derogatory term, implies fantasy, escapism, invention, the unreliable consolations of romance (Warner 1995: 19, itálico no original). Em Portugal, os mesmos preconceitos estão associados ao termo “histórias da carochinha”, que parece, de facto, veicular as mesmas ideias que o termo inglês. Associado ao sentido pejorativo que esses termos carregam, está a polémica sobre a adequação de um repertório tradicional ao entretenimento e à educação dos mais novos. John Locke, cujas teorias na área da educação foram extremamente influentes a partir do século XVIII, apesar de reconhecer a importância de histórias como as fábulas de Esopo na aprendizagem da leitura e da escrita, bem como da moral e do bom comportamento, considerava os “contos de fadas” uma poluição mental que poderia afastar as crianças da religião (Dunning 1999: 63 Jean Jacques Rousseau, um dos fundadores de um pensamento sobre a infância e a educação, desaprovava os “contos de fadas”, preferindo um imaginário mais quotidiano e real (Haase 2007a: 186). Com efeito, o Iluminismo potenciou um forte antagonismo para com estes repertórios, consequência de um processo que Jack Zipes descreve como:

The raise of the fairy tale in the Western world as the mass-mediated cultural form of the folk tale coincided with the decline of feudalism and the formation of the bourgeois public sphere. Therefore, it quickly lost its function of affirming absolutist ideology and experienced a curious development at the end of the eighteenth century and throughout the nineteenth century. On the one hand, the dominant, conservative bourgeois groups began to consider the folk and fairy tales amoral because they did not rejoice in the virtues of order, discipline, industry, modesty, cleanliness, etc. In particular, they were regarded as harmful for children since their imaginative components might give young ones "crazy ideas", i.e., suggest ways to rebel against authority and patriarchal rule in family (Zipes 1979:12).

Foi necessária uma mudança de perspetiva em relação a este corpus de narrativas para que, a partir do fim do século XIX, o seu uso fosse considerado apropriado no contexto das práticas educacionais, tanto nos kindergarten como nas escolas e nas bibliotecas. Este processo de legitimação dos “contos de fadas” parece ter a sua origem no Romantismo, como referido, o que permite que este repertório, seja na sua vertente literária, seja nas práticas de narração oral, transitem de um contexto familiar e comunitário para um espaço institucionalizado. Ao combinar um interesse pelas expressões “populares” com uma adoração pela pureza e pela inocência da infância, os ideais românticos produziram um vasto trabalho de adaptações de contos tradicionais dedicados ao público infantil, como já referido. Publicada pela primeira vez em 1812, a célebre coleção dos irmãos Grimm (1997), apesar de não ser isolada, nem pioneira, é o melhor exemplo dessa tendência. Ainda assim, as resistências ao imaginário maravilhoso dos contos tradicionais persistiram, levando a que as versões para o público infantil fossem adaptadas ao gosto e à moral das elites alfabetizadas e das classes em ascensão.

É neste contexto que os “contos de fadas” encontraram um aliado fundamental na psicanálise, disciplina emergente que viria contribuir para uma mudança de atitude para com o material maravilhoso dos contos e, finalmente, para a sua legitimação enquanto instrumento pedagógico e terapêutico. As teorias de Sigmund Freud e, em especial, de Carl Jung estão no centro do processo de legitimação das aniles fabulae que teve lugar ao longo do século XX. A expressão mais divulgada dessa corrente encontra-se, sem dúvida, na obra de Bruno Bettelheim, The Uses of Enchantment: The Meaning and

Importance of Fairy Tales (Bettelheim 2010), que constitui um trabalho de referência nos

discursos sobre os usos pedagógicos e terapêuticos dos “contos de fadas”. Conforme nota Veronika Görög-Karady, estas teorias fundamentaram uma reavaliação desse repertório no trabalho para a infância:

Psychoanalysis and other psychological therapies have contributed for their part to the cultural legitimation of the fantastic and the supernatural. Not only have the terrifying aspects of magic tales

been reinterpreted as the acting out of suppressed desires, but even the idea that they are harmful to children´s socialization has been revised (Görög-Karady 1990: 177).

Deste modo, paralelamente ao processo de institucionalização dos espaços dedicados à educação dos mais novos, onde a leitura e a narração de histórias foram desde logo adotados enquanto instrumento de trabalho pelos educadores, a legitimação de um conjunto de narrativas, aqui genericamente designadas aniles fabulae, constituiu um dos fatores essenciais para o desenvolvimento das práticas de narração oral. Se foi no espaço da escola e da biblioteca que os primeiros narradores realizaram um percurso de especialização e profissionalização, os seus discursos, práticas e repertórios foram finalmente legitimados por uma atitude recetiva para com os “contos de fadas”. Foi este processo que permitiu, em primeiro lugar, a profissionalização das práticas de narração oral ao longo do século XX e, no que é possível aferir, de forma mais consistente, nas suas últimas décadas.

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 107-110)