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IV. DA PRÁTICA DOS NARRADORES ORAIS

2. R EPERTÓRIOS

O elemento central da prática do narrador oral é o seu repertório, conforme referem diversos autores (Patrini 2002, Sanfilippo 2007, Palleiro e Fischman 2009). A sua relação com esse património individual, com esse conjunto de histórias disponíveis na memória e experimentadas na prática, está no centro do seu percurso e da sua identidade artística. Novamente, e como observado, esse protagonismo da “história”, do “conto”, reflete a influência dos discursos revivalistas. No entanto, o repertório constitui efetivamente a ferramenta fundamental do narrador profissional que desenvolve com regularidade a sua atividade, confrontado continuamente com diferentes públicos e contextos.

A multiplicidade de públicos e contextos com os quais se confronta um narrador profissional exige um repertório versátil e diverso. Bruno de La Salle, em 1989, no

“contador contemporâneo” (Calame-Griaule 2001: 140-152). Na proposta dessa figura fundadora do renouveau du conte, encontra-se uma variedade de géneros de narrativas, o que reflete as exigências de uma atividade diversa em termos de públicos e contextos. Num discurso manifestamente enquadrado no vetor revivalista, além dos relatos de caráter tradicional, o autor propõe que um repertório ideal inclua uma “história inventada” e alguns poemas (ibidem: 148). O “conto de autor”, parece estar ausente. Apesar disso, esse repertório ideal inclui alguns “grandes relatos literários ou legendários” (ibidem), termos que permitem ambiguidades, não sendo possível aferir, no entendimento de La Salle, quais serão.

Verifica-se que, em França e no Reino Unido, os relatos de caráter tradicional preenchem, quase de forma exclusiva, os repertórios desses artistas. O facto é corroborado por Veronika Görög-Karady (1990: 181-183) e por Simon Heywood, que analisou exaustivamente eventos realizados no Reino Unido durante o ano de 1996 (Heywood 2001: 326-330). Essa tendência é visível ainda hoje, como observados em Abbi Patrix (3) e Ben Haggarty (2).

Neste ponto, é necessário averiguar o entendimento desses artistas relativamente ao que consideram ser o relato “tradicional”. A indefinição e a abrangência do termo permite confusões. A propósito da natureza dos repertórios, Marina Sanifilippo reconhece uma realidade que possibilita refletir sobre essa questão:

El narrador actual que cuente cuentos de tradición oral puede encontrarse en dos situaciones. La primera, consiste en estar aún vinculado a la cadena de transmisión oral o, por lo menos, volver a ella gracias al trabajo de campo; la segunda, consiste en proponerse volver a oralizar cuentos de tradición oral recopilados por folcloristas, etnógrafos o lingüistas a partir del siglo XIX. Entre los narradores encuestados parecen ser muy pocos los que se encuentran en la primera situación (Sanfilippo 2007: 183, itálico no original).

Conforme reconhece Sanfilippo, poucos são aqueles que ancoram o seu repertório em fontes orais. Como se viu na descrição do vetor revivalista, uma perspetiva “etnológica” enquadra artistas que têm, tendencialmente, um repertório constituído por esse tipo de fontes. No entanto, até mesmo esses, que são próximos da cultura que representam, recorrem, por vezes, às fontes escritas. Maria Patrini reconhece a mesma realidade no contexto francês:

Le conteur contemporain, issu de divers milieux sociaux, politiques et esthétiques, connaît les nouvelles pratiques culturelles. Il est lecteur avant d’être interprète, compositeur, recréateur. Aujourd’hui, les sources du conteur son les plus souvent écrites (Patrini 2002: 204).

Patrick Ryan identifica o mesmo fenómeno no contexto anglo-saxónico. Evidencia o que, para o autor, se apresenta como uma incoerência entre o discurso e a prática desses artistas:

Contemporary tellers’ narrative texts can be sourced primarily from literary sources, though few realize it. Even if learned by listening to other contemporary tellers, those stories are likely learned from books. Few do primary research or field recordings, yet continually refer to their repertoires as “traditional” (Ryan 2003: 83).

Ryan identifica, assim, um problema central da análise dos repertórios desses artistas, que tem contaminado o presente estudo desde o princípio: a aplicação de termos como “tradicional” e “oral” nos discursos revivalistas. Esse não é o caso dos artistas observados, que revelam uma atenção e um distanciamento em relação a esses conceitos, utilizando-os de forma enquadrada. Todos reconhecem a primazia das suas fontes escritas, mas manifestam a inclinação para o que consideram uma matéria “tradicional” (Dahlsveen 2, Fontinha 4, Haggarty 2, Imaz 3, Patrix 3, Weisse 2), mesmo quando pressupõe um processo de escrita original (Buenaventura 3). Neste contexto, António Fontinha é um caso singular, não só entre os narradores observados: tem um repertório em que as fontes orais ocupam um lugar de destaque, resultado dos seus vários trabalhos de recolha, com os quais contribuiu para o Arquivo do Conto Tradicional Português do Centro de Estudos Ataíde de Oliveira da Universidade do Algarve (Fontinha 1997, 2003, 2006a, 2006b). Ainda assim, um processo criativo que envolve o trabalho comparativo entre versões determina a importância das fontes escritas (Fontinha 4).

Os repertórios desses artistas incluem diversos tipos de narrativas e, por isso, se opta, às vezes, pelo termo “relato”. Novamente, as questões dos géneros (conto, fábula, mito, lenda) são estranhas ao território desta reflexão, temática pouco consensual, que tem sido alvo de atenção noutros estudos (Cardigos 1996:19-22). A diversidade temática e formal desses repertórios cabe melhor num conceito abrangente, ainda que no meio dos movimentos de narração oral, como observado, o termo “conto” seja aglutinador. Do mesmo modo, a adjetivação “tradicional”, sem especificar a natureza “oral” ou “escrita” dos relatos, pretende minimizar a polémica dicotomia oral/escrito. Como referido, cabem nesses repertórios obras de Bocácio, Chaucer, Perrault, Grimm, entre outros, bem como um conjunto de textos como As Mil e Uma Noites, o Mabinogion, ou o Mahabharata, para dar alguns exemplos de referência. São textos que, apesar das suas relações com os patrimónios orais, configuram uma tradição literária reconhecida enquanto tal. Neste sentido, o presente estudo utiliza a designação “oral” apenas para identificar a natureza

das fontes desses textos, sem pretender reconhecer a “pureza” dos seus processos de transmissão e das suas culturas de origem, na aceção de Walter Ong (2002). Antes de mais, a especificidade das fontes orais está nos processo criativos que partem de uma experiência de escuta, normalmente associados a uma “impressão” da história indissociável do seu contexto e dos seus agentes. Isto acarreta, regra geral, aspetos manifestamente afetivos e, acima de tudo, determina procedimentos de memorização e de adaptação que não implicam, necessariamente, a existência de um texto escrito. Deste modo, a natureza oral ou escrita das fontes deve ser minimizada, uma vez reconhecido que a maior parte desses artistas se serve, regra geral, das segundas. Com efeito, as consequências da natureza da fonte, oral ou escrita, são difíceis de reconhecer na performance, ainda que possam moldar os processos de criação. Estes matizes, que a presença ou não de um texto escrito emprestam aos processos criativos, serão tratadas no quarto capítulo, no ponto dedicado aos processos criativos. Por agora, é útil estabelecer que não é a natureza da fonte que serve de critério para distinguir esses repertórios, mas as consequências performativas das suas estruturas e temas, que propõe contratos de relação distintos entre artista e assistência e recursos poéticos particulares.

Apesar da inclinação generalizada, em contexto europeu, para os repertórios considerados tradicionais, ela não é universal. Conforme observado por Marina Sanfilippo, muitos narradores espanhóis e italianos têm nos seus repertórios aquilo a que se tem chamado, no vocabulário do meio, “contos de autor” (Sanfilippo 2007: 175-203). Neste sentido, obras de autores sul-americanos como Eduardo Galeano e Marina Colasanti estão presentes, muitas vezes, em eventos de narração oral em Espanha e Portugal, para citar apenas dois exemplos paradigmáticos. Nos contextos próximos da biblioteca e da promoção da leitura, que, como referido, configuram um espaço por excelência das atividades de narração nos dois países, a presença de obras da literatura infantojuvenil é marcante, incluindo não apenas adaptações de contos tradicionais, como textos originais.

As opções de repertório manifestam as tensões entre as ideias veiculadas pelos vetores dinamizadores. O vetor utilitarista incute no repertório dos narradores e nos seus espaços, em especial no trabalho para a infância, como a escola e a biblioteca, as adaptações de contos tradicionais presentes nas coletâneas mais conhecidas ou nos álbuns ilustrados de uma profícua literatura infantojuvenil. Por sua vez, o vetor revivalista veicula privilegiadamente relatos presentes nas coleções de contos, nas

recolhas etnográficas e, quando possível, nas fontes orais. Finalmente, o vetor estetizante, que também faz uso das coleções de contos, e que guarda um lugar especial para as os contos maravilhosos e para as epopeias, pode veicular obras de autores modernos e contemporâneos.

Neste sentido, como referido a propósito da afirmação literária da narrativa breve enquanto fator dinamizador dos movimentos de narração oral, torna-se clara uma distinção: de um lado, está o relato dito tradicional, o tale, em inglês (seja na forma de conto, de narrativa épica ou mítica); e de outro lado, está o conto de autor, a short story, em inglês, cujo desenvolvimento foi então observado. O relato tradicional, independentemente da sua fonte, oral ou escrita, identifica-se: pelas suas estruturas narrativas, conforme os tipos de conto reconhecidos nos catálogos internacionais, ou próximas destes; por corresponder a outros tipos de patrimónios orais como as lendas, os romances ou as adivinhas; pelas suas temáticas e por representarem um tempo passado, localizadas, regra geral, através de fórmulas como “era uma vez”. Por sua vez, no relato de autor reconhece-se uma maior manipulação do tempo e da perspetiva, encontram-se estruturas originais, conceitos e ideias próprias da modernidade. O relato de autor pode, também, subverter os discursos tradicionais, especialmente no que diz respeito aos valores sobre as classes e os géneros, debruçando-se sobre os temas e os universos próprios da sua contemporaneidade.

No entanto, as formas vivas insistem em resistir a categorizações e nem sempre é estanque a natureza do relato. De resto, uma teoria do género, sempre questionável pelas formas narrativas limítrofes, está excluída desta tese, antes de mais, pelas competências e objetivos expressos. Torna-se necessário, assim, considerar essas duas formas, o relato tradicional e o conto de autor, enquanto ideais opostos que preveem, no espaço que os separam, múltiplas possibilidades e tonalidades.

No que concerne a análise das performances, esses opostos absolutos têm consequências divergentes em dois aspetos: nos contratos de relação que propõem entre narrador e assistência (o relato tradicional, ao rejeitar autoridade, se propõe como um património partilhado entre o artista e o seu público); e em alguns recursos poéticos que são ou próprios das formas tradicionais (como o discurso na terceira-pessoa, o enfoque na ação, os paralelismos e as repetições), ou das formas contemporâneas (como o discurso de um narrador diegético, o investimento nos aspetos psicológicos das personagens e nas descrições, as analepses). Antes de prosseguir, salienta-se, uma vez

mais, que estes elementos de distinção se apresentam enquanto tendências e não formas absolutas.

Esta oposição entre o relato tradicional e o autoral, enquadrada no jogo de tensões criado pela maior ou menor influência de discursos revivalistas, não pode ser entendida isoladamente de outros elementos poéticos. O relato tradicional surge, quase sempre, acompanhado de outros elementos que permitem identificar, de forma mais ou menos expressiva, um discurso revivalista. Interessa salientar, novamente, que esses opostos se manifestam enquanto tendências que, raramente, são absolutas. Os repertórios dos narradores profissionais são normalmente de natureza diversa, no sentido de satisfazer uma prática que é também diversa, conforme propõe Bruno de La Salle, atrás referido. Muito narradores terão repertórios que oscilam entre as duas tendências. No fim, é possível reconhecer que no cerne dessa oposição está a questão da autoridade e do vínculo ou não a uma tradição.

No repertório dos narradores profissionais estão também presentes, em alguns contextos mais do que noutros, os relatos pessoais. Podem ser criados a partir de uma experiência efetiva ou através da personalização de um texto autoral. Segundo refere Patrick Ryan, esse tipo de relato está muito presente no repertório de narradores norte- americanos, consequência, segundo o autor, não só das propostas artísticas, mas de questões legais associadas aos direitos de autor e de propriedade sobre patrimónios culturais (Ryan 2003: 84-85). No entanto, os relatos breves de caráter pessoal estão presentes nos repertórios de artistas de todos os contextos geográficos, que deles se servem especialmente como elemento de enquadramento da performance e de ligação entre relatos. Nesses casos, conforme nota também Simon Heywood (2001: 326), esses relatos breves orbitam à volta das histórias contadas, e servem essencialmente de instrumento de gestão da relação com a assistência. Conforme refere Richard Bauman, apoiando-se no trabalho de Erving Goffman, as narrativas pessoais são “important instruments in the operation of the interaction order, including the presentation of self and the construction and communication of a sense of situational reality (Bauman 1986: 33). E é nesse sentido, enquanto instrumento de gestão da relação com o público, que a análise desses relatos pode ser especialmente pertinente.

Por outro lado, é possível reconhecer, em alguns casos, um tendência para personalizar as histórias narradas, independentemente da sua natureza ou fonte:

Narrative texts used in performances are often personalised to create the storytelling experience. This actually mirrors modern literary practices, and is evidence of either cotemporary literary influences on contemporary storytelling, or innate tendency in humans to personalize and contextualize fiction they relate, especially in oral storytelling (Ryan 2003: 84).

Nesses casos, o performer pode personificar um narrador autodiegético, ao assumir um discurso na primeira pessoa e o protagonismo da história, ou apresentar-se como participante secundário dos eventos narrados, personificando, assim, um narrador homodiegético (Fludernik 2009: 31). Pode, ainda, apresentar determinada personagem ou lugar como realidades efetivas com as quais tem laços de familiaridade. De qualquer modo, os laços que apresenta com os espaços e as personagens da história estabelecem um primeiro contrato de veracidade, que podem ou não ser subvertidos ao longo da narrativa. O discurso na primeira pessoa, ou a representação de uma história na qual o narrador tem laços familiares ou sociais com as personagens e os espaços, como proposto por Bauman, “implies both a particular class of reported events, an a particular point of view” (1986: 33).

A copresença do narrador e da assistência, questão fundamental no caso da performance, mas ausente na experiência da leitura ou do cinema, por exemplo, estabelece um contrato particular entre os participantes. Nesse caso, ao apresentar-se como personagem ou testemunha dos eventos narrados, essa copresença estabelece um contrato de veracidade: apresentada como experiência pessoal daquela pessoa/ narrador efetivo, propõe-se que a história seja verdadeira. No decorrer da narrativa, pela introdução de elementos improváveis, de superlativos ou hipérboles, a história pode se revelar uma ficção e a subversão do contrato inicial pode ter uma eficácia cómica, estabelecida num entendimento implícito e recíproco entre narrador e assistência. Os cambiantes nos contratos dessa natureza na narração de relatos pessoais e de tall tales são observadas por Bauman (ibidem: 11-32).

De outro modo, a personificação de textos autorais pode criar situações de ambiguidade na própria identidade da pessoa/narrador. Uma história contada na primeira pessoa, supostamente fundada na experiência efetiva, o que pressupõe uma exposição pessoal perante uma assistência concreta, estabelece uma proximidade e cumplicidade apenas possível pela copresença. Uma vez estabelecido esse contrato de veracidade e proximidade, a revelação de que a história contada é, na realidade, um texto de autor torna dúbia a própria identidade do narrador: configura um jogo em que só uma das

partes soube as regras, o que vicia naturalmente o resultado, no que diz respeito à esfera das relações.

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 168-175)