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A TRADIÇÃO LITERÁRIA

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 87-91)

II. DO DESENVOLVIMENTO, ESPECIALIZAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE NARRAÇÃO ORAL

2. A TRADIÇÃO LITERÁRIA

Outro fator decisivo no desenvolvimento dos movimentos de narração oral, ligado ao papel central que as narrativas têm no seu seio, concretiza-se na celebridade de uma tradição literária com estreitas relações com a tradição oral. É este corpus literário que está disponível aos novos narradores quando estes, movidos pelo interesse por estes imaginários, vão à procura de repertórios que se querem tradicionais. Poucos serão os narradores que têm uma relação efetiva com uma tradição oral. E mesmo no caso em que isto se verifica, ou por uma memória familiar em que a prática de contar histórias está presente, ou por serem originários de contextos culturais onde o papel da oralidade é ainda determinante, este corpus literário continua a ser uma das fontes mais expressivas dos seus repertórios (Sanfilippo 2007: 175-182, Palleiro e Fischman 2009: 49-50). Imersos numa cultura urbana e escrita, grande parte das referências que estes artistas têm sobre estas narrativas encontra-se numa tradição literária que há muito se desenvolve numa estreita relação com as tradições orais. Corpo diverso, se parte dele se pretende fixação de patrimónios “populares”, outra configura uma tradição literária em si mesma, que, apesar dos evidentes paralelismos com as narrativas transmitidas oralmente, realiza géneros específicos, revelando gostos de determinadas épocas e contextos. No entanto, em comum, estas formas literárias construíram ao longo do tempo uma imagem do ato de contar e ouvir histórias que alimenta a ideia de oralidade veiculada pelos discursos dinamizadores deste “renascimento”. Conforme nota Marina Warner:

This is the essential point: fairy tales on the page invoke live voices, telling stories aloud. A memory of a living narrator reverberates in the genre, even when the story is manifestly a highly wrought literary text. Authors like Straparola and Basile and D’ Aulnoy are playacting, stepping into the roles of Sharazad or Mother Goose, because one of the things that fairy tale promises is an unbroken link with the past (Warner 2014: 53).

A diversidade e antiguidade de uma tal tradição, que reproduz na escrita, não apenas as narrativas, mas o próprio ato de contar, torna difícil seguir um curso que não seja pontuado por imprecisões. Juan José Prat Ferrer, com o seu trabalho exaustivo,

Historia del Cuento Tradicional (Ferrer 2013), é um guia útil. No percurso que, de forma

resumida agora se apresenta, interessa ter em conta: os textos mais recorrentes na bibliografia sobre estes estudos e, principalmente, aqueles que de forma mais visível influenciam os repertórios dos artistas enquadrados nos movimentos de narração oral.

Neste sentido, é preciso referir, uma vez mais, os contos presentes nos papiros egípcios de Golenischeff e Westcar, exemplos de uma tradição pré-clássica de narrativas breves enquadradas. Já referidos na reflexão sobre as limitações de uma abordagem histórica, estes exemplos configuram uma tradição que teve continuidade na literatura clássica, produzindo narrativas maravilhosas que terão estreitas relações com os contos de tradição oral. É o caso das Metamorfoses de Ovídeo e do Asno de Ouro de Aplueio, em que figura a história de Eros e Psique, narrativa que encontra ressonâncias no ciclo da “Mulher em Busca do Marido Perdido” (ATU425) e na sua mais famosa variante, “A Bela e o Monstro” (ATU 425C) (ibidem: 63). Ainda na tradição clássica, as fábulas imortalizadas por Esopo e Fedro são também exemplo de uma tradição literária mais tarde recuperada por La Fontaine, na segunda metade do século XVII.

Ao longo da Idade Média, os exempla, breves narrativas moralizantes que visavam a predicação, reunidas em inúmeras coleções para uso de sacerdotes, configuram um grande manancial de narrativas com evidentes paralelismos com a tradição oral. Uma das coleções mais referidas é a Gesta Romanorum, cujo manuscrito mais antigo data de 1342 (ibidem: 158-165).

Do mesmo modo, um conjunto de obras que, apesar das evidentes adaptações, dá notícia de uma tradição de narrativas pré-cristãs, de origem celta e germânica, foram fixadas também por membros do clero (ibidem: 120-129). Um dos exemplos mais antigos será a Viagem de Bran, obra da literatura irlandesa medieval, escrita no século VIII, aproximadamente, que terá influenciado as viagens de São Brandão. A par da tradição das “viagens”, uma épica irlandesa, com forte influência cristã, centrada em heróis como Cú Chulainn ou Finn McCool, está reunida, em grande parte, nos manuscritos O Livro da Vaca Dun e O Livro de Leinster, compilados, aproximadamente, no século XII.

Também representante de uma tradição celta, um conjunto de narrativas galesas foram reunidas no Mabinogion, compiladas e traduzidas para o inglês por Lady Charlotte Guest, no século XIX, a partir de O Livro Branco de Rhydderch e do Livro Vermelho de

tradição britânica são: a Historia Brittonum, escrita algures entre os séculos IX e XI, e onde figura a famosa história de “Tristão e Isolda”; e a Historia Regum Britanniae, escrita por Geoffrey de Monmouth, na primeira metade do século XII, que inclui, entre outras narrativas, lendas arturianas e uma versão de “O amor como o sal” (ATU 923) (ibidem: 124).

Representantes de uma tradição germânica, fixada por escrito a partir do século XIII, estão obras como a Gesta Danorum, do dinamarquês Saxo Grammaticus, que inclui narrativas com evidentes paralelismos com a tradição oral, e onde figura uma interessante versão da história de Hamlet imortalizada por Shakespeare (ibidem: 125). É na Islândia, todavia, que grande parte dessa tradição será fixada nas Eddas e Sagas, constituindo a maior fonte sobre a história, a mitologia e o folclore escandinavo (ibidem: 125-129).

Mais a sul, a épica heroica encontra o seu lugar no ideal da cavalaria com as “canções de gesta” de origem francesa, cujo modelo, bastante divulgado, tem por mais célebre exemplo a Canção de Rolando, aparentemente composta no século XI. Do mesmo modo, foram bastante divulgados os “romances de cavalaria”, como na obra de Chrétien de Troyes, produzida na segunda metade do século XII, que privilegia a chamada “matéria da Bretanha”. Aí figuram o Rei Artur, os cavaleiros da Távola Redonda e a demanda pelo Santo Graal, imaginário mais tarde também celebrizado na obra de Sir Thomas Malory, A Morte de Artur, publicada pela primeira vez em 1485. No caso da Península Ibérica, o ideal cavaleiresco incide sobre a reconquista, como no exemplo mais significativo de El Cantar de Mio Cid (ibidem: 147-151).

Paralelamente, a tradição dos contos jocosos encontrou o seu espaço, entre outros, no género dos fabliaux, com origem no nordeste francês, entre os séculos XII e XIII, mais tarde divulgados em outras línguas. Como os exempla, tendem a ser realistas, sem elementos maravilhosos, mas ao contrário destes, não têm uma pretensão moralizante. Os

fabliaux perdem depois território para as novelas italianas, mas voltam a ser publicados

em França no século XVIII (ibidem: 166-170). Por outro lado, os contos de animais terão também grande difusão ao longo da Idade Média, como no Roman de Renart, que apresenta a personagem matreira da raposa sobre a qual muitos poemas serão escritos, em várias línguas (ibidem: 175-177).

No século XIII, tem origem a célebre tradição italiana da novela, sendo um dos exemplos mais conhecidos o Decamerão de Boccaccio, escrito em meados do século

VIX, que segue a tradição das narrativas enquadradas. É nesta obra, em especial, que Geoffrey Chaucer parece ter-se inspirado para escrever os seus Contos da Cantuária, no final do mesmo século.

Em Veneza, entre 1550 e 1553, é publicado Piacevoli notti de Straparola, que reúne, além de versões de novelas anteriores, um grande número de contos tradicionais de cariz popular e maravilhoso. Alguns dos contos presentes nesta coleção encontram paralelismo com narrativas das Mil e Uma Noites, muito antes da sua tradução ser conhecida na Europa, e parecem ter, segundo Juan José Prat Ferrer, inspirado algumas versões de Perrault e dos Grimm (ibidem: 217-221). Inaugura-se, assim, uma tradição de coletâneas de contos manifestamente tradicionais, que terá o seu primeiro célebre exemplo em Il Pantamerone, de Basile, publicado em Nápoles entre 1634-36. Muito conhecido na região, a sua difusão foi pequena devido ao facto de estar escrito em napolitano, tendo sido muito mais tarde traduzido para outras línguas. Continua a tradição das narrativas enquadradas e apresenta a imagem por excelência das aniles

fabulae, já que o a narrativa principal fala de uma rainha que, estando grávida, desejava

ouvir histórias. O rei manda então chamar dez velhas que ao longo de cinco noites devem “contare ogne jornata no cuento peduno de chille appunto, che soleno dire le vecchie pe trattenemiento de peccerille” (Basile 1891: 19).

É no fim do século XVII, em França, que os “contos de fadas” tornam-se moda (Ferrer 2013: 228-238, Zipes 1979: 32-33, Warner 2014: 45-47). Charles Perrault publica, em 1697, as célebres Histórias ou Contos do Tempo Passado com Moralidades -

Contos da Mãe Ganso, já aqui referida pelo título original em francês (Perrault 1997).

Dedicada a outro tipo de público que não o infantil, Madame d’Aulnoy (que terá cunhado o termo “contos de fadas”), Madame d’Auneuil, Mademoiselle Bernard, Madame Durand, Mademoiselle de La Force, Mademoiselle L’Héritier e Madame Murat dinamizam uma prática cortesã e burguesa, privilegiadamente feminina. A moda continua ao longo do século seguinte, culminando na publicação, a partir de 1785, de Le

Cabinet des Fées ou Collection choisie des Contes des Fées, et autres Contes Merveilleux pela mão de Charles-Joseph de Mayer. Também no séc. XVIII, a tradução

para francês das Mil e Uma Noites, por Antoine Galland, difunde um orientalismo literário que durará até o fim do século (Ferrer 2013: 240-242, Warner 2014: 47-50).

A moda dos “contos de fadas” chega também à Alemanha, e ainda no século XVIII são publicadas coleções, muitas delas especificamente direcionadas às crianças (ibidem:

242-247). De seguida, e como referido, o Romantismo enquadrou o interesse pela recolha e a reescrita de contos tradicionais ou populares, segundo as terminologias, cujo exemplo mais famoso é a coleção dos irmãos Grimm (1997). Conforme referido no ponto anterior, ao longo do século XIX e XX, assiste-se a uma profusão de trabalhos de recolha de narrativas de tradição oral, bem como de uma literatura inspirada nos seus argumentos e motivos, como o caso paradigmático do dinamarquês Hans Christian Andersen (Heywood 2001: 228).

Ao longo do século XX, muitos fatores conjugam-se de forma a promover um interesse editorial por adaptações e coletâneas de contos tradicionais, numa profusão incalculável. Em primeiro lugar, e como referido, um processo de valorização da oralidade leva antropólogos, sociólogos e linguistas a olhar em dois sentidos: para fora, ao observar as culturas submetidas à colonização dos impérios europeus; e para dentro, ao observar as culturas campesinas dos seus próprios países de origem. O resultado destes estudos veio divulgar uma imensa quantidade de narrativas, que viriam a ser alvo de adaptações e publicações. De outro modo, ainda, um crescente interesse pelas culturas orientais potenciou uma literatura inspirada nos motivos e estruturas narrativas de culturas tidas como “exóticas”. Em segundo lugar, uma tradição de obras dedicadas à infância veio culminar, ao longo do século XX, numa expressiva e economicamente dinâmica literatura infantojuvenil, como analisa Maria Emília Traça em O Fio da

Memória – Do Conto Popular ao Conto para Crianças (Traça 1998), francamente

inspirada nos contos tradicionais. O desenvolvimento desta literatura, numa profusão de autores, ilustradores e editoras está estreitamente relacionado com uma legitimação desses imaginários tradicionais enquanto produto de fruição infantil, como se verá de seguida, com o processo de alfabetização e democratização do ensino nas sociedades europeias, bem como com o florescimento de um mercado de entretenimento dedicado especificamente ao público infantil.

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 87-91)