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N ARRADORES ORAIS

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 161-168)

IV. DA PRÁTICA DOS NARRADORES ORAIS

1. N ARRADORES ORAIS

A natureza dos percursos profissionais, o nível de dedicação ao ofício e as questões económicas e laborais associadas a esta atividade emergente são uma esfera da prática destes artistas que merece atenção. No entanto, é pertinente salientar que os objetivos deste estudo não estão numa categorização, mas no reconhecimento dos processos laborais que têm consequências observáveis na prática, nos processos criativos e, por conseguinte, da performance.

A reflexão sobre o atual ofício de narrador oral tem levado a tipificações e, conforme nota Marina Patrini, uma das primeiras será aquela que distingue o “amador” do “profissional” (Patrini 2002:136-139). Consequência evidente de uma procura pela afirmação da atividade no mercado cultural, uma dicotomia dessa natureza rapidamente apresenta espaços de indefinição. Mesmo que esses sejam resolvidos pelo critério da existência ou não de uma remuneração, resta ainda a intricada questão da percentagem de dedicação e da legitimidade dos percursos formativos. A diversidade de atividades levadas a cabo por estes artistas, que podem ser entendidas enquanto complementares ou paralelas apenas através de uma abordagem manifestamente subjetiva, contribui para os espaços de indefinição.

Maria Patrini refere que, segundo uma classificação proposta pelo Conservatoire

Contemporain de Littérature Orale, estrutura já referida, os narradores orais podem ser

divididos em três tipos: os profissionais, que fazem da narração oral a sua atividade principal; aqueles que a praticam no contexto das suas atividades profissionais em outras áreas; e finalmente, os amadores, que contam histórias fora do contexto das suas profissões, gratuitamente (ibidem).

Kay Stone, como refere Michael Wilson, propõe uma tipologia que também tem em conta a questão da profissionalização, apesar de não incluir a categoria de amador. A autora reconhece três tipos de narradores: “the traditional storyteller, the modern urban storyteller (such as the classroom teacher or librarian) and the neo-traditional storyteller (such as many contemporary professional storytellers)” (Wilson 2006: 17).

Em comum, essas tipificações estabelecem, fundamentalmente, uma distinção entre aqueles para quem esta é um atividade autónoma, realizada em contextos próprios, e aqueles que a exercem de forma imersa noutras profissões. Nesse sentido, distingue-se a prática assumida enquanto profissão daquela em que contar histórias é um instrumento aplicado a outras atividades. Desse modo, a par do grau de profissionalismo, que depende da existência ou não de remuneração e da percentagem de dedicação, essas categorizações veiculam, essencialmente, um distinção entre a narração oral, enquanto disciplina artística, e a prática aplicada.

Por sua vez, Michael Wilson sugere uma tipificação sob três distintas perspetivas: uma a partir do background, outra, do modus operandi, e finalmente, uma a partir dos objetivos, ou motivações (Wilson 2006: 17-21). Propõe o autor, que, sob a primeira perspetiva, é possível pensar as seguintes categorias: contadores de histórias tradicionais; contadores de histórias provenientes de outras atividades não performativas (como professores e bibliotecários); performers de outras práticas artísticas que se tornaram contadores de histórias; e contadores de histórias que iniciaram a sua atividade como amadores.

Sob a segunda perspetiva, a do modus operandi, encontram-se as seguintes categorias: a atividade tradicional; aqueles que exercem a narração no contexto de outras profissões; contadores que trabalham como profissionais independentes e subsistem, parcial ou totalmente, da sua atividade; e finalmente, os amadores. A primeira categoria parece frágil, pelas razões observadas no capítulo anterior a propósito da imagem do “contador de histórias” nos discursos revivalistas.

Sob a terceira perspetiva, o autor procura identificar as motivações dos praticantes e propõe as seguinte categorias: tradição, educação, identidade cultural, entretenimento, terapia e espiritualidade. Esta categorização não prevê a atividade artística e os seus limites são ténues quando se tem em conta o facto de que o mesmo narrador oral pode exercer a atividade com diferentes objetivos: isso depende, muitas vezes, do contexto e da programação em que está inserido.

Não parece pertinente a este estudo investir numa tipificação dos narradores orais segundo critérios dessa natureza. A diversidade de contextos e de géneros de programação onde se enquadram, como se verá de seguida, potencia, antes de mais, uma prática multifacetada. Depois de duas ou três décadas de implementação no mercado cultural, a narração oral enquadra-se de forma evidente no contexto das práticas artísticas

caracterizadas pela intermitência. Isso exige, em muitos casos, o suplemento remunerativo de outras atividades profissionais, mais ou menos complementares. O critério de exclusividade é difícil de averiguar, dada a indefinição da atividade. Segundo Marina Sanfilippo, em Espanha, os narradores com dedicação exclusiva são uma minoria (Sanfilippo 2007: 169). No caso dos narradores observados para este estudo, foi possível concluir que a maioria desenvolve atividades paralelas, ainda que estreitamente estreitamente relacionadas (Dahlsveen 2, Haggarty 2, Imaz 3, Patrix 3, Weisse 2).

Em primeiro lugar, as competências artísticas destes profissionais permite uma profícua circulação entre diversas formas criativas. Muitos se dedicam a outras práticas performativas, como o teatro ou a música. Outros, ainda, e de forma muito presente, dedicam-se à literatura. Nicolás Buenaventura é cineasta e guionista, tendo realizado documentários e longas metragens de ficção (Buenaventura 3). Virginia Imaz desenvolve, paralelamente à atividade de narração oral, projetos de criação e formação em clown (Imaz 3). Com efeito, Marina Sanfilippo reconhece que, no contexto espanhol, uma grande parte dos narradores “compaginan la práctica de la narración con otras actividades escénicas” e que “el mundo de la escritura está también muy presente entre los nuevos narradores” (Sanfilippo 2007:169, itálico no original). Maria Patrini identifica a mesma complementaridade de atividades artísticas em França: “De plus en plus de comédiens et de chanteurs professionnels se tournent vers le conte comme forme de spectacle [...] Des écrivains se sont mis à raconter leur œuvres” (Patrini 2002: 141). Essa proximidade com a literatura e com as artes cénicas é uma realidade que permite reconhecer a presença do vetor estetizante, conforme apresentado, que assim alimenta naturalmente os movimentos de narração oral.

Anexa à atividade de narrador, está também, em muitos casos, o trabalho de produção e de programação de eventos dedicados à disciplina, o que manifesta a demanda por uma dinamização e por uma legitimação destas práticas. Ao reconhecer a necessidade de criar um mercado de trabalho e um público interessado, muitos artistas entregam-se à tarefa de implementar programações culturais dedicadas à narração oral. Alguns dos narradores observados reconhecem a importância dos projetos de dinamização, que envolvem um trabalho de produção e de programação, muitas vezes, realizado pelos próprios (Dahlsveen 2, Haggarty 2, Imaz 3, Patrix 3, Weisse 2).

De facto, grande parte dos eventos para o público em geral, ou seja, fora do contexto da escola e da biblioteca, estão a cargo de narradores, os dinamizadores

principais da sua própria atividade. Em Portugal, por exemplo, é esse o caso, entre outros, dos festivais Terra Incógnita e Contos Doutra Hora, programados por narradores: o coletivo Contabandistas de Histórias e o narrador Carlos Marques, respetivamente.

No mesmo sentido em que esses narradores assumem a programação e a produção de eventos, muitos se dedicam também à formação. Conforme nota Maria Patrini: “Il faut remarquer qu’une grande partie de l’activité du conteur urbain est tournée vers la formation et l’animation destinées à répandre l’art et le plaisir du conte” (Patrini 2002: 142). É esse o caso da maior parte dos narradores observados para este estudo (Dahlsveen 2, Haggarty 2, Imaz 3, Patrix 3, Weisse 2).

No entanto, a atividade de formação não é só sinal de uma dinâmica que pretende reavivar as práticas de narração oral, como refere Patrini. Apresenta, antes de mais, uma oportunidade de mercado, criada pela crescente procura por esse tipo de produtos (ações de formação). Nesse contexto, importa reconhecer, novamente, o papel central das bibliotecas, que constituem espaços de grande atividade formativa. Marina Patrini reconhece esse fenómeno em França (Patrini 2022: 142-145), assim como Anne Pellowski já o havia reconhecido nos Estados Unidos da América (Pellowski 1990: 212- 213). Ao longo do presente estudo, foi possível observar a mesma realidade em Portugal e em Espanha.

Essas ações de formação são normalmente destinadas a profissionais de outras áreas que procuram adquirir competências performativas e narrativas: professores e bibliotecários, na maioria. Essas ações evidenciam, antes de mais, o aspeto utilitário das práticas de narração, procurando sensibilizar para as suas potencialidade e despertar o prazer de contar e ouvir histórias. Se apresentam limitações no que diz respeito a vocacionar novos profissionais, configuram um instrumento fundamental de criação públicos.

Menos comuns são as formações específicas para os artistas profissionais, cujos conteúdos, carga horária e continuidade, explicitam o foco na via profissionalizante. Exemplos de formações desse tipo são projetos como o já referido Labo da Maison du

Conte32, da responsabilidade de Abbi Patrix, ou a Escuela de Verano da Asociación de

Profesionales de la Narración Oral en España33, exclusivamente para profissionais.

32 http://lamaisonduconte.com/labos/presentation-labos/ (acedido a 25 de março de 2016).

Ainda que em alguns contextos e períodos específicos seja possível reconhecer a influência de determinados formadores, como o caso do cubano Franciso Garzón Céspedes em Espanha (Sanfilippo 2007: 92), ou de Dora Pastoriza de Etchebarne, na Argentina (Palleiro e Fischman 2009: 36), entre outros, regra geral, não é possível identificar uma “escola” que tenha formado profissionais de forma sistematizada. Com raras exceções, parece não haver um espaço de formação oficial, e os narradores profissionais apresentam, apesar de alguns traços comuns, percursos variados. Como notam Maria Patrini (2002: 142-145), Marina Sanfilippo (2007: 91-92) ou Michael Wilson (2006: 17-21), os percursos profissionais mais comuns são: os profissionais que se aproximam da narração oral pela via das práticas teatrais ou de outras artes performativas; os que vêm da escola e da biblioteca; os que se aproximam pelo campo dos estudos de tradição oral; e finalmente, os que vem de áreas como a psicologia e a psicanálise, ou do universo do trabalho social. Sublinha-se que o primeiro percurso é o mais presente, sendo o caso de todos os narradores observados no contexto da investigação de que resulta esta tese (Buenaventura 3, Dahlsveen 2, Fontinha 3, Haggarty 2, Imaz 3, Parix 3, Weisse 2). Além das experiências ao nível formativo ou profissional no teatro, alguns destes narradores tiveram experiências em contextos pedagógicos: Virginia Imaz foi professora (Imaz 3), Suse Weisse estudou drama e pedagogia (2), Nicolás Buenaventura refere a importância da experiência como professor no seu percurso (Buenaventura 3).

Conforme notam Maria Patrini e Marina Sanfilippo, nos trabalhos referenciados atrás, o trajeto inicial de alguns narradores profissionais pode estar marcado pela participação numa ação de formação. No entanto, o facto da narração oral ser efetivamente uma atividade recente, que apenas nas últimas décadas se tem desenvolvido de forma mais visível na programação cultural, e a ausência de uma formação oficial e sistematizada permitem uma variedade de percursos onde a relação com a prática é dominada, antes de mais, por aspetos afetivos. Nesse sentido, muitas vezes, as narrativas vocacionais centram-se, primeiro, em experiências de infância no contexto familiar e, segundo, em percursos artísticos que não se apresentam como evidentes:

Many professional narrators recall memories of a grandmother or a devoted relative who told stories, whether or not they come from milieus which possess a particular cultural tradition [...] This sort of short or long range vocational determination occasionally explains the relationship the storyteller maintains with his practice, the social function he gives it and the way in which he experiences it (Görög-Karady 1990: 179).

É esse o caso da maioria dos narradores observados no presente estudo, quando confrontados com a necessidade de descrever o seu próprio percurso vocacional (Buenaventura 3, Haggarty 2, Dahlsveen 2, Imaz 3, Patrix 3). À parte a natureza afetiva dessas narrativas, elas revelam, de certo modo, a influência de um vetor revivalista, enquadrando o percurso profissional do narrador numa experiência de continuidade com as práticas em contexto familiar ou comunitário.

Devido à ausência de uma formação oficial e sistematizada e aos aspetos afetivos presentes nessas narrativas vocacionais, muitos narradores relatam o seu contato com as práticas de narração oral através de coincidências e peripécias que a posteriori parecem fazer sentido. A propósito dessas narrativas vocacionais, Joseph Sobol chama a atenção para o motivo de “serendipidade” (1999: 64-72). Cunhado pelo escritor britânico Horace Walpole a partir de um conto persa, “Os Três Príncipes de Serendip”, o conceito veicula a ideia de uma descoberta inesperada e acidental, que graças à sagacidade e à disponibilidade do herói, permite seguir novos caminhos antes improváveis. Conforme nota Sobol, ao enumerar vários exemplos, as narrativas vocacionais desses artistas apresentam, muitas vezes, um momento dessa natureza: uma ocasião específica em que esses foram, por assim dizer, arrastados para o mundo da narração oral. Também Veronika Görög-Karady reconhece o mesmo motivo nos percursos dos narradores orais em França:

In their development most of them experience a sudden break in their careers: they may abandon studies or a regular job, or – more dramatically – they may “make contact with oral literature” as opposed to written culture. Although not all of them begin as outsiders in established artistic professions, most have generally gone through some sort of conversion experience to find their vocation (Görög-Karady 1990: 178).

Os discursos dos narradores sobre o seu próprio percurso e sobre a sua prática artística poderiam não parecer fundamentais para uma análise das suas obras. No entanto, a afirmação identitária que está envolvida numa performance em que estes se apresentam enquanto eles próprios (manifesta na presença significativa de elementos metanarrativos de natureza autobiográfica) e uma abordagem epistemológica centrada nas materialidades da narração oral34, em que a pessoa/narrador é o meio fundamental de comunicação, tornam centrais essas considerações. Muitas vezes, nas performances desses artistas, os elementos de ligação entre as histórias contadas, ou as próprias,

centram-se nas suas experiências pessoais ou configuram reflexões sobre a sua atividade como contador de histórias. Esses elementos são mecanismos que permitem estabelecer um determinado tipo de relação com a assistência, como se verá no próximo capítulo dedicado aos aspetos poéticos da narração oral.

A afirmação de uma identidade e de um papel social, como explora Patrick Ryan no seu estudo (2003: 96-124), é um aspeto central da atividade desses artistas. É indissociável da sua obra, que os caracteriza não só na forma como contam histórias, mas, também, nas histórias que contam, nos seus repertórios, como se verá no quarto capítulo. Numa atividade marcada por uma proximidade entre o profissional e os seus clientes, poucas vezes mediada por um agente ou por uma estrutura de produção, caracterizada por redes de divulgação que geralmente não chegam aos meios massivos de comunicação, ideologicamente resistente aos mecanismos de marketing, a construção de uma identidade é gerida pelo próprio artista não só no contexto da performance (na relação que este estabelece com a sua assistência), mas em todo o trabalho de produção e divulgação.

Pouca atenção têm merecido os aspetos económicos da atividade dos narradores orais. Esta enquadra-se, na maioria dos casos, no sistema de trabalhadores independentes das áreas criativas, conforme observado por outros autores (Patrini 2002, Ryan 2003, Sanfilippo 2007) e nos casos de estudo (Buenaventura 3, Dahlsveen 2, Fontinha 4, Haggarty 2, Imaz 3, Patrix 3, Weisse 2). Na maior parte das vezes, um prestador de serviços pontuais, são raras as suas oportunidades de contratação a prazo, ainda que possam existir relações de continuidade com estruturas de programação ou formação. Conforme notava Görög-Karady há mais de vinte anos, as remunerações eram e continuam a ser balizadas, salvo raras exceções, “according to an abstract collective norm and not according to the performer’s fame or to the individual performance” (Görög-Karady 1990: 180). Assim, o narrador está normalmente sujeito a valores estabelecidas pelos próprios requerentes do serviço, condicionados, por sua vez, pelos orçamentos limitados a que a área da cultura se tem vindo a habituar. Desse modo, verifica-se uma variabilidade remunerativa que depende quase exclusivamente da natureza da estrutura de programação, e os valores podem ser muito distintos quando o serviço é prestado, por exemplo, a uma escola ou a um festival internacional, para referir dois casos em situação oposta.

A natureza pontual dos serviços prestados, uma ausência de valores tabelados e de sistemas de proteção laboral configuram (em alguns países mais do que noutros, de acordo com legislações próprias e respetivos apoios do estado) um profissão caracterizada pela autogestão e pela intermitência. Nesse sentido, alguns narradores trabalham sob a alçada de uma entidade cultural sem fins lucrativos, que suporta a sua atividade do ponto de vista legal, como alguns dos artistas observados para este estudo (Dahlsveen 2, Fontinha 4, Haggarty 2, Imaz 3, Patrix 3, Weisse 2). No entanto, mesmo quando organizados em associações, a maioria dos narradores orais trabalham de forma isolada, gerem os seus percursos artísticos e administram as suas relações comerciais de forma independente.

Even if most of them know each other and maintain continuous relationship, through listening, encouragement, reciprocal criticism and even rivalries and jealousy, they only rarely act collectively as a professional corporation (Görög-Karady 1990: 180).

Nas últimas duas décadas, do que é possível aferir em contexto europeu, é visível um desenvolvimento expressivo de estruturas associativas. De qualquer modo, como reconhecia Görög-Karady, há mais de vinte anos, ou Michael Wilson, neste século (2006: 39-43), a atividade profissional do narrador oral continua a ser caracterizada pela gestão individual e pelos serviços prestados pontualmente.

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 161-168)