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DA POÉTICA DA NARRAÇÃO ORAL

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 197-200)

1.PERFORMANCE

A utilização do adjetivo “oral” na designação desta práticas de narração, especialmente em língua portuguesa e espanhola, não pretende apenas identificar a natureza dos seus repertórios, como expresso especialmente nos discursos revivalistas. Mais importante, do ponto de vista deste estudo, esta adjetivação pretende reconhecer estas práticas enquanto um tipo de evento e um modo de comunicar específicos, normalmente afirmados por oposição às formas escritas ou mediadas tecnologicamente.

No entanto, tendo em conta a realidade da prática destes narradores e os seus contextos, interessa superar os problemas consequentes de uma dicotomia oral/escrito, bem como autonomizar as práticas de narração oral em relação à função de transmitir patrimónios ditos orais. Assim, os termos “performance” e “performer”, bem como o adjetivo “performativo”, tornam-se centrais neste estudo. Veiculam, antes de mais, uma perspetiva de análise centrada na prática dos narradores, e não nos seus repertórios, permitindo ainda afastar por momentos as implicações da utilização do adjetivo “oral” nos discursos revivalistas.

Apesar de tudo, o termo “performance” não é menos complexo e polissémico. Se faz parte de um vocabulário relativamente disseminado em algumas áreas de estudo, o seu entendimento é muito diverso e o seu uso vernacular pouco preciso, o que merece alguma atenção. Do mesmo modo, uma observação dos seus diferentes usos e sentidos permite abrir caminho para o entendimento da natureza particular da prática destes artistas enquadrados nestes movimentos.

No seu uso vernacular em português, o termo “performance” está normalmente associado à ideia de desempenho. No vocabulário desportivo diz respeito à ação dos atletas, à maior ou menor capacidade de realizar as suas funções na modalidade a que se dedicam. No discurso publicitário, por sua vez, está geralmente associado ao desempenho de máquinas, de que os automóveis serão os exemplos mais evidentes, tendo em conta fatores de potência, segurança, durabilidade ou consumo. De forma menos difundida, é possível encontrar o adjetivo “performativo” associado às artes na designação de estruturas de produção e criação, no título de cursos e disciplinas do

ensino superior ou nas agendas culturais. Menos conhecida ainda é a utilização para designar a prática artística em inglês conhecida como performance art, normalmente aplicada com pouca precisão, como se verá de seguida.

No dicionário em linha Priberam, a definição de performance tem as seguintes entradas:

1. Resultado obtido em cada uma das exibições em público. = DESEMPENHO 2. Conjunto dos resultados obtidos num teste.

3. Prestação desportiva.

4. Acção de desempenhar um papel. = DESEMPENHO

5. [Artes] Manifestação artística que pode combinar várias formas de expressão.37

Por sua vez, o dicionário em linha da Porto Editora, a Infopédia, apresenta uma última definição de interesse, relacionada com o campo da linguística:

atuação; desempenho realização

proeza

(artes) manifestação artística assente numa encenação que pode combinar dança, música, meios audiovisuais

LINGUÍSTICA manifestação da competência linguística de um falante38

As três primeiras entradas da Infopédia apontam para o uso vernacular do termo, relacionado com a realização de uma determinada ação. Não é possível compreender se “atuação” é, neste sentido, tida apenas como realização de uma ação, ou se poderá referir-se à representação dramática levada a cabo por um ator ou atriz. Se assim o fosse, esta abertura de sentido seria pertinente. Já a quarta entrada, por sua vez, refere a prática artística específica, a performance art, caracterizada de forma imprecisa. Finalmente, a última entrada diz respeito ao seu uso particular no campo da Linguística, que interessa ter em mente.

É possível reconhecer, portanto, que, apesar de alguma polissemia, o termo encontrou um uso consensual no vocabulário português, ainda que não muito disseminado, e que diz respeito às três primeiras entradas. Neste sentido, performance serve para designar a qualidade de uma ação, o nível de desempenho numa determinada tarefa. Esse é, porém, o sentido que menos interessa perseguir neste momento. Talvez seja pertinente observar a utilização do termo na língua inglesa, onde efetivamente terá

37 http://www.priberam.pt/dlpo/performance (acedido a 26 de março de 2016).

vingado, tendo as suas raízes etimológicas no Francês e, por sua vez, no Latim: perform, de dar forma, mais -ans, do sufixo latino para substantivos derivados de verbos.

Mesmo em inglês, a diversidade de usos exige uma clarificação. É neste sentido que, ao introduzir a obra abrangente Performance: Critical Concepts, Philip Auslander começa pela definição disponibilizada por um dicionário:

1. a presentation of an artistic work to an audience for example, a play or a piece of music. 2. the manner in which something or somebody functions, operates, or behaves

3. the efectiveness of the way somebody does his or her job (often used before a noun)

4. a public display of behavior that others find distasteful, for example, an angry outburst that causes embarrassment (informal)

5. something that is carried out or accomplished

6. the performing of something, for example, a task or action

7. the language the a speaker or writer actually produces, as distinct from his or her understanding of the language (Auslander 2003: 1).

Como identifica Auslander, a primeira definição associa o termo desde logo, e em primeiro lugar, ao universo das artes performativas. É a definição que aqui interessa ter como ponto de partida, e que parece estar bem disseminada em inglês. Assim, performance é a realização de uma obra artística perante um público, como um espetáculo de teatro, de dança, uma ópera ou um concerto de música, entre muitas outras possibilidades.

As entradas seguintes, até a sétima, que, como no dicionário português, aponta para o seu uso no campo da linguística, associam o termo ao seu sentido mais antigo e disseminado: fazer alguma coisa ou cumprir uma tarefa. Normalmente, e especialmente em inglês, o termo surge no contexto do mundo dos negócios, no desporto, ou mesmo associado à sexualidade, dizendo sempre respeito à eficiência e a qualidade das ações realizadas numa determinada tarefa.

A quarta entrada, de forma especial, abre caminho para um sentido do termo que interessa explorar. Ainda que num sentido pejorativo, designa um comportamento social, o que conduz a uma nova aceção do termo que se tem desenvolvido no campo das Ciências Humanas, como se verá de seguida. Neste sentido, uma performance é um modo de realizar uma ação no contexto do dia a dia que, sob os parâmetros dos comportamentos sociais, evidencia o próprio ato em si, no sentido de influenciar de algum modo os seus interlocutores.

A sétima entrada refere-se ao uso do termo no campo da linguística, para designar o uso da língua em situações concretas, diferenciada do seu conhecimento e competência, num mesmo sentido da distinção entre langue e parole proposta por Saussure. Esta

aceção do termo, inaugurada por Noam Chomsky, contribui, como nota Finnegan, para os estudos da oralidade interessados na autonomia destes fenómenos em relação ao texto escrito, que interessa também ter em mente (Finnegan 1992: 92). Outro desenvolvimento do termo, que contribuiu de forma expressiva para a sua divulgação, é consequente do trabalho de John Langshaw Austin, em que o termo serve para qualificar atos de fala que não se limitam a descrever uma determinada realidade, mas são capazes de agir sobre ela (Austin 1975).

Esta variedade de sentidos se desenvolve a partir do início do século XX, ganhando maior visibilidade depois da Segunda Grande Guerra nos Estados Unidos da América e tornando-se central em áreas como a antropologia e a sociologia, a linguística, os estudos de cultura e os estudos artísticos, entre outras disciplinas, numa profusão de abordagens por vezes complementares, por vezes contraditórias.

Algumas das contribuições mais influentes para o seu desenvolvimento e multiplicação são aquelas que, no sentido que se adivinha na quarta entrada do dicionário inglês, apresentam a performance enquanto conceito fundamental para a compreensão das ações e interações humanas em sociedade e das suas manifestações culturais, geralmente centradas no noção de “drama”, como aponta Ruth Finnegan (1992: 91). Neste contexto, é seminal o trabalho de Kenneth Burke, teórico norte americano que salienta a natureza simbólica da linguagem numa abordagem cunhada como dramatism (Burke 1966). No mesmo sentido, os estudos de Erving Goffman, adotando também uma perspetiva dramatúrgica, concorrem de forma influente para o desenvolvimento do conceito de performance e de frame na teorização e análise das interações sociais e da própria construção de identidade (Goffman 1959, 1974).

Do mesmo modo, a teoria antropológica de Victor Turner influenciou de forma decisiva a apropriação do conceito de performance nas Ciências Humanas e nos Estudos Artísticos. O antropólogo desenvolveu uma abordagem centrada na noção de “drama social”, explorando o trabalho de Arnold Van Gennep sobre os rituais e a sua subdivisão em três fases, organizadas à volta do conceito de “liminalidade” (Turner 1969, 1982, 1986). É a partir deste conceito, e de uma abordagem fundada nos paralelismos entre os processos de transformação social e o drama, que uma aproximação às formas teatrais contemporâneas vem potenciar a sua grande influência no que vieram a ser os estudos de performance.

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 197-200)