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A VALORIZAÇÃO DA ORALIDADE

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 83-87)

II. DO DESENVOLVIMENTO, ESPECIALIZAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE NARRAÇÃO ORAL

1. A VALORIZAÇÃO DA ORALIDADE

O primeiro e mais influente fator no desenvolvimento das práticas de narração oral é, como refere Marina Sanfilippo (2007: 18), uma valorização da “oralidade”, dos patrimónios culturais por ela veiculados, bem como dos modelos de relação comunitária normalmente associados aos contextos tradicionais. Nesse entender, a “oralidade”, compreendida enquanto cultura não escrita, cujas expressões manifestam o pensamento e o sentir de grupos marginais aos processo de industrialização e urbanidade, corresponde ao passado ou ao “outro” que vive segundo os modelos desse passado. Nesse sentido, a valorização dos patrimónios orais e dos modelos de relação interpessoal não mediados está estreitamente ligado aos movimentos revivalistas, em que se incluem os movimentos de narração oral, conforme identificam, entre outros, Simon Heywood (2001) e Marina Sanfilippo (2007).

Os dois autores reconhecem no Romantismo a origem destas dinâmicas que encerram uma perspetiva revivalista para com os contos, as lendas, as fábulas, os provérbios, os cantares, as orações, enfim, todo o conjunto de expressões que pertence ao domínio da oralidade. De qualquer modo, já no fim do século XVII é possível adivinhar uma nostalgia no título Histoires ou Contes du Temps Passé, de Charles Perrault (2010), o que permite reconhecer, já então, um revivalismo manifesto. No entanto, parece ser no contexto do Romantismo, conforme notam Heywood e Sanfilippo, que o olhar para o passado e o interesse pelos patrimónios orais encontram uma legitimação política e filosófica que veio marcar o século XIX e XX, ao abrir caminho para os estudos das manifestações “tradicionais” e “populares” nas academias e ao instalar ideias sobre estes conceitos no senso comum.

Resultam desse interesse crescente inúmeras recolhas etnográficas, adaptações e recriações dos patrimónios narrativos, poéticos e musicais, que um pouco por toda a Europa se realizaram: na Escandinávia, é paradigmática a obra de Elias Lönnrot, na Finlândia, ou o trabalho conjunto de Peter Christen Asbjørnsen e Jørgen Moe, na Noruega; na Rússia, a recolha de Alexander Afanasyev é um dos exemplos mais reconhecidos, especialmente por ter sido o corpus de estudo de Vladimir Propp (2003); na Escócia, a título de exemplo, o trabalho de John Francis Campbell of Islay enquadra- se numa mesma ideologia romântica que o de Thomas Crofton Croker, na Irlanda; e os exemplos multiplicam-se pelos outros países da Europa (Ferrer 2013: 275-441).

No mesmo sentido, em Portugal, salienta-se o trabalho de Almeida Garrett, dedicado ao romanceiro e ao cancioneiro, e de Alexandre Herculano, ao adaptar material lendário nacional. No entanto, foi Adolfo Coelho um dos primeiros a realizar uma recolha sistemática de contos, publicando em 1879, os Contos Populares Portugueses (Coelho 1993). Seguiram-se trabalhos como os de Teófilo Braga, com os Contos

Tradicionais do Povo Português (Braga 1994), publicados em 1883, ou Consiglieri

Pedroso, com os Contos Populares Portugueses (Pedroso 1985), publicados em 1910. Debruçados sobre contextos geográficos mais precisos, Ataíde de Oliveira publica, a partir de 1900, os Contos Tradicionais do Algarve (Oliveira 1989a e 1989b) e Tomás Pires, os Contos Populares Recolhido da Tradição Oral na Província do Alemtejo (Pires 1919). Leite de Vasconcelos, cujo trabalho de recolha foi publicado postumamente em

Contos Populares e Lendas (Vasconcelos 1963 e 1966), é também uma figura

É sob os preceitos de movimentos nacionalistas e de teorias evolucionistas que são inaugurados os primeiros passos no estudo das formas narrativas de tradição oral, como os mitos, os contos e as lendas. Nesse contexto, os contos foram entendidos enquanto degenerações de mitos solares indo-europeus, na teoria de Max Muller, ou enquanto manifestação cultural das sociedades animistas e totemistas, na perspetiva etnográfica de Andrew Lang, (Finnegan 1992: 29-30). Por sua vez, a escola finlandesa de Antti Aarne estabelece um trabalho de caráter comparativo, com o seu sistema de classificação dos contos, publicado pela primeira vez em 1910, continuado por Stith Thompson ao longo do século XX (Aarne e Thompson 1961) e, mais recentemente, por Hans-Jörg Uther (Uther 2004). De outro modo, o estruturalismo de Vladimir Propp, presente na sua

Morfologia dos Contos (Propp 2003), publicada em 1928, foi extremamente influente a

partir dos anos sessenta. De facto, o seu trabalho influenciou autores das mais variadas áreas: da antropologia, como na obra de Claude Lévi-Strauss (1958), aos estudos de folclore norte-americano, com Alan Dundes (1964), passando também pela linguística e pela narratologia, no caso de Algirdas-Julien Greimas (1966), entre outros. Por outro lado, as teorias de Sigmund Freud, Otto Rank e de Carl Jung inauguraram uma abordagem psicológica da análise dos contos e dos mitos que daria frutos em trabalhos como os de Bruno Bettelheim (2010) ou Marie-Louise Von Franz (1995), ou em estudos comparativos como o de Joseph Campbell (1968), numa corrente que contribuiu significativamente para o desenvolvimento dos estudos sobre estes materiais.

Deste modo, uma área de estudo dedicada às formas narrativas ditas tradicionais passa por um processo de legitimação académica, em aproximações ora provenientes dos campos da literatura e da linguística, ora da antropologia, ora da psicanálise, o que permite a emergência de novas áreas específicas como os estudos de folclore. Se todas estas abordagens autorizam uma progressiva legitimação deste “textos” enquanto objeto de estudo, o processo de valorização da oralidade ao longo do século XX está também estreitamente ligado àquela perspetiva que Bengt Holbek designa de craftmanship

viewpoint (Holbek 1987: 39-45). Esta perspetiva, que orienta abordagens diversas e que

não abrange apenas o estudo de formas narrativas, vem posicionar a performance, o evento, o seu contexto e intervenientes, no centro das atenções. É uma corrente preponderante a partir dos anos sessenta, em que se enquadram teóricos como Richard Bauman (1984, 1986) e Ruth Finnegan (1977, 1992), determinante nos estudos de folclore norte-americano e invariavelmente ligado à influência de Dell Hymes (1974,

1975). Inaugural dessa transferência de atenção para os aspetos performativos foi o influente trabalho de Milman Perry sobre os épicos homéricos, cuja teoria enquadrou uma análise da épica tradicional servo-croata que veio a resultar na obra de Albert Bates Lord, The Singer of Tales (Lord 1960), já referida. A sua grande contribuição foi propor que todos os aspetos da poesia homérica resultam de uma composição oral, o que pode ser analisado a nível da estrutura dos próprios textos. Esta confirmação teórica da existência de mecanismos próprios da comunicação oral, de fórmulas de composição poética, veio abrir caminho para uma valorização da oralidade, naturalmente agudizando, em algumas abordagens, uma dicotomia oral/escrito. É nesta linha que Walter Ong, em especial através de Orality and Literacy (2002), obra extremamente influente, contribuiu para a difusão de um entendimento da oralidade que é transversal e fundador de muitos discursos presentes nos movimentos de narração oral. Nas palavras de Ruth Finnegan:

The discovery of this “special technique” elucidated one widely-spread pattern for oral delivery, as well as illuminating texts as process rather then fixed product. It also laid a comparative framework for the analysis or re-analysis of oral (or arguably oral) texts from a whole range of disciplines and areas, and for the idea of “oral composition” as a process lying behind texts previously assumed to originate in writing (Finnegan 1992: 41).

O reconhecimento de uma poética própria e da pertinência do fenómeno da oralidade no âmbito dos estudos da cultura abriu caminho a novas abordagens centradas nos estudos dos materiais tradicionais e da cultura dita popular, e permitiu, inclusivamente, a emergência de novas disciplinas, como a Oral History (ibidem: 47-49). Este processo de legitimação académica dos estudos da tradição oral refletiu-se, em Portugal, por exemplo, no desenvolvimento de diferentes abordagens que culminaram na emergência, a partir do anos setenta, de linhas de investigação e de centros de estudos como o Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da Universidade Nova de Lisboa, o Centro de Tradições Populares Portuguesas da Universidade de Lisboa ou o Centro de Estudos Ataíde de Oliveira da Universidade do Algarve.

Finalmente, este processo de valorização da oralidade transcende o mundo académico. Desde o Romantismo, ideias sobre a “tradição” e o “popular” se vêm instalando no senso comum, associadas a contextos políticos e sociais que tornam pertinente a afirmação de identidades culturais e dos seus patrimónios imateriais. Resulta dessas dinâmicas o conceito de “património cultural intangível” estabelecido pela UNESCO, e os seus respetivos programas de salvaguarda. É assim, com efeito, num ambiente propício aos fenómenos da oralidade, que os movimentos de narração oral, ao

veicular ideias e valores confluentes com essas dinâmicas, encontram um espaço de legitimação para o “renascimento” das práticas de contar e ouvir histórias.

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 83-87)