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U MA NARRATIVA DO ESTUDO

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 67-73)

Num primeiro movimento, e tendo em conta os objetivos deste estudo, a investigação procurou identificar o fenómeno de “renascimento da narração oral”, reconhecendo as suas variantes nos distintos contextos e países, bem como algum entendimento das conjunturas socioculturais que permitiram a emergência destas práticas. Neste campo, o estudo partiu essencialmente de obras de referência no meio profissional, como as de Anne Pellowski (1990) ou Joseph Sobol (1999), para culminar nas teses de doutoramento que foi possível identificar no contexto europeu (Heywood 2001, Patrini 2002, Ryan 2003, Sanfilippo 2007, Haeringer 2011).

No caso sul-americano, a observação realizada junto de Nicolás Buenaventura na Colômbia, bem como a atividade do próprio investigador nesse país, na Argentina e na Costa Rica, estabelecendo contacto com outros profissionais sul-americanos, permitiu uma imagem geral do nível de desenvolvimento e expressividade desses movimentos na América Latina. Importantes também foram os contributos de Fischman e Hartam (2007) e Palleiro e Fischman (2009). No caso do Brasil, indispensáveis foram as referências bibliográficas de Prieto (2001) e Morais e Gomes (2012).

No caso de Portugal, ausente um trabalho que desse conta do fenómeno, a contextualização histórica foi produzida pelas informações do próprio investigador, profissional ativo no meio e programador desde 2003, pela participação e organização de encontros e colóquios e pela análise de um caso de estudo português.

Este quadro geral, a par da observação dos casos de estudo, permitiu uma imagem abrangente da realidade dos diversos movimentos de narração oral. Esta visão não perseguiu objetivos historiográficos, mas antes permitiu o reconhecimento de linhas práticas e discursivas comuns aos vários fenómenos. Identificou-se, no entanto, uma diversidade de contextos e modos de fazer, o que foi essencial para uma teoria que pretende ser inclusiva em termos conceptuais, ainda que específica em termos metodológicos, ao incidir sobre casos de estudo.

Assim, a partir de uma prática artística e de uma atividade científica que permitiu ao investigador observar eventos e artistas em diferentes países, a pesquisa bibliográfica e a observação dos casos de estudo procurou reconhecer os discursos motores desses movimentos, bem como os fatores socioculturais que permitiram o seu desenvolvimento. A pertinência do reconhecimento destes vetores de dinamização e legitimação das práticas de narração oral, numa conjugação dos discursos e contextos socioculturais, não está numa perspetiva histórica, como referido, mas na estreita relação desse vetores com a prática artística, que moldam modos de fazer e determinam os eventos performativos. Neste ponto, sobressaíram os principais paradigmas estéticos destas práticas e estabeleceu-se um quadro de motivações e objetivos que condicionam dinamicamente as opções poéticas dos narradores, moldando a sua performance de forma efetiva.

Tendo em conta os discursos e os contextos socioculturais por detrás das práticas de narração oral, a observação dos casos de estudo, em particular, e a pesquisa bibliográfica, possibilitando um retrato das tendências generalizadas, permitiram reconhecer os elementos fundamentais da praxis destes artistas, enfim, do que diz respeito à sua atividade profissional.

Neste sentido, e aprofundando as informações provenientes da pesquisa bibliográfica através da observação dos casos de estudo, o estudo procurou reconhecer os percursos artísticos dos narradores, os contextos e as condições da sua atividade profissional e especialmente os seus processos criativos. Território onde desde logo se manifestam as atitudes e motivações transversais aos movimentos de narração oral,

identificaram-se tendências para procedimentos criativos que visam dois paradigmas opostos: o “serão” e o “espetáculo”.

Do mesmo modo, e de acordo com o representado já na bibliografia, identificou-se o papel central do repertório na prática destes artistas (Heywood 2001, Patrini 2002, Sanfilippo 2007, Palleiro e Fischman 2009, Haeringer 2011), bem como uma tendência generalizada no universo observado para os contos e narrativas ditas tradicionais. No que diz respeito a um reconhecimento e à análise dos repertórios, o estudo procurou identificar, sempre que possível, a tipologia das versões de acordo com os catálogos internacionais (Aaerne e Thompson 1961, Camarena e Chevalier 1995, Delarue e Ténèze 1997, Uther 2004, Cardigos e Correia 2016). Procurou-se reconhecer, em primeiro lugar, a natureza das suas fontes, investindo no entendimento dos processos experienciados pelo artista na apropriação e adaptação da narrativa em causa. Nos raríssimos casos de textos de autor, a análise investiu essencialmente em reconhecer as possíveis especificidades dos processos criativos envolvidos e das suas propostas poéticas.

Abriu-se então caminho para a questão fundamental da performance e dos estatutos ontológicos destas práticas, tendo em conta a variedade de formas e contextos englobados na investigação, mas procurando ainda assim identificar a sua natureza e especificidades comuns. Os territórios de indefinição que apresentaram maiores problemas foram aqueles que se encontram entre estas práticas artísticas urbanas e aquelas que configuram manifestações de uma tradição oral e que têm sido alvo da atenção dos estudos sobre a tradição oral e as suas narrativas. Neste ponto, a pesquisa bibliográfica foi essencial, revelando, no entanto, que muitos desses trabalhos pareciam distanciar-se da abordagem deste estudo: caracterizavam-se ou pela predominância do texto, ou pelo investimento hermenêutico, ou por uma perspetiva social e política, não se debruçando, enfim, sobre os aspetos poéticos da performance (Zipes 1979; Warner 1995, 2014; Von Franz 1995; Belmont 1999, Ferrer 2013).

Finalmente, algumas abordagens no seio desses estudos tornaram-se francamente próximas, primeiro, pela sua orientação para a performance, e segundo, por uma mudança de paradigma que passa a colocar o intérprete, a sua identidade e as suas competências no centro do problema. Neste sentido, as abordagens orientadas para a performance, como nos trabalhos de Paul Zumthor (1990), Ruth Finnegan (1992, 1997) e, sobretudo, Richard Bauman (1984, 1986), tornaram-se centrais, não apenas ao disponibilizar instrumentos de análise preciosos, mas contribuindo para o apuramento

dos próprios argumentos ontológicos do ato de contar histórias. Atenuaram, assim, a distância pressuposta a priori entre estes dois tipos de fenómeno, o tradicional e o contemporâneo, ainda que tenham contribuído na identificação das suas grandes diferenças, mesmo em termos performativos.

Neste campo, a pesquisa bibliográfica investiu também, por razões evidentes de proximidade, nos estudos que se debruçam sobre outras formas performativas, em especial, o teatro. E novamente se revelou a centralidade do conceito de performance, dos seus alcances e usos diversos, constituindo-se efetivamente um dos eixos centrais do estudo. Assim, muitos contributos vieram de autores como Peggy Phelan (1993), Philip Auslander (2003), Erika-Fischer-Lichte (2005, 2014), Richard Schechner (2003, 2006), bem com de toda a recente área escolar comummente denominada estudos de performance (Harding e Rosenthal 2011).

Desenvolvido o conceito de performance, componente de contiguidade com outras disciplinas artísticas, as particularidades da prática dos artistas enquadrados nos movimentos de narração oral exigiram ferramentas específicas. Aqui, então, referências sobre a narratividade nas práticas teatrais tornaram-se fundamentais. Neste sentido, a obra de Hans-Thies Lehman (2006) foi basilar ao descrever e analisar os processos de desdramatização das propostas teatrais do século XX, apresentando a narração como um dos mecanismos de superação da crise do drama. Por sua vez, foi incontornável revisitar a teoria e a prática de Bertolt Brecht (1978, 1994), cujo programa épico se relaciona intimamente com as formas de narração oral, bem como o de Peter Brook (1977), em cujo trabalho ecoa a figura do contador de histórias.

Partindo dessa reflexão sobre as estreitas relações entre a narração e as outras formas performativas normalmente designadas teatro, e tendo por conceito fundamental a performance, uma das maiores contribuições para este estudo foi então o modelo de análise do performance continuum desenvolvido por Michael Wilson (2006), que será desenvolvido no quinto capítulo. Neste ponto, tendo por base o conceito de performance, adotou-se também o substantivo performer, do inglês, para referir o seu executante, termo que passa a não ser destacado.

A investigação confrontou-se com a polémica sobre as diferenças entre narração oral e teatro presentes nos discursos destes movimentos artísticos, procurando identificar na observação dos casos de estudo as limitações dos preconceitos instaurados. Uma vez relativizadas estas diferenças, a confrontação das teorias de um campo e de outro com a

prática dos artistas observados permitiu reconhecer a tensão fundamental entre mimesis e

diegesis nas suas opções discursivas e identificar a natureza particular do discurso

narrativo fundado na figura do narrador. Neste sentido, a pesquisa bibliográfica investiu nas áreas da teoria da narrativa através de autores como Gérard Genette (1966, 1986), Seymor Chatman (1978) e Monika Fludernik (1996, 2009), essencialmente, bem como através do muito útil The Living Handbook of Narratology23, da Universidade de Hamburgo, procurando os mecanismos próprios do discurso narrativo, elemento fundamental da prática destes artistas.

Neste sentido, o estudo chegou a um segundo modelo de análise centrado no modo como o narrador opera sobre um contínuo de representação entre os mecanismos do “contar” e do “mostrar”, fundados na clássica distinção entre diegesis e mimesis. Este modelo revelou-se um segundo eixo central de análise dos recursos poéticos utilizados pelos narradores na construção do discurso narrativo.

Por outro lado, a expressividade do nível metanarrativo destas performances, evidenciada por todas as referências bibliográficas sobre estes movimentos e pelos estudos dedicados à performance narrativa em contextos ditos tradicionais (Hymes 1974, Finnegan 1977, Bauman 1984, Zumthor 1990), assumiu uma importância central na análise das performances.

Seguindo as abordagens centradas na performance de estudos sobre a narrativa de tradição oral, essencialmente a partir de Ruth Finnegan e Richard Bauman, a análise debruçou-se sobre os elementos fundamentais da sua materialidade: os contextos, o discurso verbal, a prosódia, a quinésia e a proxémia. Outros elementos essenciais são ainda os visuais, consistindo nos cenários e vestuário dos narradores, e os musicais, que em dois dos casos de estudo se revelaram predominantes.

No que diz respeito aos contextos, partindo das propostas de Ruth Finnegan (1992), o estudo identificou uma tipologia relativa de tendências sobre os espaços, os eventos e os participantes, reconhecendo desde logo as influências dos paradigmas presentes nos discursos destes movimentos artísticos: o “serão” e o “espetáculo”.

Para a teorização e análise da prosódia, foram estruturantes as contribuições de Zumthor (1990), ainda que a matéria versificada sobre a qual se debruça o autor não tenha expressividade no universo observado. A análise privilegia essencialmente os aspetos de ritmo, de tonalidade, de timbre e de entoação, especialmente no que diz

respeito à gestão de uma maior ou menor intensidade performativa e da tensão entre “contar” e “mostrar”.

Em relação à análise da gestualidade, central é o trabalho de Genéviève Calame- Griaule (1977), que propõe uma tipologia dos gestos narrativos que aqui são adotados, ainda que com ligeiras modificações propostas por Kwenzi-Mikala (1993). Também os instrumentos disponibilizados por Paul Zumthor (1990) ou McNeill (1992) nesta área são imprescindíveis. Neste campo, para referir aspetos da gestualidade, adotou-se o substantivo quinésia e o adjetivo quinésico, a partir do grego kinesis, que passam a não ser destacados.

No que diz respeito à utilização e movimentação no espaço performativo, algumas perspetivas fundadoras (Hall 1963, Kendon 1981) servem para edificar uma abordagem que se centra essencialmente, a partir da observação das performances e do discurso dos artistas, nos aspetos relacionados diretamente com a gestão consciente da relação com a assistência e da intensidade performativa. Neste campo, a partir do termo utilizado por Hall (1963), adotou-se o substantivo proxémia e o adjetivo proxémico, apesar deste último estar dicionarizado como substantivo, e passam a não ser destacados.

Finalmente, a análise das performances e dos depoimentos dos narradores debruçou-se sobre as opções relativas ao vestuário e à cenografia, em que se manifestam os discursos destes movimentos artísticos. Sublinha-se também a presença significativa do elemento musical em dois dos casos de estudo, Abbi Patrix e Nicolás Buenaventura, que exigiu uma teorização capaz de pensar as suas consequências poéticas, em estreita relação com a dimensão prosódica do discurso verbal.

II. DO DESENVOLVIMENTO, ESPECIALIZAÇÃO E

No documento Narração oral: uma arte performativa (páginas 67-73)