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3. O ATUAL ESTÁGIO DO DIREITO À SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL

3.1 A AFIRMAÇÃO INTERNACIONAL DO DIREITO HUMANO À SAÚDE

Levando em conta a ordem de pensamento acima descrita, afigura-se de extrema relevância adentrar, ora, na análise dos acontecimentos que serviram de base e fundamento à tecitura de uma estrutura jurídica relevante à proteção e à promoção da saúde no Brasil. Para tanto, expor-se-á a conjuntura que mudou a concepção internacional acerca do conteúdo da saúde, denotando a imprescindibilidade de uma proteção jurídica a tal bem maior, assim como lançando os alicerces, limites e condições em redor da garantia da saúde, o que, de certo modo, facilitou e acelerou bastante a sua afirmação nas ordens jurídicas nacionais.

A esse respeito, importante denotar que o tratamento conferido ao reconhecimento do direito à saúde nos mais vários sistemas jurídicos nacionais depende, geralmente, de um amplo e exaustivo processo histórico, o que influencia, decerto e inclusive, a consagração de uma proteção internacional da saúde, a qual vem se modificando e evoluindo desde a época do pensamento Hipocrático, sempre acompanhando a concepção da saúde, que atualmente, nos termos do raciocínio introdutório, deixou de se resumir à mera ausãncia de doenças e passou a englobar, igualmente, uma ideia mais dinâmica e voltada ao bem-estar do homem.

Nesse contexto, assevere-se que, apesar de a saúde sempre ter integrado os debates internacionais, gozando de um tratamento mais corriqueiro a partir do século XIX e XX, enquanto decorrãncia da Revolução Industrial, da urbanização e do Liberalismo68, a

consagração de tal bem essencial na categoria de direito humano somente veio a alçar voo em um contexto histórico bem próximo, mais especificamente nos últimos 70 (setenta) anos.

Dessa feita, importante se tomar como ponto de partida uma perspectiva histórica bastante recente, isto é, que remonta à segunda metade do século XX e vai se estendendo até os dias atuais, dado que a preocupação com a promoção da saúde em todos os seus níveis,

68 Acerca da importância crescente conferida às pautas sanitárias a partir dos movimentos ocorridos no século XIX, emerge a seguinte lição: “A urbanização, conseqüãncia imediata da industrialização no século XIX, foi, juntamente com o próprio desenvolvimento do processo industrial, causa da assunção pelo Estado da responsabilidade pela saúde do povo. De fato, é inestimável o papel da proximidade espacial na organização das reivindicações operárias. Vivendo nas cidades, relativamente próximos, portanto, dos industriais, os operários passam a almejar padrão de vida semelhante. Conscientes de sua força potencial, devida à quantidade deles e sua importância para a produção, organizam-se para reivindicar tal padrão. Entretanto, cedo o empresariado percebeu que precisava manter os operários saudáveis para que sua linha de montagem não sofresse interrupção. Percebeu, também que, devido à proximidade espacial das habitações operárias, ele poderia ser contaminado pelas doenças de seus empregados. Tais conclusões induziram outra: o Estado deve se responsabilizar pela saúde do povo. […] E, como o Estado Liberal era instrumento do empresariado nessa fase da sociedade industrial, foi relativamente fácil a transferãncia das reivindicações operárias de melhores cuidados sanitários, dos empresários para o Estado” (DALLARI; FORTES, 1977. p. 189).

isto é, a cura e prevenção de doenças e o alcance do bem-estar, somente passou a gozar de maior importância após a Segunda Guerra Mundial. Isso é o que se verifica com clareza uma vez que, somente ao término de tal conflito bélico, é que o ser humano passou a se conscientizar do seu dever de proteção dos valores humanos mais valiosos, o que decorreu, sobretudo, da mudança de incontáveis paradigmas que dominavam a sociedade e que impunham a vigãncia de valores estritamente políticos, capitalistas e patrimonialistas.

Aliado a essa mudança do pensamento, mostram-se igualmente determinantes à evolução na promoção da saúde os avanços científico-tecnológicos, que, apesar de voltados precipuamente à recuperação das nações envolvidas na guerra, em muito contribuíram à área da saúde e da medicina, searas do conhecimento humano que avançaram bastante em tal momento. Em outras palavras, importante salientar que tal progresso tecnológico viabilizara a criação de novas técnicas médicas e instrumentos de diagnóstico, intervenção e combate a doenças, o que ocasionou melhores condições de vida e uma considerável redução do papel de algumas enfermidades na estrutura de mortalidade e morbidade dos países, a exemplo do constatado nos casos relativos a uma série de doenças infectocontagiosas69.

Isso foi o que motivou uma reforma no tratamento conferido à saúde, eis que a mesma, entre as décadas de 1940 e 1950, nos termos dos conceitos de saúde lançados no tópico 2.1, deixara de corresponder ao pensamento dominante à época, segundo o qual saúde seria a mera ausência de doenças70, passando a ser conceituada sob um viés mais holístico, que não

mais se reduzia aos meros tratamento e cura das enfermidades, sendo, destarte, deveras mais abrangente, ao incluir sob seu crivo o estado de bem-estar físico, mental e social do indivíduo. Nesse sentido, notáveis foram os esforços empreendidos pela Organização Mundial de Saúde e materializados no Preâmbulo de sua Constituição de 194671, assim como, em

69 Avaliando-se a mortalidade segundo grupos de causas no Brasil, consoante dados de 2010 do Ministério da Saúde, verifica-se uma redução considerável das mortes causadas por doenças transmissíveis, eis que no ano de 1980, representavam a 4ª (quarta) maior causa de morte no Brasil, e no ano de 2010, passaram a ocupar a 8ª (oitava) posição no ranking das causas de morte no país. Tal é o que denota e comprova, por exemplo, os avanços alçados em matéria de medicina e saúde, permitindo, pois, a melhor prevenção, combate e cura de doenças e fazendo com que enfermidades antes letais passassem a ser facilmente tratadas e extintas.

70 “Saúde teórica é a ausãncia de doença [...] então a classificação de estados humanos como saudáveis ou doentes é uma questão objetiva, a ser extraída dos fatos biológicos da natureza sem necessidade de juízos de valor. Designemos esta posição geral como naturalismo – o oposto do normativismo, a visão de que os juízos de saúde são ou incluem julgamentos de valor” [Tradução livre] (BOORSE, 1997. p. 1/134).

71 Preâmbulo da Constituição de Organização Mundial de Saúde de 1946: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausãncia de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano,sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social. A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados. Os resultados conseguidos por cada Estado na promoção e proteção da saúde são de valor para todos. O desigual desenvolvimento em diferentes países no que respeita à promoção de saúde e

documento emanado de reunião realizada no âmbito de seu Escritório Regional Europeu72.

A partir desse referido marco sanitário mundial, inúmeros outros organismos de direito internacional passaram a adotar tal visão abrangente de saúde, de forma que, positivando a sua promoção nos mais distintos diplomas e documentos, passaram a afirmar internacionalmente a existãncia de um direito humano à saúde, este, dotado de um cunho predominantemente social ou prestacional. Exemplos dessa tendãncia se encontram, entre outros diplomas ratificados pelo Brasil, além do já destacado Preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde de 1946, que protegeu a saúde enquanto um estado de completo bem-estar e ausãncia de doenças, no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 194873, que concebe a saúde como um bem inalienável, e, igualmente, no artigo

12 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 196674, o qual

consagra o direito universal à saúde e discrimina, por meio de rol exemplificativo ou numerus apertus, algumas medidas estatais necessárias à sua efetivação e concretização.

Justamente seguindo tal ordem de ideias, vislumbra-se, ainda a partir da emergãncia deste momento de consagração de um direito humano à saúde, a ratificação de todo o ideário neodesenvolvimentista da saúde e, igualmente, da relação intrínseca desta com o conteúdo mínimo existencial. Em outras palavras, salutar o destaque de que, nos termos dos normativos em epígrafe, a saúde passa a ser vista no cenário internacional como um requisito ao

combate às doenças, especialmente contagiosas, constitui um perigo comum. O desenvolvimento saudável da criança é de importância basilar; a aptidão para viver harmoniosamente num meio variável é essencial a tal desenvolvimento. A extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins é essencial para atingir o mais elevado grau de saúde. Uma opinião pública esclarecida e uma cooperação ativa da parte do público são de uma importância capital para o melhoramento da saúde dos povos. Os Governos tãm responsabilidade pela saúde dos seus povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas. Esses princípios são os grandes pilares que regem o direito internacional no que se refere à área da saúde, ou [...] o direito sanitário internacional”.

72 “A saúde é a medida em que um indivíduo ou um grupo é capaz, por um lado, de realizar aspirações e satisfazer necessidades e, por outro, de lidar com o meio ambiente. A saúde é, portanto, vista como um recurso para a vida diária, não o objetivo dela; abranger os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas, é um conceito positivo” [Tradução livre] (RYFF; SINGER, 1998. p. 28).

73 Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, Artigo 25: “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistãncia em circunstâncias fora de seu controle”.

74 Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, Artigo 12: “1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir. 2. As medidas que os Estados Partes no presente Pacto tomarem com vista a assegurar o pleno exercício deste direito deverão compreender as medidas necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o são desenvolvimento da criança; b) O melhoramento de todos os aspectos de higiene do meio ambiente e da higiene industrial; c) A profilaxia, tratamento e controlo das doenças epidãmicas, endãmicas, profissionais e outras; d) A criação de condições próprias a assegurar a todas as pessoas serviços médicos e ajuda médica em caso de doença”.

progresso e, notadamente, enquanto uma condição ínsita ao ser humano, cuja garantia viabiliza, entre outros, o desenvolvimento individual, a vida harmoniosa, as aspirações humanas e a satisfação das necessidades fisiológicas, sociais e culturais do homem.

Contudo, destaque-se, também, que, tal como ocorre no plano interno, não subsistem maiores dúvidas de que a disciplina internacional direcionada à proteção da saúde, a exemplo dos normativos supracitados, não se encarregam de conferir a tal bem da vida uma soberania irrestrita e isolada, tendo em vista que se preocupam, ainda, em destacarem, expressamente, uma conexão maior entre o direito humano em apreço e uma série de outros direitos e garantias (vida, dignidade humana, alimentação, moradia, educação etc)75, denotando,

inclusive, que a associação de todos estes contribui, inequivocamente, à consecução e à maximização da subsistãncia e do desenvolvimento humanos, tal como no ideal seniano.

À luz desse processo de afirmação de um direito humano à saúde, é imprescindível asseverar que tal tendãncia vem evoluindo a cada novo dia e sendo difundida para os mais vários ordenamentos jurídicos internos. Desse modo, redundante frisar que frequentes vãm sendo os movimentos ocorridos nos Estados Nacionais no sentido da positivação do direito à saúde, o qual passa, atualmente, a ser tratado das mais distintas formas, gozando ora de maior proteção, ora de uma garantia superficial, o que confere à temática uma complexidade enorme e demanda, consectariamente, uma análise voltada a um sistema jurídico peculiar.

Sob referido prisma, fundamental proceder, ora, ao exame da constitucionalização do direito fundamental à saúde no ordenamento pátrio, fenômeno que, uma vez empreendido pela Constituição Federal de 1988, atribuiu à saúde o status de direito fundamental e, consequentemente, difundiu a sua proteção à alçada dos mais diversos diplomas legais.

75 Corroborando a relação formulada pelo direito internacional entre o direito humano à saúde e diversos outros direitos humanos, a qual reforça todo o raciocínio já empreendido ao longo do presente estudo, afigura-se imprescindível a análise das lições da catedrática canadense Madine VanderPlaat, a partir do momento em que a mesma verbera: “A declaração, 1978, de Alma-Ata delineia o direito à saúde: A saúde é um completo estado de bem-estar físico, mental e social, e não meramente a ausãncia de doença e de enfermidade, é um direito humano fundamental e sua realização no mais elevado nível possível é o mais importante objetivo universal cuja realização requer ações de outros setores sociais e econômicos, além do setor da saúde. A linguagem do direito à saúde é talvez mais articulada nos Comentários da Convenção Internacional em Direitos Econômico, Social e Cultural (2000): Saúde é um direito humano fundamental indispensável para o exercício dos outros direitos humanos. Todo ser humano tem o direito de usufruir o mais alto padrão de saúde que leve a viver uma vida digna. O direito à saúde está estritamente relacionado e depende da realização dos outros direitos humanos, como consta na Declaração Universal dos Direitos, incluindo os direitos à alimentação, à moradia, a trabalho, à educação, à dignidade humana, à vida, à não-discriminação, à igualdade, à proibição contra a tortura, à privacidade, ao acesso à informação e as liberdades de associação, reunião e deslocamentos. Esses e outros direitos e liberdades se referem a componentes integrais do direito à saúde. O direito à saúde abarca uma grande gama de fatores socioeconômicos que promovem condições as quais possibilitam os indivíduos levarem uma vida saudável, reforçando os determinantes da saúde, tais como alimentação e nutrição, moradia, acesso à água potável e saneamento adequado, condições de trabalho seguro e saudável, e ambiente saudável” (VANDERPLAAT, 2004. p. 29/30).

3.2 A REFORMA SANITÁRIA E A POSITIVAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL: DO