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3. O ATUAL ESTÁGIO DO DIREITO À SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL

3.3 O DEVER DA EFICIÊNCIA ADMINISTRATIVA NA SAÚDE PÚBLICA

3.3.1 O princípio constitucional da eficiência administrativa como fundamento e limite

Prosseguindo, mister iniciar a análise do princípio da eficiãncia a partir do tratamento acerca da normatividade e do papel desempenhado pelos princípios na atual ordem constitucional. Tal providãncia se afigura salutar, dada a virada ocorrida com a emergãncia do pós-positivismo e do neoconstitucionalismo108, a partir dos quais, os princípios passaram de

meros preceitos sem importância a verdadeiras e primordiais espécies normativas109,

representando as bases fundantes do ordenamento jurídico e compondo, juntamente com as regras, o corpo normativo e regulando as situações reais com relevância jurídica.

Nessa senda, urge ressaltar que a importância dos princípios à atual conjuntura do direito é inquestionável, justificando-se pelo fato de que seus enormes grau de abstração e carga axiológica, quando comparados aos das regras, são essenciais para a completude e à concreção do sistema jurídico, que, em obediãncia ao ideal pós-positivista, apresenta-se de modo aberto e completável, dada, sobretudo, a necessidade de adaptação e correspondãncia entre o direito e a realidade circundante e dinâmica. Em outras palavras, há de se asseverar que os princípios permitem e viabilizam, por excelãncia, tal abertura normativa, eis que a

108 “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O

pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição

das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais [...]. A valorização dos princípios, sua incorporação [...] pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética” (BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. A nova interpretação constitucional: ponderação, argumentação e papel dos princípios. In LEITE, 2008. p. 66). 109 Tratando dos princípios à luz da teoria pós-positivista, consagradora da concepção da ampla normatividade

desses preceitos, Robert Alexy dispõe que: “[...] los principios son mandatos de optimización, que están

caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos” (ALEXY , 1993. p. 86).

construção da norma na casuística demanda uma atividade hermenãutica intensa, medida esta que se maximiza quando o intérprete do direito se encontra diante da aplicação de princípios.

Seguindo tal linha, resta imprescindível a coexistãncia de princípios e regras em um mesmo sistema constitucional, conferindo-lhe supedâneo e correspondãncia com o meio social. Tal é o que se dá uma vez que, pautando-se inclusive nas concepções de Ronald Dworkin e Robert Alexy, grandes expressões de tal momento pós-positivista, constata-se que os princípios se encontram conexos ao ideal de justiça, permitindo uma melhor adaptação do direito à realidade que o cerca e, consequentemente, um melhor direcionamento do provimento e do teor jurídicos à casuística regulada, ao passo em que as regras estão, a seu turno, direta e imediatamente ligadas à conferãncia de estabilidade e de previsibilidade ao direito, garantindo aos indivíduos regulados um mínimo de segurança jurídica110.

Por tal razão, em vista do papel de adaptação do Direito à realidade social desempenhado por essas normas com grau máximo de abstração e de carga valorativa, salutar acrescentar que os princípios constitucionais, porquanto ocupam o mais alto ponto da escala normativa, gozam do status de normas supremas do ordenamento jurídico, funcionando, pois, como balizas e diretrizes de toda a ordem jurídica, norteando a atuação plena do Estado e, igualmente, dos particulares que se encontram sob a égide da jurisdição pátria.

Sob esse prisma, partindo-se da importância intrínseca dessas normas principiológicas ao ordenamento constitucional pátrio, cumpre adentrar, ora, no exame do princípio constitucional da eficiência administrativa, preceito explícito da ordem constitucional que representa o cerne não somente da Administração Pública, mas, sim, da atuação estatal em sua totalidade, isto é, independentemente da separação das funções do Poder uno do Estado111.

Com arrimo em tal ponto, necessário asseverar que a eficiência administrativa não passou a existir no ordenamento nacional apenas a partir de sua recente previsão expressa; pelo contrário, a mesma sempre estivera abrangida, ainda que implicitamente, como uma pauta da atuação e da gestão do Poder Público112. O que ocorre é que, somente em meados da

110 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. A nova interpretação constitucional: ponderação, argumentação e papel dos princípios. In: GABARDO, 2002. p. 79.

111 Defendendo a submissão de todo o Poder Público, isto é, do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, ao

princípio e ao dever de eficiência, muitos publicistas buscam substituir o termo eficiência administrativa por eficiência do Estado. A esse respeito, essencial denotar a seguinte lição: “Parejo Alfonso pondera que a

afirmação política e social dos valores do Estado se dá fundamentalmente sobre a vertente administrativa. Mas que é possível extrair da Constituição [...] a imposição da eficiãncia ao Poder Legislativo, quando impõe critérios de eficiãncia e economia na programação orçamentária; e também ao Judiciário, quando estabelece o Direito Fundamental à efetividade da tutela jurisdicional” (GABARDO, 2002. p. 18/19),

112 Apesar de ter sido explicitada como princípio constitucional só em 1998, a eficiãncia administrativa já vigia e obrigava o Poder Público há muito tempo, ainda que de um modo apenas implícito ou irradiante. Exemplos

década de 90, isto é, a partir da emergãncia da Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998, é que referido preceito atingiu seu ponto culminante, tendo sido alçado, pois, ao patamar dos princípios constitucionais explícitos, manifestando-se a partir do próprio caput do artigo 37 da Constituição Federal113, assim como impregnando os mais vários dispositivos

constitucionais e infraconstitucionais versantes a respeito da atividade estatal.

Dessa feita, dada a inserção da eficiência no ordenamento atual e focando na sua conceituação, é mister adiantar que referido preceito não é dotado de uma significação unívoca ou concreta, consistindo, mais especificamente, em um conceito jurídico indeterminado, cujos sentido e alcance exatos somente podem ser aferidos a partir de uma atividade interpretativa aprofundada por parte do intérprete do direito e em estreita correspondãncia com circunstâncias ou conjunturas fáticas concretas e especificadas.

Contudo, voltando-se ao teor inerente a tal espécie normativa, mister aduzir que consenso há no sentido de que, funcionando na condição de pauta e limite da atuação do Poder do Estado, a eficiência prevã e busca garantir o desempenho, por parte dos agentes públicos, de suas funções conforme critérios de máxima presteza, qualidade e economicidade. Em outros termos, é de se salientar que tal preceito se reporta a uma ideia de custo-benefício, procurando viabilizar uma atuação estatal ótima e condizente com o montante dos recursos disponíveis, de forma que, costuma-se entender, ilustrativamente, como legítimos e eficientes os atos estatais em que os benefícios ao interesse público por ele ocasionados ou maximizados se sobreponham ao prejuízos e gastos pelo mesmo demandados e realizados.

A partir desse referendado entendimento, constata-se que a eficiência constitui um preceito multifacetário114 que se volta não somente aos meios ou aos fins da atuação do

Estado, indo bastante mais além ao preconizar um vínculo de correlação ideal entre os aparatos e recursos estatais e a própria finalidade ou interesse público almejados, configurando, destarte, um modo de agir ideal para o ente público115. Nesse sentido, verifica-

disso são constatados nos: A) Decreto-lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967; B) Artigo 22, da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (“Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”); C) Artigo 6º, parágrafo 1º, da Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1998 (“Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”).

113 Constituição Federal, artigo 37, caput: “A administração pública] direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]” (GRIFEI).

114 Visando uma relação entre meios e fins, “Interpreta-se a expressão 'eficiência' em acepção ampla, indicando dever de selecionar a alternativa que importe a realização mais rápida, menos desgastante para os interesses individuais e nacionais e mais conforme com os valores éticos envolvidos” (JUSTEN FILHO, 1999. p. 84). 115 Considerando que a eficiência consiste em um modo de atuação que associa meios e fins, não há que se

se que, para a consecução de tal objetivo precípuo a eficiãncia abrange os mais variados atributos, merecendo destaque, entre tais: 1) a economicidade, que se volta à produtividade e se materializa na aquisição de uma maior quantidade de riqueza com o mínimo de dispãndios116; 2) a celeridade, a qual integra a noção do custo-benefício no que pertine à busca

de maior rapidez e agilidade nas ações; 3) a qualidade, destinada à garantia não só das prestações, mas, sim, da perfeição e do alcance dos fins relacionados (interesse público); 4) e a racionalidade, que apregoa a escolha de meios lógicos e razoáveis para o alcance dos fins.

Por sua vez, a despeito de sua força principiológica constitucional, a eficiência administrativa não deve ser concebida e aplicada sem limites nem, tampouco, tomando-se, como parâmetros, única e exclusivamente, os atributos metajurídicos supramencionados. Pelo contrário, estando inserido e sendo parte integrante da sistemática jurídico-constitucional e, em especial, da dinâmica da organização administrativa, referido preceito deve coadunar com outros princípios constitucionais, salientando-se, sobretudo, a necessidade de compactuação da eficiência com as próprias legalidade administrativa (legalidade) e supremacia do interesse público (legitimidade), dada a sua inserção no texto constitucional via emenda constitucional117, bem como a condição do agente estatal de serviente ao interesse público.

Devido à essencialidade da eficiência enquanto princípio constitucional regente do Poder Público e, em especial, da Administração Pública, faz-se necessário acrescentar que a inserção expressa de tal norma na Lei Maior motivou o Constituinte reformador a substituir, ainda por meio da Emenda Constitucional n. 19/1998, o modelo de Administração até então vigente por uma nova modalidade, reputada esta mais apropriada às conjunturas social e constitucional, assim como condizente com a eficiãncia na prestação dos serviços e na consecução do interesse público. Substituiu-se, assim, o modelo de administração

confundi-la com a eficácia ou com a efetividade. Isso é o que se dá uma vez que a eficácia representa uma atividade idônea para o alcance dos efeitos, dando enfoque especial, pois, aos meios envolvidos no processo; já a efetividade, por sua vez, resume-se à mera realização dos fins. (GABARDO, 2002. p. 25).

116 O atributo da economicidade se alicerça, sobremaneira, no ponto de equilíbrio consubstanciado no modelo do Ótimo de Pareto, que se pauta “na existãncia de um plano abstrato de atribuições dos recursos disponíveis no sistema econômico enfocado. Na medida em que for promovida a máxima satisfação das necessidades de uma pessoa sem redução da satisfação de outra, incrementa-se a eficiãncia até o grau ótimo, que se apresenta quando esse progresso não for mais possível” (GABARDO, 2002. p. 91).

117 No que pertine à concretização da eficiãncia: “Enquanto produto do exercício da competãncia reformadora, o princípio constitucional da eficiãncia deve ser interpretado e aplicado, observando-se o núcleo constitucional integrante das cláusulas pétreas [...]. Daqui, emergem duas consequãncias: i) o princípio constitucional da eficiãncia deve sofrer um processo contínuo de interpretação conforme a Constituição [lato sensu, dado que, formalmente, já integra o Texto Maior], a fim de evitar rupturas ou fraudes constitucionais que atentem contra a identidade da Lei Fundamental, ii) respeitado o limite anterior, o princípio constitucional da eficiãncia ao interagir, principalmente, com os demais princípios constitucionais da Administração Pública [...] participará do mecanismo das deslocações compreensivas e da ponderação a ser levada a cabo na aplicação dos princípios ao caso concreto” (BACELLAR FILHO, 1998. p. 194).

burocrática por uma atuação administrativa mais gerencial e preocupada com os resultados. Nessa senda, mister destacar que o sistema burocrático118, inspirado no pensamento do

sociólogo alemão Max Weber e regente da Administração Pública pátria por muito tempo, fora marcado119, sobretudo, por: estrita legalidade na atuação do administrador; prevalãncia

de relações hierarquizadas de subordinação entre órgãos e agentes; critério técnico de escolha de pessoal; remuneração baseada na função desempenhada, e não, nas realizações alcançadas; controle de meios; ênfase em processos e ritos (legitimação pelo procedimento).

Com isso, verifica-se, durante tal momento, um apego maior da atividade administrativa às formalidades legais, o que, frequentemente, tornava o alcance dos fins, isto é, o atingimento do interesse público, uma tarefa demorada, sem qualidade e, portanto, ineficiente, motivo pelo qual afigurou-se imperativa, destarte, a partir da inserção constitucional da eficiência, a superação de referido modelo e a implantação de uma sistemática mais adequada e correspondente com aquele preceito: o modelo gerencial120.

Dessa feita, salutar denotar que essa nova modalidade de atuação administrativa, qual seja a gerencial, fora concebida tomando-se como ponto nodal a ideia da eficiência, livrando- se, pois, do apego maior e infrutífero aos aspectos formais da atividade e proclamando um modo de agir que visasse o interesse público e a sua realização máxima. Nesse sentido, vã-se que o novo sistema de governança consensual pode ser visto e analisado como uma verdadeira materialização do princípio constitucional da eficiência, eis que objetiva121, entre

outros: o desempenho da atividade administrativa com agilidade, racionalidade, transparência e eficiência; o alcance dos resultados em detrimento dos processos e ritos (legitimação pelo resultado); a descentralização das atribuições e a especialização das atividades; a participação popular na gestão pública; a capacitação dos agentes públicos.

Seguindo tal linha de raciocínio e destacados os aspectos principais em redor do

118 Por meio de um modelo burocrático de administração: “[...] o Direito é racionalmente estabelecido dentro de um território a partir de um conjunto de regras abstratas. As ordens expedidas pelos funcionários passam a ser impessoais e quem as desobedece os faz como membro da 'associação', pelo que só há obrigação dentro da competãncia objetiva, racionalmente limitada. As definições típico-ideais de Estado e burocracia se fundam, então, na natureza dos 'meios'. A partir desta concepção, os fins do Estado podem ser os mais diferentes devido à existãncia de inúmeros e discrepantes interesses; o que o define é a sua capacidade de alcançar os próprios fins através de meios racionais: os procedimentos” (GABARDO, 2002. p. 32/33). 119 In: GABARDO, 2002. p. 34; MAZZA, 2011. p. 31.

120 No que pertine, especificamente, ao modelo da Administração Pública gerencial, vislumbra-se, segundo as lições de Adriana da Costa Ricardo Schier, que o mesmo “[...] busca legitimidade através da aferição de resultados eficientes. Entende-se, pois, que o administrador público poderá optar pelos meios que entender mais adequados para o devido alcance do interesse público, concretizado a partir das finalidades definidas pela lei. Com efeito, [...] procura-se eliminar o controle de meios, característico da organização burocrática, flexibilizando o regime jurídico administrativo [...]” (SCHIER, 2001. p. 128).

princípio da eficiãncia administrativa e da consequente consagração do modelo gerencial da Administração Pública, torna-se mister proceder, ora, à análise do direito social à saúde no tocante à eficiãncia dos programas e medidas práticas empreendidas pelo Executivo, assim como no que concerne à suposta quebra de eficiãncia decorrente das lides individuais movidas em sede de controle jurisdicional das políticas públicas de saúde. Para tanto, importante iniciar com a metodologia gerencial destinada à estipulação e implementação das ações de saúde pública, de modo a se denotar o nível de eficiãncia real da saúde pública e, somente após, avançar-se aos efeitos ocasionados pela atuação judicial em matéria sanitária.

3.3.2 O princípio da eficiência administrativa e sua aplicação na Saúde Pública: