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2. O DIREITO SOCIAL À SAÚDE ENQUANTO INSTRUMENTO CONCRETO AO

2.4 A SAÚDE COMO ALICERCE DA TEORIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL

2.4.2 Políticas públicas e orçamento: necessário debate entre o mínimo existencial e a

Em vista de tal ordem de ideias, focando-se especificamente o cunho prestacional dos direitos sociais60, o qual prepondera no caso da realização do direito à saúde, verifica-se que

os mesmos, porquanto efetivados principalmente através da realização das políticas públicas e de prestações estatais vinculadas a bens materiais, demandam a realização de dispãndios elevadíssimos por parte de seu destinatário, conjuntura que, no mais das vezes, afigura-se a principal restrição à concretização daqueles direitos fundamentais que impõem prestações positivas ou de ação. Justamente nessa etapa, pois, emerge a importância maior do tratamento

60 Importante asseverar que o que se trata no presente tópico é apenas o viés prestacional dos direitos sociais, eis que, nos termos já denotados, tal categoria de direitos não se limita à imposição de obrigações positivas ou de ação (função social), mas também, abrange deveres de abstenção ou omissão (função individual), segundo os quais o destinatário da norma não pode restringir ou inviabilizar a fruição do direito por parte de seu titular. Denotando o hibridismo dos direitos, saliente-se que “todos os direitos fundamentais […] são, de certo modo, sempre direitos positivos, no sentido de que também os direitos de liberdade e direitos de defesa em geral exigem, para que sejam efetivados, um conjunto de medidas positivas por parte do poder público e que sempre abrangem a alocação significativa de recursos materiais e humanos para sua proteção e efetivação […]” (SARLET; FIGUEIREDO, 2008. p. 12). Corroborando tal ideia, destaca-se a teoria dos direitos humanos plurifuncionais, apregoada por Fabiano André de Souza Mendonça, segundo a qual um dado direito não se enquadra em apenas uma geração de direitos, mas sim, possui elementos que se espraiam entre as funções individual, social e ambiental, sendo o enquadramento dos direitos em dimensões, por sua vez, determinado pela função de um determinado direito que prevalece e sobressai em relação às demais.

da teoria da reserva do possível, nos termos do que será discutido nos parágrafos seguintes. A esse respeito, antes de proceder às implicações da reserva do possível no âmbito do direito social à saúde e a fim de melhor entender tal instituto, faz-se fundamental tecer esclarecimentos acerca do contexto histórico que conferiu supedâneo ao instrumento em apreço. Nessa esteira, salutar o destaque de que tal teoria remonta à Alemanha da década de 1970, época em que, o Tribunal Constitucional Federal, discutindo a efetividade dos direitos sociais em contraponto à reserva da capacidade financeira do Poder Público, mais precisamente no âmbito do ingresso na educação superior, decidira que a prestação reclamada pelo cidadão, mesmo a despeito de se enquadrar, prima facie, no conteúdo de um direito social, deve possuir correspondãncia com as reais condições do Estado, de modo que o administrado só pode exigir aquilo que se encontre dentro de uma relação de razoabilidade e de proporcionalidade61 com o que se pode exigir da entidade estatal62.

Sob referido prisma, adentrando no tratamento dos gastos envolvidos no cumprimento dos direitos sociais, emerge que o instituto da reserva do possível, tal como concebido atualmente, transita em redor das efetivas disponibilidade de bens materiais e recursos, assim como da razoabilidade e da possibilidade jurídica da prestação reclamada para o cumprimento do direito social. Desse modo, passa a discutir a responsabilidade do destinatário do direito à luz de trãs prismas distintos, porém estritamente relacionados entre si, quais sejam: um essencialmente fático, isto é, voltado à aferição de recursos concretos ao cumprimento da medida (verbas, leitos, medicamentos); outro puramente jurídico, encarregado de analisar a capacidade jurídica e a plausibilidade da disposição em redor da prestação invocada; o terceiro, por sua vez, dirigido ao exame da razoabilidade da conduta, aproximando a realização das políticas públicas ao dever de eficiãncia63 da Administração Pública.

Dessa feita, tomando-se em consideração o plano tríplice da teoria da reserva do

61 Ao se tratar do elemento razoabilidade enquanto pauta da teoria da reserva do possível, o qual preconiza que, ainda que o Estado detenha recursos e capacidade jurídica, só pode o titular do direito social reclamar uma prestação positiva se a mesma estiver dentro de uma lógica de razoabilidade e proporcionalidade, esboça-se, desde já, uma relação entre a efetivação dos direitos sociais prestacionais e o princípio constitucional da eficiãncia administrativa, nos termos do entendimento que será retomado e aprofundado no tópico 3.3. 62 In SARLET; FIGUEIREDO, 2008. p. 13/14.

63 Adiantando a aplicação do princípio da eficiãncia na efetivação dos direitos sociais e, especificamente, do cumprimento das políticas públicas, mesmo a despeito do melhor tratamento do tema no tópico 3.3, infra, urge ressaltar que as prestações reclamadas ao Poder Público devem ser razoáveis e proporcionais para serem exigíveis. Isto é dizer, nos termos da abalizada doutrina pátria: "[...] que os responsáveis pela efetivação de direitos fundamentais [...] deverão observar os critérios parciais de adequação (aptidão do meio no que diz com a consecução da finalidade almejada), necessidade (menor sacrifício do direito restringido) e da proporcionalidade em sentido estrito (avaliação da equação custo-benefício - para alguns, da razoabilidade no que diz com a relação entre os meios e os fins" (SARLET; FIGUEIREDO, 2008. p. 16).

possível (campos fático e jurídico e esfera da razoabilidade), vislumbra-se que a aplicação desse instituto no caso concreto se desenvolve a partir de um exame complexo da conjuntura e de todo o substrato envolvidos, de modo a se partir do exame da possibilidade fática para, somente após, avançar à análise das questões jurídicas e culminar com a devida avaliação da proporcionalidade da medida reclamada, esta, nos termos da eficiãncia a ser tratada adiante.

Em outras palavras, a avaliação da plausibilidade das prestações voltadas à consecução dos direitos sociais se desdobra da seguinte maneira: em havendo disponibilidade efetiva de recursos, encontra-se comprovado o prisma fático; contudo, tal não implica na assunção direta da responsabilidade do destinatário da norma positivadora do direito social; pelo contrário, demanda-se ainda que a prestação seja juridicamente exigível contra esta pessoa, o que implica que, em sendo direcionada à atuação do Poder Público, é mister que haja, além dos recursos concretos, uma previsão orçamentária permissiva da atuação estatal; ademais, é fundamental que a prestação envolvida se encontre dentro da lógica do razoável.

Somente após efetivada tal linha de raciocínio, com o alcance de resposta positiva relativamente a todos esses passos enumerados, é que se vislumbra a obrigatoriedade de atuação positiva por parte do Estado, no sentido da realização de um determinado direito social. Destarte, resta inegável que, em restando comprovado algum óbice a tais elementos (searas do fático, jurídico64 e razoável), questiona-se a possibilidade de inércia do Estado, sem

que haja a configuração do descumprimento inescusável do direito prestacional.

Contudo, dada a eficácia plena dos direitos fundamentais, nas linhas do artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal de 1988, afirme-se que essa sobreposição dos direitos sociais pela reserva do possível somente se legitima com a demonstração inequívoca da impossibilidade de atuação do Poder Público, esta, decorrente da ausãncia de um dos trãs elementos supramencionados. Nessa senda, não basta a mera invocação da reserva do possível por parte da Fazenda Pública, sob pena de inefetividade dos direitos sociais; é necessário, pois, que a mesma adentre na exposição da realidade concreta da Administração Pública e, consequentemente, logre ãxito na comprovação da escassez de recursos essenciais à medida reclamada ou ainda da desproporcionalidade ou ineficiãncia da prestação envolvida.

64 No que pertine à discussão acerca da capacidade de a reserva do possível jurídica afastar a obrigatoriedade da atuação prestacional do Estado, grande parte da doutrina esboça uma distinção prática entre a limitação concreta/fática e a restrição jurídica, esta, a qual se pauta na existãncia de recursos e indisponibilidade destes por ausãncia de dotação orçamentária. Neste viés, tal corrente, capitaneada pelos juristas Canotilho, Eros Grau e Ingo Sarlet, entre outros, discorre que a reserva do possível em sua vertente jurídica deve ser vista com temperamentos, tendo em vista que esta cláusula limitativa das prestações estatais "não pode ser reduzida a limite posto pelo orçamento, até porque, se fosse assim, um direito social sob 'reserva de cofres cheios' equivaleria, na prática, [...] a nenhuma vinculação jurídica" (GRAU, 2005. p. 105).

Trasladando-se a análise da reserva do possível à conjuntura do direito social à saúde, impende ressaltar que a discussão da aplicabilidade de tal instituto jurídico no âmbito deste direito fundamental é salutar, considerando que parcela dessa garantia constitucional integra o rol intangível do mínimo existencial. Nessa senda, salutar a retomada da inteligãncia segundo a qual o direito social à saúde, ao envolver condutas de defesa e, notadamente, de prestações, almeja a garantia daquelas condições mínimas de subsistãncia e de desenvolvimento do ser humano, ainda que, nos termos do já explicitado, não se possa ser reducionista a ponto de resumir totalmente tal direito ao núcleo do conteúdo mínimo existencial.

Assim, tendo em vista que somente parte das implicações decorrentes do direito prestacional à saúde tramitam em redor desse núcleo vital intrínseco, há de se afirmar que a abrangãncia das situações e casos dentro do conteúdo do mínimo fisiológico é contingencial e casuístico, devendo ser aferida de acordo com inúmeros caracteres, a exemplo dos contextos social, cultural, jurídico, entre outros. Dessa feita, em sendo o caso atinente à parcela do direito sanitário ínsita ao mínimo existencial, uma peculiaridade emerge no que pertine à aplicabilidade, nos moldes e condições já declinadas, da teoria da reserva do possível.

A esse respeito, assevere-se que, do conflito entre os institutos jurídicos do mínimo existencial e da reserva do possível no âmbito do direito à saúde, o que se vislumbra, em regra, é a necessidade sopesamento de tais preceitos, segundo o que, frequentemente e à luz de um exame apurado das circunstâncias, prevalece a autoridade da proteção do núcleo vital em detrimento da inaplicabilidade da cláusula da reserva do possível. Tal é o que ocorre uma vez que, na condição de princípio constitucional inerente ao núcleo vital intangível, essa parcela do direito à saúde afeta ao mínimo fisiológico, porquanto correspondente ao conjunto de garantias sem as quais o ser humano não subsiste nem progride, goza de uma primazia quase que irrestrita sobre os demais direitos, predominando, muitas vezes, sobre a limitação da responsabilidade estatal e sobre o exame da razoabilidade da prestação pleiteada65.

65 Vertendo neste sentido, destaca-se a consagrada Jurisprudãncia dos Tribunais pátrios, inclusive do STF, de cujas pautas de julgamento se extrai a brilhante ponderação entre mínimo existencial e reserva do possível realizada na decisão da ADPF 45, de Relatoria do Min. Celso de Mello, cujos excertos seguem: “a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais [...] depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existãncia. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrãncia de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do

Em outras palavras, elucidando melhor tal questão, grande parte dos juristas pátrios66

se encarrega de esboçar a ideia de que o mínimo existencial busca garantir um mínimo de efetividade do direito que se discute, in casu a saúde, parcela aquela que se encontra consignada no rol de exigibilidade incondicionada do titular do direito, de modo que o mesmo pode exigi-la do destinatário da norma, notadamente o Poder Público, o qual não pode se escusar de seu cumprimento, sequer mediante a comprovação da reserva do possível.

Contudo, apesar de o Poder Público ficar impossibilitado de suscitar a cláusula da reserva do possível para se esquivar e denegar completamente a prestação invocada pelo titular do direito inerente ao mínimo vital, pode o Estado suscitar referido instituto para o fim de, à luz do princípio da eficiãncia e do juízo de razoabilidade, pleitear a substituição da prestação reclamada por outra igualmente eficaz ao quadro do paciente e, inclusive, mais econômica aos cofres da Fazenda Pública. Para tanto, deve o Estado fazer prova inequívoca das limitações impostas reserva do possível, assim como da plena eficácia, disponibilidade, economicidade e razoabilidade em redor do tratamento alternativo oferecido.

Como uma consequãncia dessa ordem de ideias, evidencia-se a fundamentalidade da proteção do direito social à saúde em face do Estado, eis que, pelo simples fato de tal preceito integrar a pauta do mínimo existencial, não pode o mesmo ser afastado em proveito da reserva do possível ou, mais especificamente, de um intuito puramente materialista da Fazenda Pública. Justamente em tal ponto, considerando-se a premente necessidade de garantia desse bem tão sensível, emerge a necessidade de se adentrar no exame apurado da atuação do Poder Público rumo à efetivação do direito prestacional à saúde, nos termos do capítulo seguinte.

cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Daí a correta ponderação de ANA PAULA DE BARCELLOS [...]: 'Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingãncia que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existãncia. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vã, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.' (grifei) Vã-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existãncia de disponibilidade financeira do Estado [...]”. 66 In SARLET; FIGUEIREDO, 2008. p. 23.