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2. O DIREITO SOCIAL À SAÚDE ENQUANTO INSTRUMENTO CONCRETO AO

2.4 A SAÚDE COMO ALICERCE DA TEORIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL

2.4.1 A saúde e os direitos à vida e à dignidade da pessoa humana

Em conformidade com o pensamento tecido nos parágrafos acima a respeito do conteúdo e do alcance do mínimo existencial no constitucionalismo brasileiro, relevante adentrar, ora, na relação inequívoca entre a tese do núcleo vital fundamental e os direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana, à vida e à saúde, tendo em vista, principalmente, que tal conexão almeja esboçar um viés claro e prático acerca da teoria em comento, assim como lançar as bases da análise a ser empreendida na sequãncia do estudo, sobretudo porque tal raciocínio traça o âmbito de atuação do Poder Público na prestação das políticas públicas de saúde, a responsabilidade do particular no cumprimento do direito à saúde e, igualmente, a pauta da regulação a ser efetivada sobre o campo da saúde prestada pela iniciativa privada.

Nesse sentido, por meio de um exame do acervo de direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988, denota-se a intangibilidade e a dimensão da proteção conferida à dignidade humana, alçada ao grau de princípio fundamental (Artigo 1º, III, entre outros), como também à vida (Artigo 5º, caput, entre outros) e à saúde (Artigo 6º, caput, entre outros), as quais estão intrinsecamente relacionadas e condicionadas entre si, bastando destacar, nesse viés, as seguintes ilações: a vida digna (qualidade de vida) pressupõe a vida e a saúde; a vida se mantém e potencializa com condições de vida dignas e com a saúde; assim como a saúde tem por pressuposto a vida e se potencializa com condições de vida dignas.

Justamente como uma consequãncia de tal posicionamento, não restam dúvidas de que estes direitos fundamentais supremos, porquanto referentes à manutenção do bem maior da existãncia humana (a vida) e propiciadores das condições mais genéricas do desenvolvimento humano, nas linhas do neodesenvolvimentismo esposado no estudo vertente, envolvem uma carga intangível e considerável do núcleo vital consagrado na teoria do mínimo existencial, sobretudo porque, conforme já aduzido, abrangem elementos e condições de vida fundamentais à natureza humana, sem as quais, reprise-se, o indivíduo não sobrevive ou alcança um patamar de vida digno e condizente com o desenvolvimento.

Para a comprovação de tal nexo à luz de um prisma mais conceitual, basta denotar, por exemplo, o ponto de intersecção entre a teoria da dignidade da pessoa humana e a agenda consagradora do mínimo existencial. Nesses termos, saliente-se que a própria concepção do princípio fundamental de uma vida digna, apesar de não se confundir com a ideia do mínimo

fisiológico, já desponta elementos idãnticos àqueles atribuídos ao núcleo vital intangível do ser humano, notadamente pelo fato de se referir, conforme apregoa a mais abalizada doutrina58, aos caracteres intrínsecos do homem que o tornam um sujeito de direitos, assim

como um ser digno de respeito, autonomia e ampla participatividade ativa na sociedade.

Por sua vez, trasladando-se referido raciocínio à seara dos direitos à vida e à saúde, denota-se, aqui, o mesmo nexo que se verifica com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, acima explanado, posto que tais garantias constitucionais possuem, igualmente, um núcleo intangível que se reporta à própria essãncia da existãncia e da sobrevivãncia humanas, sobretudo porque, sem vida ou saúde, o ser não se encontra apto à existãncia ou, sequer, à sobrevivãncia ou à busca do desenvolvimento. Dessa feita, inegável que os trãs direitos em epígrafe se enquadram e subsumem nos conceito e conteúdo da teoria do mínimo existencial, nos termos do que vem se manifestando, inclusive, a Jurisprudãncia dominante do Colendo Supremo Tribunal Federal e das mais várias Cortes de Justiça pátrias.

Corroborando o acolhimento, nas pautas do Poder Judiciário, notadamente do STF, dos direitos à dignidade da pessoa humana, da vida e da saúde enquanto manifestações do núcleo mínimo vital, evidenciam-se, em incontáveis julgados, a proteção maior conferida a tais direitos fundamentais, os quais prevalecem sobre outras garantias conflitantes e passam a gozar de uma proteção quase absoluta. Nesse sentido, adiante-se que o Poder Judiciário59,

58 Adentrando na conexão entre o mínimo existencial e os direitos à dignidade humana, à vida e à saúde, destaque-se que o conceito do núcleo vital mínimo em muito se aproxima da ideia de dignidade da pessoa humana, bastando trazer à colação, assim, a conceituação jurídica formulada pelo jurista Ingo Wolfgang Sarlet: “Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distinta de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existãncia e da vida em comunhão dos demais seres humanos” (SARLET, 2001. p. 60). 59 Sobre o tratamento jurisprudencial declinado à temática da relação entre o mínimo existencial e direitos

constitucionais a exemplo do direito social à saúde, que será melhor explorado em capítulo futuro, fundamental adentrar no exame de trechos de ementa do Supremo Tribunal Federal, os quais denotam a imprescindibilidade da prevalãncia sobre os demais daqueles direitos sociais relacionados ao núcleo intangível vital, assim como, a vedação ao retrocesso social, in verbis: “[...] DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. - O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciãncia constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. - A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazã-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniãncia e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. - A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto

decidindo de tal modo, verte, com frequãncia, até mesmo em razão do cunho social dos direitos em questão, em direção ao amplo reconhecimento da responsabilidade do Poder Público no cumprimento das prestações e políticas públicas implementadas rumo à efetivação dos direitos à dignidade, à vida e à saúde, assim como julga com base no efeito non cliquet, segundo o qual tais garantias fundamentais não podem ser restringidos ou abolidos da ordem constitucional vigente, sob pena de ofensas ao Estado Constitucional e Social de Direito.

À luz desse pensamento e focando-se, ora, no direito social à saúde, em virtude de sua relevância maior ao presente estudo, afigura-se salutar o destaque de que a própria efetivação desse direito fundamental, a par de sua relação intrínseca e indubitável com a agenda do conteúdo mínimo fisiológico, já discutida e explicitada, em muito se aproxima da disciplina e da proteção conferida ao referendado e intangível núcleo mínimo existencial.

constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes. A CONTROVÉRSIA PERTINENTE À “RESERVA DO POSSÍVEL” E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS”. - A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiãncia de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental. Magistério da doutrina. - A cláusula da reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes. - A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existãncia digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistãncia social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV). A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüãncia desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados. [...] (Supremo Tribunal Federal, ARE 639337 AgR, Relator Min. CELSO DE MELLO, 2ª Turma, julgado em 23/08/2011, Publicado no DJe do dia 14-09-2011).

Em outras palavras, relevante salientar que, exatamente como denotado a respeito do conteúdo mínimo existencial, o direito social à saúde: 1) enquanto dotado de uma carga valorativa ínsita aos princípios, tende a preponderar sobre os demais normativos em conflito, assim como; 2) desenrola-se por meio de deveres de abstenção e, principalmente, de ação, os quais impõem ao destinatário da norma uma linha de conduta positiva voltada ao cumprimento de prestações e de políticas públicas positivas direcionadas à disponibilização dos serviços voltados à maximização e manutenção da saúde de seus titulares.

Nesse norte, portanto, evidenciando-se estes caracteres essenciais impingidos na teoria do mínimo existencial, assim como no direito à saúde, os quais tãm nas prestações positivas os maiores meios de instrumentalização e efetivação, cumpre proceder, no presente momento, ao exame da reserva do possível, instituto jurídico que, em viés oposto à implantação e ao cumprimento das políticas públicas, tenciona a limitação da atuação estatal, sobretudo porque as linhas de conduta positivas impostas ao Estado lato sensu demandam o dispãndio de enormes recursos públicos e, consequentemente, uma ampla disponibilidade orçamentária.

2.4.2 Políticas públicas e orçamento: necessário debate entre o mínimo existencial