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4. PRIVATIZAÇÃO COMO MEIO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

4.2 EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E ASSISTÊNCIA À

4.3.2 Regime jurídico dos contratos de planos privados de saúde

Dando prosseguimento a todo o entendimento já esboçado e avançando-se, ora, à análise do regime jurídico aplicável à seara da assistãncia privada à saúde, afigura-se mandamental reprisar, nas linhas já adiantadas, que o setor suplementar de saúde é regido, sobretudo, pela combinação e pela coerãncia lógica entre os preceitos emanados de dois diplomas legais peculiares213: o primeiro deles, bastante específico e voltado, quase que

exclusivamente, à temática da assistãncia privada à saúde, qual seja a lei n. 9.656, de 3 de junho de 1998, ou Lei dos Planos de Saúde; o segundo, a seu turno, referente à proteção da relação de consumo no ordenamento pátrio, materializando-se na lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, também denominada Código de Defesa do Consumidor – CDC.

À luz de referida sistemática jurídica, necessário dispor que referidos corpos legais se afiguram de salutar importância à garantia da ordem e do equilíbrio no segmento da saúde prestada pelos particulares, posto notadamente que, antes de suas respectivas vigãncias e aplicabilidade na seara da assistãncia privada à saúde, predominava, quase que exclusivamente, os interesses viciosos do polo contratual mais forte, isto é, dos fornecedores de planos de saúde. Em outras palavras, saliente-se que somente após o início da aplicabilidade de tais diplomas nas avenças de planos de saúde, os quais se complementam e viabilizam a proteção garantida pela Carta Constitucional de 1988 aos direitos à saúde e, igualmente, à vida, é que passou a se evidenciar o surgimento de uma relação jurídica de consumo equilibrada, estável e marcada, principalmente, pela conformação entre os direitos fundamentais em epígrafe, os princípios econômicos garantidores das livres iniciativa e concorrãncia e, igualmente, a proteção de seus usuários ou beneficiários consumidores.

Nesse diapasão, procedendo-se à relação e aos papéis desempenhados pela Lei dos Planos de Saúde, Lei n. 9.656/1998, e pelo Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.078/1990, na regulamentação da assistãncia privada à saúde, há de se relembrar que aquela primeira surge da necessidade de se especificar e esmiuçar a relação híbrida firmada entre o

213 Neste ponto, imprescindível denotar que esse regime jurídico dos contrato de planos privados de assistãncia à saúde, formado a partir da combinação dos dispositivos da Lei dos Planos de Saúde e do Código de Defesa do Consumidor, só incide nos casos de contratos novos, isto é, firmados após o início da vigãncia da Lei n. 9.656/1998, ou de contratos antigos adaptados a esta lei, o que ocorre mediante opção de seu usuário ou beneficiário, consoante artigo 35, do referido diploma. Quanto aos contratos antigos não adaptados, a legislação aplicável é, principalmente, o Código de Defesa do Consumidor, que pode ser aplicado conjuntamente com a legislação anterior aplicável aos seguros e delineada na nota de rodapé n. 192.

consumidor e a operadora do plano de saúde, o que não pode ser realizado pelo CDC, dada a sua natureza vasta e genérica214. Com base nisso, depreende-se que a Lei n. 9.656/1998

adentra, por ser dispositivo mais especial, nas minúcias dos contratos e das relações envolvidas nos planos de saúde, deixando ao Código de Defesa do Consumidor um espaço concomitante e mais amplo, haja vista incidir quando aquela legislação específica silencia ou se afigura inaplicável; desempenha o CDC, pois e notadamente, o papel de fixar as perspectivas e diretrizes maiores da modalidade contratual em comento215216.

Sob referido prisma, adiantando-se à apreciação do regramento aplicável aos contratos de assistãncia privada à saúde e atendo-se, inicialmente, à Lei n. 9.656/1998, encarregada de dispor sobre os planos e seguros privados de assistãncia à saúde, urge destacar que a mesma, conforme lições de Maria Stella Gregori217, demonstra uma preocupação tríplice com o

segmento regulamentado, voltando-se, pois, à proteção: institucional, encarregada da adequação e da vigilância dos fornecedores dos serviços, isto é, das operadoras de planos de saúde; econômico-financeira, destinada a normatizar as finanças e a saúde financeira dessas prestadoras de serviços; assim como assistencial, ficando incumbida do disciplinamento da relação contratual propriamente dita, encarregando-se de pautar as cláusulas contratuais, especificamente a respeito da abrangãncia e da qualidade da cobertura contratual e, notadamente, da legitimidade das cláusulas limitativas da responsabilidade das operadoras, estas as quais, em razão da importância ao tema, serão melhor tratadas no subtópico seguinte.

Por sua vez, diante das peculiaridades e da enorme especificidade da Lei n. 9.656/1998

214 “A matéria 'proteção e defesa do consumidor' é por si só vasta e complexa, donde ser na prática impossível a previsão de tudo que diga respeito aos direitos e deveres dos consumidores e fornecedores. Por isso mesmo é que o novo Código vale muito mais pela perspectiva e diretrizes que fixa para a efetiva defesa ou proteção do consumidor, bem como pelo devido equacionamento da harmonia buscada, do que pela exaustão das normas que tendem a esses objetivos” (FILOMENO, José Geraldo B. In GRINOVER et al, 2007. p. 18/19). 215 Reforçando tal inteligãncia, evidencia-se que a subsidiariedade do Código de Defesa do Consumidor em

relação à Lei dos Planos de Saúde é expressamente prescrita no corpo deste último diploma, o qual apregoa, em seu artigo 35-G, o seguinte: “Aplicam-se subsidiariamente aos contratos entre usuários e operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o §1º do art. 1º desta Lei as disposições da Lei nº 8.078, de 1990”. 216 Divergindo a respeito da tese da subsidiariedade do Código de Defesa do Consumidor em relação à Lei dos

Planos de Saúde, Cláudia Lima Marques defende o seguinte: “Este art. 35-H (sic) da lei especial não está dogmaticamente correto, pois determina que norma de hierarquia constitucional, que é o CDC […], tenha apenas aplicação subsidiária a normas de hierarquia infraconstitucional, que é a Lei 9.656/98, o que dificulta a interpretação da lei e prejudica os interesses dos consumidores que queria proteger. Sua ratio deveria ser a

de aplicação cumulativa de ambas as leis, no que couber, uma vez que a Lei 9.656/98 trata com mais detalhes os contratos de planos privados de assistência à saúde do que o CDC, que é norma principiológica e anterior à lei especial. Para a maioria da doutrina, porém, a Lei 9.656/98 tem prevalãncia como lei

especial e mais nova, devendo o CDC servir como lei geral principiológica a guiar a interpretação da lei especial na defesa dos interesses do consumidor, em especial na interpretação de todas as cláusulas na maneira mais favorável ao consumidor (art. 47 do CDC)” (MARQUES, 2011. p. 633).

em relação aos planos privados de saúde, a qual adentra e esmiuça a relação contratual formulada na seara da assistãncia suplementar à saúde, nos termos da vertente de atuação tríplice informada acima, extrai-se a importância maior do diploma consumerista à relação jurídica em apreço, a qual, subsidiariamente à lei mais específica, nos termos já apreciados, encarrega-se de fazer incidir sobre a modalidade contratual dos planos de saúde as diretrizes mais genéricas e não apreciadas pela Lei dos Planos de Saúde, especificamente acerca da proteção ambivalente do consumidor e da iniciativa privada nos contratos de consumo, coadunando toda a relação contratual firmada à disciplina constitucional relativa à proteção das boas práticas consumeristas e, principalmente, auxiliando a legislação específica e afeta à seara da saúde privada, suplementar à consecução da universalização do direito à saúde.

Nesse viés, voltando-se especificamente ao regramento conferido aos planos de assistãncia à saúde pela Lei n. 8.080/1990, instrumentalizadora do Código de Defesa do Consumidor, mister se faz destacar que muita polãmica pairava em redor da discussão acerca da natureza contratual de consumo creditada aos planos de saúde. Atualmente, todavia, não há mais que se falar mais em tal imbróglio, dado o enquadramento dos polos negociais nas figuras do fornecedor de serviços e do consumidor, bem como a completa exaustão do tema pela lei dos planos de saúde, precisamente em seu artigo 35-G, transcrito na nota de rodapé n. 215, e, igualmente, pela jurisprudãncia das Cortes de Justiça pátrias, em especial do Colendo Superior Tribunal de Justiça, que consagra tal raciocínio por meio de seus mais relevantes precedentes jurisprudenciais, assim como através da edição da Súmula n. 469, segundo a qual aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde.

Nessa senda, assevere-se que dúvidas não há de que o papel desempenhado pelo Código de Defesa do Consumidor se afigura suplementar às disposições da Lei n. 9.656/1998, sendo, porém, de cunho fundamental, no sentido do alcance da garantia da harmonização dos interesses contratuais de consumo, de modo a buscar o equilíbrio da relação consumerista que, a priori, encontra-se desnivelada, ante a hipossuficiãncia do consumidor218, sobretudo tendo

em vista os abusos perpetrados pelas operadoras de saúde no momento anterior ao surgimento do marco regulatório. Portanto, na busca desse equilíbrio entre consumidor e fornecedor nas

218 “[...] embora se fale das necessidades dos consumidores e do respeito à sua dignidade, saúde e segurança, proteção dos seus interesses econômicos, melhoria de sua qualidade de vida, já que sem dúvida são eles a parte vulnerável no mercado de consumo, justificando-se dessarte um tratamento desigual para as partes manifestamente desiguais, por outro lado se cuida de compatibilizar a mencionada tutela com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, viabilizando-se os princípios da ordem econômica de que trata o artigo 170 da Constituição Federal, e educação-informação de fornecedores e consumidores quanto aos seus direitos e obrigações” (FILOMENO, José Geraldo Brito. In GRINOVER et al, 2007. p. 17).

linhas da proteção despendida pela Lei n. 8.080/1990, exercem um papel salutar os princípios regentes das relações de consumo, notadamente aqueles preceitos da: obrigatoriedade do instrumento contratual ou pacta sunt servanda; transparência, voltado à transmissão de informações claras e precisas; boa-fé objetiva, relativo ao dever de honestidade e lealdade das partes contratantes; como também, ademais, o da função social do contrato.

Trasladando-se tal inteligãncia à casuística específica dos planos de saúde, verifica-se que a harmonização contratual tem como pressuposto a justa e escorreita prestação dos serviços de saúde ao consumidor, o que deve ser feito considerando o tipo do plano de saúde contratado, assim como a amplitude dos serviços abrangidos e as condições previstas no instrumento do contrato, devendo-se ter como norte interpretativo a liberdade contratual, a obrigatoriedade dos contratos e os demais princípios consumeristas acima destacados, quais sejam a boa-fé objetiva, a transparãncia, a função social do contrato de consumo. Justamente à luz desse enfoque é que o estudo se desenvolverá a seguir, precisamente no que toca à avaliação de algumas condições concretas em torno de instrumentos e práticas contratuais de planos de saúde, devendo se trazer em pauta discussões polãmicas a respeito da extensão da responsabilidade dos fornecedores dos serviços e, igualmente, da validade e do respaldo legal de certas cláusulas contratuais limitativas da abrangãncia ou cobertura da convenção.