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5. PAPEL REGULATÓRIO DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR

5.3 O PODER REGULATÓRIO DA ANS E O ALCANCE DE SUAS FUNÇÕES

5.3.2 As agências reguladoras e sua função normativa

Para além das atribuições executivas estendidas ao fenômeno regulatório, destaca-se que uma segunda função de extrema importância ao exercício das agãncias reguladoras é a normativa, que goza de relevância maior na disciplina da regulação do Estado nos domínios social e econômico, porquanto encontra-se intrinsecamente ligada ao conhecimento e ao caráter técnico apreendidos nas mãos dos que integram o corpo funcional dessas autarquias especiais. Em outras palavras, emerge que, dadas as peculiaridades e a complexidade da

293 Em consonância com as lições da doutrinadora administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “o exercício desse poder de direção e controle constitui um poder-dever da Administração, ao qual ele não pode furtar-se, sob pena de responsabilidade por omissão. Mas deve ser exercido dentro de limites razoáveis, não podendo a fiscalização fazer-se de tal modo que substitua a gestão da empresa. A Administração apenas fiscaliza. Ela não administra a execução do serviço” (DI PIETRO, 1999. p. 80).

regulação setorial consagrada, a competãncia regulatória, assim como toda a atividade administrativa, que busca supedâneo no preceito da legalidade, alicerça-se em disposições normativas emanadas das próprias agãncias reguladoras, as quais, buscando validade na legislação editada, normatizam uma série de critérios técnicos ínsitos ao setor regulado294295.

Em vista, portanto, da função legiferante destinada às agãncias reguladoras, assim como da impossibilidade de esgotamento dessa enorme carga de conhecimento técnico por parte da legislação stricto sensu296, afigura-se salutar o destaque de que referida atribuição

normativa não representa, inclusive à luz do já adiantado, qualquer afronta à divisão funcional do poder do Estado. Até mesmo porque a disciplina normativa emanada das agencies constitui uma materialização do fenômeno jurídico da desconcentração normativa297, deslegalização ou

delegificação, segundo o qual o legislador transfere uma parcela de suas atribuições ao Poder

294 Sobre a densificação da lei essencial à validade das normas da ANS, vide CAVALCANTI, 2009. p. 232/234. 295 Frisando a impossibilidade de esgotamento da norma pelo Legislativo, sobretudo no que tange a conteúdo

técnico, merece destaque a seguinte lição: “o legislador não tem, necessariamente, o conhecimento técnico nem a proximidade dos fatos a editar a norma, que, por isso, deve se manter num plano de generalidade, para abrigar todas as situações; não é, assim, viável que adentre detalhes; ademais, as normas sobre o funcionamento do mercado tendem a ser normas técnicas, econômicas e financeiras, que mudam com a evolução tecnológica ou comercial; se a lei cuidasse de cada detalhe, estaria constantemente desatualizada e provocaria a frequente necessidade de movimentação do Poder Legislativo” (GUERRA, 2005. p. 119). 296 Esboçando um histórico acerca da impossibilidade de exaustão da legislação pelo Poder Legislativo, assim

como, da tendãncia à conferãncia de funções normativas ao Poder Executivo, Sérgio Varella Bruna leciona: “Apesar dos esforços do Legislativo, desse modo, a marcante ineficiãncia dos Parlamentos em dar conta das novas exigãncias econômicas manifestadas na sociedade, abriu espaço para que o Executivo - agora já não mais de origem monárquica e munido da força conferida pelas eleições populares - passasse a ocupar o espaço deixado em aberto por aquele Poder. O esquema clássico que, a despeito da separação de poderes, fora originalmente concebido para vigorar com a supremacia do Legislativo sobre os demais Poderes, passa a ser marcado por uma gradativa proeminãncia do Poder Executivo […]. Pode se afirmar, portanto, que a tendãncia atual é respeitar as delegações de poderes normativos a órgãos executivos sempre que haja meios para controlar a regularidade do exercício da função administrativa, o que pode ser realizado tanto por meio da supervisão política (do Congresso ou do próprio Executivo), quanto judicialmente, mediante análise das diretrizes predefinidas pelo legislador, expressa ou implicitamente, nas leis instituidoras de tais competãncias, bem como pela da observância de salvaguardas processuais […] a conferir […] maior grau de racionalidade aos processos decisórios da Administração” (BRUNA, 2003. p. 70/71, 108).

297 Acerca da desconcentração normativa, Alexandre Santos de Aragão parte em uma defesa exaustiva: “Inicialmente, devemos destacar que o objetivo almejado pelo liberalismo do século XVIII, do absoluto império da lei, nunca foi atingido. Logo foi verificada a incompletude das leis, o que exigiu, tanto no Direito privado como no Público uma progressiva construção jurisprudencial, criadora até mesmo de novos institutos jurídicos [...]. No que diz respeito exclusivamente ao desenvolvimento das atividades administrativas, também não demorou para ser constatada a impossibilidade da lei estabelecer prévia e exaustivamente todos os atos que o administrador deveria, de forma autômata, praticar para proteger o interesse público. Impôs-se ao legislador que, na impraticabilidade de prever todas as situações que demandariam a atuação do Poder Público, concedesse à Administração certa liberdade para determinar o conteúdo dos seus preceitos. As leis passaram então a ser mais gerais e menos determinadas. Essa técnica legislativa recebeu o nome de discricionariedade. […] Ademais, é, d.v., ingãnua a posição segundo a qual o Poder Legislativo deve concentrar todo o poder normativo do Estado. O caráter lento e pouco técnico do processo legislativo inviabilizaria o desempenho das funções estatais na realidade contemporânea, cada vez mais complexa e dinâmica. Limitar as formas de atuação e organização estatal àquelas do Século XVIII, ao invés de, […] proteger os direitos dos indivíduos e da sociedade, retira-lhes a possibilidade de regulamentação e atuação efetiva dos seus interesses” (ARAGÃO, 2002. p. 291/293).

Executivo, dada a insuficiãncia de o Legislativo exaurir a sistemática do interesse público, em virtude, sobretudo, da lentidão e do cunho pouco técnico do processo legislativo pátrio.

Com base nesse raciocínio, verifica-se que a função normativa exercida pelas autarquias especiais em apreço se alicerça na própria atribuição pelo Poder Legislativo, no sentido de que as normas daquela decorrentes se afiguram espécies normativas de hierarquia inferior à Constituição e à lei, as quais buscam fundamento de validade, portanto, no fato de serem dotadas de grande carga de tecnicismo ou capacidade técnica298, circunstância esta que

propicia o adensamento normativo da regulação empreendida pela agency, o qual pode se materializar através da edição de instruções, portarias e resoluções, e, consectariamente, o que viabiliza os esforços rumo ao ãxito do controle e do equilíbrio do subsistema regulado.

A partir daí, extrai-se a legitimidade da função normativa recaída sobre tais pessoas de direito público, devendo-se temperá-la, contudo, com o teor da legislação stricto sensu. Ou seja, dado o caráter infralegal deste corpo normativo, o qual goza de um status de norma secundária, deve o mesmo prestar uma total obediãncia às normas primárias, isto é, à Constituição e à lei, dada a inteligãncia apregoada por Hans Kelsen299 ao longo de sua tese da

pirâmide de normas; não pode, portanto, o enunciado normativo emanado de uma agãncia reguladora contrariar ou alterar texto da Carta Magna ou de lei que lhe confere substrato.

Por sua vez, considerando-se a vinculação das agãncias reguladoras ao Poder Executivo, eis que integram a estrutura desta esfera política, faz-se mister que a normatização emanada das mesmas se encontrem em conformidade não somente com as leis editadas mediante deliberação parlamentar, como já afirmado, mas, também, em consonância com o Poder Regulamentar que cabe ao Chefe do Poder Executivo. Tal é o que ocorre uma vez que, nos termos do mandamento constitucional300, compete privativamente ao Presidente da

298 Denotando a necessária conferãncia de funções normativas às agãncias reguladoras, especificamente para viabilização de uma regulação técnica e isenta, destacam-se os seguintes ensinamentos de Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “Com efeito, está na atribuição de uma competência normativa reguladora a chave para operar em setores e matérias em que devem predominar as escolhas técnicas, distanciadas e isoladas das disputas partidárias e dos complexos debates congressuais, pois essas, distintamente, são métodos mais apropriados às escolhas político-administrativas, que deverão, por sua vez, se prolongar em novas escolhas administrativas, sejam elas concretas ou abstratas, para orientar a ação executiva dos órgãos burocráticos da Administração Direta” (MOREIRA NETO, 2003. p. 117).

299 A esse respeito, o doutrinador pátrio Sérgio Guerra, parafraseando o jurista austríaco, leciona: “não é demais registrar que há uma hierarquia entre as normas, que se baseia no pressuposto básico da conformidade das disposições das normas de grau inferior às de categoria superior, que não podem invadir ou contrariar a matéria de competãncia das de grau mais elevado. Nas palavras de Hans Kelsen: 'Direito regula a sua

própria criação, na medida em que uma norma jurídica determina o modo em que outra norma é criada e também, até certo ponto, o conteúdo dessa norma. [...] A relação entre a norma que regula a criação de outra norma e essa outra norma pode ser apresentada como uma relação de supra e infra-ordenação [...] uma hierarquia de diferentes níveis de normas'” (GUERRA, 2005. p. 116/117).

República, com o auxílio dos Ministros de Estado, o exercício da direção superior da administração federal, vedando-se, pois, posicionamento normativo do Executivo contrário ao que preceitua o chefe do Poder Executivo, inclusive por meio da edição de decretos.

À luz disso, restando inegável a legitimidade da atribuição de uma função normativa às agãncias reguladoras, sobretudo em decorrãncia da impossibilidade de esgotamento da norma e do potencial legiferante pelo legislador pátrio, assim como da necessidade de apreensão de um alto grau de conhecimento técnico pela normatização atinente ao fenômeno da regulação econômica, afigura-se patente o papel normativo desempenhado pelas autarquias especiais em apreço rumo ao sucesso da atividade regulatória do Estado. Nesse ponto, pois, fundamental asseverar que ninguém melhor para normatizar o segmento econômico que a agãncia responsável pelas suas fiscalização, planejamento ou fomento, sobretudo tendo em vista que aquela entidade detém um conhecimento técnico do setor regulado que não é apreendido por nenhum outro órgão ou pessoa do Poder Público, sequer pelo Legislativo.

Nesse diapasão, tendo em vista a essencialidade da função normativa das agãncias reguladoras, notadamente para o lançamento das bases e das pautas regulatórias, quer em suas modalidades fiscalizatória, de planejamento ou de incentivo do setor, e trasladando-se tal inteligãncia à temática da regulação da assistãncia privada à saúde, extrai-se a importância maior das normatizações editadas pela Agãncia Nacional de Saúde Suplementar – ANS ao empreendimento de suas atividades precípuas e, consequentemente, ao equilíbrio das relações contratuais fiscalizadas e desenvolvimento de todo o segmento de saúde suplementar.

Tendo em vista o substrato declinado nos parágrafos acima, a respeito da fundamentalidade da função normativa à eficiãncia da regulação econômica empreendida pelas agãncias reguladoras pátrias, inclusive pela ANS, nos termos do tema em desenvolvimento, vislumbra-se, inequivocamente, a preocupação do legislador pátrio com a previsão expressa da extensão de amplos atributos normativos à competãncia das autarquias especiais afetas à regulação do segmento privado, especificamente como ocorre no caso da intervenção do Estado no domínio da assistãncia privada à saúde. Ilustrativamente nesse viés e atendo-se, ora, à legislação pertinente à seara da saúde suplementar em evidãncia, quais sejam as Leis Federais n. 9.656/1998 e n. 9.961/2000, emerge que ambas fazem referãncias expressas ao exercício de competãncias normativas por parte da Agãncia Nacional de Saúde Suplementar, quer relativas ao modo de fiscalização do setor, quer referentes à extensão das obrigações e da cobertura e à qualidade dos serviços prestados pelas operadoras de serviços.

Examinando-se tal atividade normativa sob um viés prático, isto é, à luz dos enunciados prescritos nas Leis dos planos de saúde e da ANS, denota-se que o Legislativo não hesitara ao, expressamente, atribuir à autarquia regulatória em comento a normatização de conjunturas e condições favoráveis a uma fiscalização eficiente do setor e, ainda, à busca da estabilidade e do desenvolvimento da área da saúde prestada pelo particular. Nesses termos, fazem prova, dentre diversos outros dispositivos legais, os incisos I a XII, XIV a XVI e XVIII, do artigo 4º, da Lei n. 9.961/00, os quais incumbem a ANS de, entre outras medidas: propor políticas e diretrizes gerais para a regulação do setor; estabelecer caracteres gerais dos contratos regulados; elaborar rol de procedimentos e eventos sanitários de referãncia; disciplinar acerca do credenciamento e do descredenciamento das operadoras de saúde; fixar parâmetros e indicadores de qualidade e cobertura da assistãncia à saúde; normatizar conceitos técnicos, a exemplo de doenças e lesões preexistentes; definir segmentações contratuais de planos de saúde; estipular pautas regentes das operadoras de saúde, inclusive no que tangencia às modalidades de sanções aplicáveis a estas empresas.

Por sua vez, adentrando-se mais a fundo nos mecanismos regulatórios empreendidos pela ANS não subsistem maiores dúvidas de que referida autarquia, seguindo a esteira do instituto da delegificação e da previsão legal em epígrafe, vem cumprindo, inequivocamente, com as competãncias normativas a si impostas pelo Poder Legislativo pátrio por meio da edição dos diplomas aplicáveis aos Planos de Saúde e à ANS. Nesse diapasão, voltando-se a uma análise casuística dos mecanismos normativos expedidos pela agãncia reguladora em apreço, tem-se que o acervo legiferante elaborado pela entidade reguladora dos planos de saúde, notadamente através das resoluções normativas, disseminam-se, basicamente, por duas áreas maiores do fenômeno regulatório, quais sejam: a ordenação da logística da regulação, isto é, dos procedimentos de fiscalização e penalização, a exemplo das RNs n. 48/2003301, n.

124/2006302 e n. 57/2001303; assim como, a normatização assistencial, ou seja, da cobertura e

da qualidade dos serviços ofertados, de onde se extraem, entre diversas outras Resoluções Normativas, aquelas de n. 211/2010 e 338/2013304, n. 162/2007305 e n. 63/2003306.

A esse respeito, portanto, extrai-se a imprescindibilidade da extensão das competãncias normativas às agãncias reguladoras pátrias, notadamente àquelas afeitas à

301 Direcionada ao Processo Administrativo para apuração de infrações e aplicação de sanções pela ANS. 302 Voltada para a aplicação das penalidades aplicáveis em casos de infrações à Lei dos Planos de Saúde. 303 Encarregada de regulamentar o Termo de Compromisso de Ajuste de Conduta das operadoras de saúde. 304 Responsáveis pela atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, referãncia básica da cobertura. 305 Destinada ao esclarecimento técnico dos conceitos de doenças e lesões preexistente, entre outras medidas. 306 Editada para o fim de regulamentar o reajuste das contraprestações por variações de faixa etária.

finalidade fiscalizatória, como ocorre com a Agãncia Nacional de Saúde Suplementar. Tal é o que se comprova, objetivamente, a partir da constatação de que, ao ãxito do fenômeno regulatório e à viabilização da estabilidade e do progresso do setor regulado, faz-se necessária a figura de um ente fiscalizador dotado de ampla autonomia e, inclusive, a vigãncia de um corpo normativo detentor de uma considerável carga de conhecimento técnico ínsito ao segmento regulado, assim como igualmente alheio a ingerãncias da cúpula do Poder do Estado, o que, nos termos já denotados, somente é possível se decorrente dos esforços diretos do agente incumbido da regulação setorial e, jamais, da produção emanada do Legislativo.