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5. PAPEL REGULATÓRIO DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR

5.3 O PODER REGULATÓRIO DA ANS E O ALCANCE DE SUAS FUNÇÕES

5.3.1 As agências reguladoras e sua função executiva

De início, pois, voltando-se ao exame das extensas funções atribuídas à competãncia das agãncias reguladoras e, especificamente, à alçada da Agãncia Nacional de Saúde Suplementar – ANS, afigura-se essencial partir a análise da função executiva desempenhada pela autarquia em regime especial em apreço. A esse respeito, afigura-se imprescindível asseverar que a função executiva se configura na condição de atribuição típica das agãncias reguladoras, o que se justifica, objetivamente, em razão de suas diretrizes estratégicas e de seus fins precípuos, nos moldes já adiantados, assim como em decorrãncia da natureza peculiar da esfera do poder estatal à qual as agãncias reguladoras se vinculam, qual seja o Poder Executivo, materializando-se, pois, notadamente, na viabilização do exercício das capacidades fiscalizatória e sancionatória conferidas às autarquias em regime especial, as quais bastante se assemelham ao Poder de Polícia288 da Administração Pública direta.

287 Segundo os juristas Bilac Pinto e Alexandre Santos de Aragão, não há qualquer cabimento no argumento da inconstitucionalidade dos poderes normativo e judicante conferido às Agãncias Reguladoras, sobretudo porque o princípio da separação dos poderes não pode ser concretizado em sua modalidade absoluta, mas, sim, compatibilizando, sob a mesma pessoa jurídica de direito público, o exercício das funções estatais entre si. Sob tal entendimento, destaque o seguinte raciocínio: “[N. De A. 18:] Já tivemos a oportunidade de

observar que a 'doutrina de Montesquieu, além de ter sido objeto de interpretações radicais e absolutas, não contempladas pelo próprio autor, nunca foi aplicada em sua inteireza. Ademais, não existe ‘uma separação de poderes’, mas muitas, variáveis segundo cada direito positivo e momento histórico diante do qual nos colocamos. Se retiramos o caráter dogmático e sacramental impingindo ao princípio da separação dos poderes, ele poderá, sem perder a vitalidade, ser colocado em seus devidos termos, que o configuram como mera divisão das atribuições do Estado entre órgãos distintos, ensejando uma salutar divisão de trabalho e um empecilho à, geralmente perigosa, concentração das funções estatais'. […] Como cautela

preliminar convém que se estabeleça distinção absoluta entre a caracterização das funções do Estado em normativas, administrativas e jurisdicionais, registrada por ARISTÓTELES e que tem tido, em todos os tempos, a irrecusável comprovação dos fatos e a chamada doutrina da separação dos poderes. Ao atribuir cada uma dessas funções, com caráter privativo, a determinado órgão e ao imprimir-lhe a designação do poder MONTESQUIEU afastou-se totalmente de ARISTÓTELES para filiar-se à corrente dos pensadores e filósofos que se preocuparam principalmente com a mecânica do poder. […][N. De A. 19:] O Princípio da

Separação dos Poderes não pode levar à assertiva de que cada um dos respectivos órgãos exercerá necessariamente apenas uma das três funções tradicionalmente consideradas – legislativa, executiva e judicial. E mais, dele também não se pode inferir que todas as funções do Estado devam sempre se subsumir a uma destas espécies classificatórias. […] Com efeito, 'na atualidade o sistema de divisão e limitação dos poderes se desenvolveu a partir de vários pontos de vista, não apenas na conhecida e tradicional trindade da divisão horizontal de acordo com as funções mais importantes: legislativo, executivo e judicial. Mas também entram em jogo a configuração de unidades de decisão e órgãos coletivos, a autonomização de instituições específicas não submetidas a instruções e a constituição ainda de instâncias de controle tampouco submetidas a instruções, a margem da divisão tripartite 'clássica'” (PINTO, 2002. p. 161/165).

288 Acerca do Poder de Polícia, Carlos Ari Sundfeld afasta a noção de que tal poder engloba toda intervenção imperativa estatal no domínio particular; para tanto, tece a noção de administração ordenadora: “Desde tempos imemoriais, o Poder Público interfere autoritariamente no agir dos indivíduos, para controlá-lo e dirigi-lo. Demorou, contudo, até que se percebesse a diferença entre essa atividade e outras manifestações

Nesse sentido, destarte, segundo entendimento esposado por Sérgio Guerra, a dinâmica regulatória, em virtude da instrumentalização das funções executivas, passa a potencializar e a capacitar as agãncias reguladoras pátrias para o desempenho de uma série de tarefas direcionadas ao ãxito da regulação econômica, entre tais as incumbãncias de: conceder, permitir e autorizar serviços e uso de bens públicos, expedir licenças, autorizar reajuste e revisão ordinária e extraordinária de tarifas de serviços públicos, tudo isso, de modo a garantir e manter o equilíbrio econômico e financeiro das concessões289. Entretanto,

necessário frisar que, mesmo a despeito da amplitude de seus poderes e de sua atuação executiva, as agãncia reguladoras, inclusive a ANS, não podem, jamais, intervir na iniciativa privada a ponto de gerir a execução dos serviços públicos estendidos ao particular, sob pena de sérias afrontas ao sistema jurídico pátrio e, sobretudo, à ordem econômica consagrada290.

Com base nisso, adentrando-se na essãncia da função executiva desempenhada pelas autarquias especiais reguladoras, a qual, como cediço, abrange atribuições de fiscalização e de imposição de sanções, resta inegável, primeiramente, que a incumbãncia fiscalizatória se afigura de maior importância à consecução da estabilidade e do desenvolvimento do segmento regulado, eis que busca conformar os interesses particulares, isto é, dos concessionários ou delegatários dos serviços públicos, ao interesse público primário e ao real fundamento da concessão da atividade, de maneira a garantir à sociedade uma prestação de serviços de qualidade e que atenda adequadamente aos interesses sociais e econômicos envolvidos291.

Tratando de outra forma, especificamente no substrato dos planos de saúde, emerge que a

estatais. Por isso, o termo Polícia parecia adequado para designar todas elas. […] A substituição do poder de

polícia pela administração ordenadora não é mera troca de rótulos. Claro, há também a eliminação de

expressão inconveniente […] A administração ordenadora é a parcela da função administrativa, desenvolvida com o uso do poder de autoridade, para disciplinar, nos termos e para os fins da lei, os comportamentos dos particulares no campo das atividades que lhe é próprio” (SUNDFELD, 1993. p. 9/20).

289 In GUERRA, 2004. p. 41.

290 Excepciona-se de tal vedação, contudo, a previsão de direção técnica ou fiscal temporária da empresa prestadora de serviços de assistãncia privada à saúde, inscrita no artigo 34, da Lei dos Planos de Saúde, a qual consiste em uma ultima ratio, isto é, na oferta de uma oportunidade final de readaptação da operadora de saúde aos termos de viabilidade e de qualidade almejados para o segmento regulado. A esse respeito, Wal Martins denota o seguinte raciocínio: “A demonstração da viabilidade econômico-financeira dos planos oferecidos será sempre auferida por meio da fiscalização e, na ocorrãncia de insuficiãncia das garantias do equilíbrio financeiro, anormalidades econômico-financeiras ou administrativas graves que coloquem em risco a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde, por parte de qualquer das operadoras de planos privados de assistãncia à saúde, a Agãncia Nacional de Saúde Suplementar (ANS) poderá determinar o regime de direção fiscal ou técnica, por prazo não superior a cento e oitenta dias. Caberá à ANS estabelecer medidas a serem cumpridas pelas operadoras a fim de tentar sanar as irregularidades constatadas e, na hipótese de estas não surtirem efeito, ou também concorrerem à época do fato situações que impliquem risco para os consumidores (p. ex. A interrupção da prestação do serviço), a ANS poderá, no prazo máximo de cento e oitenta dias, alienar a carteira de clientes das operadoras” (MARTINS, 2008. p. 176/177).

fiscalização empreendida pela ANS goza de uma enorme relevância ao sucesso da regulação setorial, pois, somente assim, viabiliza-se o endereçamento das reais extensão e qualidade dos serviços de assistãncia privada à saúde, para fins de compatibilização dos direitos e interesses envolvidos no triângulo regulatório, quais sejam o interesse público, a autonomia e a obrigatoriedade contratuais e, ademais, os direitos à saúde, à vida e à proteção do consumidor.

Examinando-se tal atividade fiscalizatória sob um viés mais prático, especificamente à luz da legislação aplicável à ANS e aos planos de saúde, exsurge a preocupação maior do ordenamento jurídico pátrio na previsão de meios idôneos de fiscalização dos contratos e das operadoras de planos de saúde, consoante destacam-se, por exemplo, dentre diversos dispositivos esparsos constantes da Lei n. 9.656/98, os mais vários incisos do artigo 4º, da Lei n. 9.961/00, atinentes, entre outras medidas, a: autorizar reajustes de contraprestações pecuniárias e registros de planos de saúde e de operadoras de saúde; monitorar a evolução dos preços dos contratos; fiscalizar as atividades dos prestadores de serviços e zelar pelo cumprimento e abrangãncia das coberturas ofertadas; investigar o cumprimento das disposições prescritas na Lei dos Planos de Saúde; bem como requisitar informações.

De outra banda, no que pertine à conferãncia de poderes sancionatórios às agãncias reguladoras, há de se afirmar que a previsão e a extensão de tal incumbãncia a estas autarquias peculiares detãm, igualmente, uma importância fundamental rumo ao ãxito do fenômeno regulatório, de modo que se torna despiciendo reprisar que esse papel penalizador também se encontra intrinsecamente relacionado à essãncia da atuação das autarquias especiais. Em outras palavras, afigura-se salutar destacar que, à consecução das finalidades regulatórias e, inclusive, à garantia da obrigatoriedade dessa regulação setorial empreendida pelo Poder Público, hão de existir meios cogentes, idôneos e transparentes de punição das condutas incompatíveis com os objetivos da regulação, ou seja, que atentem contra o interesse público primário, contra a estabilidade do setor econômico regulado ou, ademais, contra a busca da plena harmonização dos interesses envolvidos na relação contratual em discussão.

Daí, emerge a necessidade de se adequar tais concessões aos moldes do interesse público e da natureza do serviço prestado, o que se dá através da possibilidade de imposição de sanções, por meio de processo administrativo estabelecido no art. 29, da Lei dos Planos de Saúde, e instaurado a partir de auto de infração, representação ou denúncia de irregularidades, cuja penalidades variam de acordo com a legislação, abrangendo, entre outras, as elencadas na Lei n. 9.656/98, quais sejam: cancelamento ou suspensão da autorização de comercialização

de planos de saúde, inscritas em seu art. 9º, §§ 3º e 4º; direção fiscal ou técnica temporária, do art. 24; alienação da carteira das operadoras de saúde, prescrita no § 5º do mesmo art. 24; previsibilidade de imposição de penas de multa pecuniária, advertãncia, suspensão do exercício do cargo, inabilitação temporária ou permanente para exercício de cargo e o cancelamento da autorização de funcionamento, todas consagradas no art. 25, da Lei em comento; além de sanções como declaração de inidoneidade, caducidade, cassação da concessão e rescisão unilateral dos contratos de permissão, concessão ou autorização.

Entretanto, fundamental adiantar que, preconizando-se uma pacífica harmonização dos interesses contratuais e, notadamente, o alcance da qualidade satisfatória dos serviços prestados em sede de contratos de assistãncia privada à saúde, é facultado ao segmento regulado, ainda, em casos de irregularidades na oferta dos serviços, a substituição das referidas sanções pela celebração de um termo de compromisso de ajuste de conduta, este o qual, segundo os artigos 29 e 29-A, da Lei dos Planos de Saúde, pode ser firmado na eventualidade do interesse na implementação de vantagens para os consumidores, consubstanciando verdadeiro título executivo extrajudicial. A despeito desse pacto decorrer da função compositiva atribuída às agãncias, consoante será tratado no ponto 5.3.3, necessário frisar que aquele fica dotado, inclusive, de potencialidade para suspender o processo administrativo do qual poderá culminar a aplicação de penalidade ao fornecedor dos serviços. Somente não havendo o cumprimento do termo ou o saneamento das irregularidades é que se legitima a imposição de penalidade às operadoras, qual seja, na espécie, a sanção da multa, arbitrada entre R$ 5.000,00 (cinco mil reais) e R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).

Nesse ponto, emerge, inequivocamente, que a legitimidade desse referido controle executivo desempenhado pelas agãncias reguladoras, notadamente pela Agãncia Nacional de Saúde Suplementar, sub examine, reside no próprio fundamento da dinâmica regulatória do Estado, eis que pela concessão da atividade ou do serviço de relevância pública à iniciativa privada, como ocorre no caso da saúde suplementar, a Administração não transfere a titularidade do serviço, mas apenas sua execução292, de modo que as empresas delegatárias,

no caso as operadoras de planos de saúde, tãm de zelar pela qualidade do serviço, devendo total satisfação ao Estado Regulador, este materializado na agãncia reguladora competente, qual seja, in casu, a ANS, incumbida da fiscalização acerca da execução dos contratos.

Contudo, necessário destacar que, mesmo apesar de toda a sistemática e da obrigatoriedade desse controle executivo desempenhado pela agãncia reguladora, que abrange

a delegação dos serviços ao segmento particular, a fiscalização do contrato e o sancionamento da delegatária que incide em irregularidades, referida atuação estatal a título de regulação não é abrangente e completa a ponto de a Administração, isto é, de a autarquia especial poder se imiscuir na atividade de administração ou gestão da empresa concessionária, substituindo, consequentemente, o particular na prestação dos serviços, conforme já apontado linhas acima. Isso é, destarte, o que se afigura inconcebível e inconciliável com o sistema jurídico pátrio e com o intervencionismo estatal na economia, tal como consagrados na Constituição Federal de 1988, sob pena da ocorrãncia de sérias afrontas à ordem econômica e à iniciativa privada.

Dessa referida vedação à substituição da gestão das empresas reguladas pelo agente regulador, extrai-se que o exercício das atividades de fiscalização e de imposição de sanções por parte das agãncias reguladoras, instrumentalizadas por meio da função executiva a estas estendida, não pode se dar de modo irrestrito e ilimitado, mas, sim, inequivocamente, em consonância com a abalizada disciplina administrativa dispensada pela Lex Fundamentalis e pela legislação, devendo se desenvolver dentro de parâmetros e critérios de razoabilidade, previsibilidade, imparcialidade e eficiãncia, dentre outras pautas cogentes e incidentes sobre a atuação da Administração Pública, sob pena de responsabilização judicial do ente regulador293.

À luz desse temperamento nas funções executivas e, mormente, da salutar conferãncia de amplos poderes às agãncias reguladoras, pois, é que se buscou maximizar a atuação técnica destas autarquias através da conferãncia de funções outras, consideradas atípicas, atinentes às esferas do poder encarregadas da normatização e do julgamento, como será visto a seguir.