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A AGRICULTURA NA ECONOMIA-MUNDO CAPITALISTA

A forma mais primitiva de acumulação de riqueza na economia-mundo capitalista deu-se pela subordinação de trabalho para a produção destinada à venda com a aquisição de lucro. Este processo teve início na agricultura e apenas muito depois se expandiu para o setor industrial; começou antes que o sistema-mundo se transfigurasse em uma economia-mundo global, quando ainda era uma economia-mundo europeia. Uma breve recapitulação histórica servirá à ilustração deste processo e à descrição das funções da agricultura na economia-mundo capitalista.

A agricultura capitalista emergiu ao longo do século XVI ao mesmo tempo e de forma similar em países com orientações de mercado tão distintas como na Polônia e a Rússia: enquanto o primeiro produzia para um mercado europeu em crescimento, o segundo o fazia para um mercado interno em expansão – e sob a proibição de exportar –, replicando internamente a especialização observada na Europa ao mesmo tempo em que exportava bens manufaturados em troca de bens de luxo (como tecidos de algodão, cavalos e ovelhas). O método russo era o de consumir excedentes em vez de produzi-los, adquiriam o que não era central ao funcionamento do sistema e, portanto, dispensável em momentos de contração. Esta estratégia manteve o sistema-mundo russo seguro contra bloqueios ao comércio, evitando a vulnerabilidade observada na Polônia e permitindo a colonização e a conquista dos vastos territórios russos, cujo resultado imediato foi o enriquecimento do czar e, mais tarde, dos mercadores. A Rússia foi finalmente

incorporada à economia-mundo europeia ente os séculos XVIII e XIX, mas seu exemplo deixou claro que a diferenciação entre zonas externas e periféricas é fluida e está em constante mudança Enquanto crescia o poder dos Estados na economia-mundo europeia, decaía o poder dos Estados ao leste – causa e resultado da ascensão do ocidente -; na Polônia, em resposta ao incremento do comércio internacional, aumentara o poder da aristocracia rural enquanto decaía o da burguesia autóctone; a arrecadação do Estado minguava e a máquina estatal se desintegrava (WALLERSTEIN, 1974a, p. 305-6, 308-9).

Como demonstra o trecho acima, a agricultura pode assumir objetivos distintos na economia-mundo capitalista: se, por um lado, permitiu o aprofundamento da integração polonesa ao sistema pelo comércio internacional e o consequente enriquecimento de sua aristocracia rural, por outro, serviu à manutenção do sistema-mundo russo, sendo a soberania alimentar russa apenas uma parte de sua contribuição. Embora reconheça seu papel historicamente estratégico, de forma geral, a produção agrícola é entendida pela abordagem do sistema-mundo como uma atividade inerentemente periférica, dado o pouco valor que agrega e a necessidade de coerção de mão de obra que esta atividade implica (WALLERSTEIN, 2001). O segundo aspecto da relação histórica entre a agricultura e a economia-mundo capitalista pode oportunamente ser caracterizado a partir do caso russo.

No século XIV, após uma fase de expansão da Rússia czarista e o surgimento de novas modalidades (não feudais) de posse da terra, aquele governo elevou gradativamente o nível de coerção sobre o campesinato, sua estratégia incluiu um processo de refeudalização pelo endividamento dos camponeses até restrições legislativas à sua mobilidade física. O objetivo era evitar que os camponeses migrassem para os novos territórios, onde as terras vastas e fartas não eram taxadas, garantindo não apenas a arrecadação fiscal como a produção de culturas comerciais. Wallerstein observa que este processo serviu à criação de uma economia-mundo Russa, já que de outro modo os camponeses teriam se recusado ao serviço; foi um Estado forte que garantiu a autonomia russa em relação à economia-mundo europeia – e vice-versa, já que “a exploração dentro de uma economia-mundo é autofortalecimento” (WALLERSTEIN, 1974a, p. 335)24. Como resultado, ao ser finalmente absorvida pela economia-mundo capitalista, a Rússia o fez como um Estado semiperiférico, em vez de periférico, como ocorreu com a Polônia. O Estado forte russo, por sua vez, deu-se graças à criação de um aparato estatal patrimonialista, que permitiu a articulação entre o czar, as forças militares, os proprietários de terras e a burguesia

24 Para Kluchevsky (1911, p. 233-41 apud WALLERSTEIN, 1974a, p. 313) não se pode conceber o processo de servidão na Rússia sem o poder do Estado. [KLUCHEVSKY, Vasily O. A history of Russia II. V. 5. London: J. M. Dent, 1911.]

local. E porque era sua própria economia-mundo, a Rússia logrou canalizar parte do capital acumulado ao desenvolvimento industrial, garantindo internamente mercados de massa e de qualidade a indústrias nascentes que, de outro modo, não lograriam competir com as indústrias europeias (WALLERSTEIN, 1974a, p. 313-15, 324).

Guardadas as devidas proporções, a mesma coerção dos camponeses que permitiu o desenvolvimento da Rússia czarista também ocorreu para a acumulação dos Estados centrais e a posterior formação da economia-mundo capitalista, como demonstrou o caso polonês. Neste, todavia, ela assume maior complexidade e escala global, materializando-se inicialmente através das políticas coloniais que predominaram entre os séculos XVI e XIX. A coerção do trabalho não é uma inovação do capitalismo e tampouco uma exclusividade da agricultura; o diferencial da economia-mundo capitalista foi estabelecer formas de coerção para uma produção agrícola comercial, abrangente e altamente especializada. Segundo Wallerstein (1989), há pouca atratividade para um trabalhador rural envolver-se com uma cultura comercial (commodity) em uma estrutura do tipo plantation, pois esta atividade inevitavelmente reduz o tempo e os recursos físicos para todo tipo de atividade de subsistência e bem-estar coletivo. Por esta razão, a mão de obra requerida por produtores capitalistas em uma zona em incorporação (pois nas periferias esta questão já se mostrava resolvida) deveria ser coagida direta e indiretamente, por longos períodos de tempo, a trabalhar onde e como lhes fosse demandado. E esta coerção poderia assumir duas formas conceitualmente distintas: uma que determinava a eficiência e duração das jornadas, e outra que definia o status jurídico do trabalhador, ou seja, as opções que o aparato legal lhe oferecia em relação ao seu trabalho (WALLERSTEIN, 1989, p. 157). De acordo com Friedmann (2000, p. 481), a estruturação de poder na economia-mundo está historicamente reproduzida na hierarquização da produção agrícola, ao ponto de esta ter-se tornado uma atividade “apropriada para escravos, camponeses e mulheres”.

Enquanto se observava nascer na Europa a especialização entre agricultura e indústria, ocorria também uma especialização interna à agricultura, a qual, todavia, “não poderia ser completada naturalmente” (PETRÁŇ, 1965 apud WALLERSTEIN, 1974a, p. 307)25. Para Marx, o desenvolvimento da agricultura comercial se assemelha ao processo manufatureiro, no qual se dá uma modificação essencial do processo de cooperação simples: a restrição da esfera de atuação dos artesãos. Assim como a manufatura de carruagens deixou de ser a combinação (cooperação) de ofícios independentes para tornar-se uma linha de produção com operações cristalizadas,

25 PETRÁŇ, Josef. A propos de la formation des regions de la productivite specialisee en Europe Centrale. In: Deuxieme Conference Internationale d'Histoire Economique, Aix-en-Provence, 1962, II: Middle and Modern Times. Paris: Mouton, 1965, p. 217-222.

também a pequena agricultura de base familiar, que se ocupava de produzir essencialmente alimentos às populações que as circundam e de formas que lhes proporcionam grande autonomia, passa a ter seu escopo de atuação limitado e definido fora de sua zona de influência (MARX, 2013, p. 410-411).

Este processo tornou mais complexo e abrangente a divisão do trabalho a partir do século XVI, até o ponto de, em 1650, os Estados ocidentais estarem completamente engajados em uma política mercantilista que lhes possibilitava galgar melhores posições da economia-mundo europeia. Assim, na medida em que aquela se expandia para se tornar uma economia-mundo global, a quase totalidade do planeta era incorporada à divisão axial do trabalho. Nos anos 1600, o Brasil, ou, pelo menos, a sociedade que habitava a costa brasileira, já estava incorporado à economia-mundo europeia como uma periferia. Esta classificação, como explicado anteriormente, não se funda no volume ou na composição do comércio operado entre o país e a Europa, mas no valor agregado aos produtos locais, que jamais poderiam se tornar uma base lucrativa de comércio (WALLERSTEIN, 1974a, p. 301). Pela mesma razão, mas de forma inversa, a estrutura autossuficiente do leste da Índia, onde eram produzidos artigos de elevado valor intrínseco, como especiarias, sedas e musselines, definia que o país fosse mantido fora dos limites da economia- mundo europeia (WALLERSTEIN, 1974a, p. 336-9). Nesta comparação, a Índia esteve para o Brasil como a Rússia para a Polônia. Ao cabo, como periferias ou semiperiferias, todos foram incorporados à economia-mundo capitalista e passaram a integrar suas cadeias mercantis ou, no caso específico dos produtos primários, as cadeias globais de commodities.

Uma cadeia mercantil é uma divisão social estendida do trabalho organizada em uma rede supranacional de processos produtivos cujo fim é uma mercadoria acabada (WALLERSTEIN; HOPKINS, 1986; HOPKINS; WALLERSTEIN, 2000, p. 223). Sua origem é sempre dispersa, variada e com tendência à periferização; desenvolve-se em direção à jusante, convergindo para os centros do sistema e tornando-se cada vez mais hierarquizada. Como a parte mais significativa da produção agrícola está na origem da cadeia mercantil e, portanto, na periferia, está também sujeita à maior pressão da estrutura hierárquica sistêmica, já que em cada fase da produção há um lucro a ser realizado. Como resultado, há a crescente polarização da renda real, da qualidade de vida e da acumulação de capital entre as áreas centrais e periféricas (WALLERSTEIN, 2001, p. 28-9).

Muito embora as relações sociais da economia-mundo capitalista tenham-se estruturado ao longo do período colonial, logo após a formação do Estado-nação, foi no século XIX, com a Revolução Industrial, que adquiriram nova dimensão. Uma ampla e profunda interdependência se estabeleceu com o aumento da oferta de produtos industriais e a necessidade de, ao mesmo tempo, especializar a produção de insumos e ampliar os mercados consumidores. No século XX,

o advento da chamada ‘globalização’ respondeu pela expansão das fronteiras do sistema e a maior fluidez nas relações hierárquicas (FRIEDMANN; MCMICHAEL, 1989).

Para compreender o papel estratégico recente da agricultura na construção da economia- mundo capitalista, Friedmann e McMichael (1989) conceitualizaram um quadro analítico de perspectiva histórica que denominam de regimes alimentares, entendidos como períodos estáveis de acumulação de capital associados a configurações peculiares de poder geopolítico, condicionado por formas de produção agrícola e relações de consumo, dentro e através dos espaços nacionais. Como resultado da dinâmica global de seu tempo, cada regime ensejou dois movimentos opostos: no primeiro, o apogeu da organização colonial e o surgimento do sistema interestatal; no segundo, a finalização do processo de formação do sistema interestatal com a independência das ex-colônias e o seu simultâneo enfraquecimento através da reestruturação transnacional dos setores agrícolas pelo capital agroalimentar (FRIEDMANN; MCMICHAEL, 1989, p. 95-100). McMichael (2016) conceitualiza o um terceiro regime alimentar, caracterizado pelo controle corporativo da produção, distribuição e consumo dos alimentos, assim como pela diferenciação social dos consumidores. Cada movimento (ou regime) decorre e introduz padrões históricos de desdobramentos particulares.

A literatura sobre os sistemas-mundo enfatiza haverem outros subsídios - indiretos ou invisíveis - do setor agrícola à manutenção da economia-mundo capitalista. O mais significativo advém da propriedade semiproletarizada, que é domicílio onde apenas parte da reprodução social está baseada no trabalho assalariado e a outra parte é provida internamente. Este é o caso da maior parte dos domicílios no mundo, inclusive dentre os domicílios rurais, onde parte significativa da produção é destinada ao autoconsumo e a colaboração entre os membros da família substitui a aquisição de serviços terceirizados. A lógica é que como nestes casos não há pressão contra os empregadores pela elevação do piso salarial (quando este é aplicado), a remuneração pode ser mantida baixa, permitindo que ‘empregador’ mantenha baixos os custos de produção e eleve seu lucro. Por isso, de forma geral, os empregadores de trabalho assalariado preferem recrutar trabalhadores (assalariados ou não) em unidades domiciliares semiproletárias, em vez de proletárias (WALLERSTEIN, 2001, p. 26). E como a agricultura reserva mão de obra para a produção nos três setores da economia, hoje, como antes do surgimento do sistema- mundo moderno, “o lucro é frequentemente maior quando nem todos os elos da cadeia estão de fato mercantilizados” (WALLERSTEIN, 2001, p. 16). Wallerstein e Hopkins (1986), Wallerstein (2001) e Dunaway (2014, 2012, 2011, 2010), argumentam que a propriedade familiar, em sua condição semiproletária, ainda é o lócus da geração e extração de lucro no sistema-mundo, a fonte

dos menores salários e origem dos maiores lucros possíveis ao longo de toda a cadeia de commodities.

Segundo Dunaway (2014), do ponto de vista da extração e transferência de excedente da periferia para o centro, o impulso das formulações sobre as cadeias de commodities no sistema- mundo moderno deixou em segundo plano a análise da competição centrada na firma, para adotar cada vez mais uma visão de cooperação do tipo ‘ganha-ganha’, conhecimento que foi largamente utilizado para reestruturação neoliberal observada a partir dos anos 1980. Em sua visão, a produção e troca de commodities dá-se a partir de uma constelação de relações sociais que reproduzem geografias de desenvolvimento desigual ao longo de antigos e novos contornos. A autora defende haver valor escondido em diversas partes particularmente na participação da propriedade familiar e, em especial, no trabalho feminino não remunerado, apontando a existência de um vasto domínio de mecanismos de trabalho e intercâmbio econômico fora do mercado como da empresa capitalista.

Em outro estudo, Dunaway (2007, p. 1) identificou que justamente “porque a aquicultura comercial tem sido apontada pelo Fundo Monetário Internacional como uma das soluções mais importantes para combater a fome no mundo” a subsistência das famílias filipinas de pescadores era sacrificada para que fosse garantida a oferta à cadeia alimentar global. Como “para maximizar os lucros, os capitalistas devem explorar tantas condições sociais e naturais ‘sem custo’ quanto possível”, com frequência estes transferem à cultura, ao ecossistema e aos trabalhadores a maior parte do custo real da produção26. E se a natureza e os domicílios não fossem capazes de absorver tantas externalidades das cadeias de commodities, o processo de produção global não seria capaz de acumular capital infinitamente (WALLERSTEIN, 1999 apud DUNAWAY, 2007, p. 315)27.

Habib (1963 apud WALLERSTEIN, 1989, p. 148) relata que também na Índia, a autossuficiência de certas regiões cedia lugar, sempre que necessário, à autossuficiência do sistema. Para ele, o problema não se devia tanto à ocupação com culturas comercias, mas na concentração que estas alcançavam em determinadas áreas, que permitia que a terra fosse usada em maior ou menor escala para “o propósito mais adequado”28.

26 A autora refere-se à produção de camarão como o exemplo mais flagrante do custo ambiental e social suportado por pequenos produtores rurais e comunidades costeiras, e aponta quatro externalidades desta cadeia produtiva: a perda de acesso aos recursos biológicos, a deterioração dos meios de subsistência locais, a perda de segurança alimentar, e a perda de serviços sociais (DUNAWAY, 2007, p. 313, 315-6).

27 WALLERSTEIN, Immanuel. Ecology and capitalist cost of production: no exit. In: GOLDFRANK, W. L.; GOODMAN, D.; SZASZ, A. (Eds.) Ecology and the World-System. Westport, CT: Greenwood Press, 1999. p. 3-12. 28 HABIB, Irfan. The Agrarian System of MughalIndia (1556-1702). New York: Asia Pub. House, 1963.

Segundo Wallerstein (1989), há uma relação entre a produção de culturas comerciais e a expansão da produção de alimentos para consumo local e esta tem sido amplamente negligenciada, em especial no que tange o processo de incorporação de novas zonas. Isso porque, em termos de produção, a incorporação deveria levar a três mudanças principais na nova área: um novo padrão de exportações e importações; a criação de amplas inciativas econômicas (ou entidades de decisão econômica); e um aumento significativo na coerção da força de trabalho. Para a obtenção do primeiro, fazia-se necessária a replicação da dicotomia centro-periferia e, portanto, da divisão axial do trabalho própria da economia-mundo capitalista. Isso significava, primordialmente, incentivar o intercâmbio de produtos primários locais por manufaturados, para o que se faziam necessárias mudanças em duas direções: aumentar a produção local de matérias- primas para exportação e reduzir ao máximo a concorrência com os produtos manufaturados do centro. A primeira, mais importante, exigia a criação de grandes monoculturas em detrimentos da produção de alimentos; todavia, a demanda por alimentos não diminuía; com a escassez da oferta e a demanda segura dos trabalhadores das lavouras, outras porções de terra “tinham que começar a se especializar na produção de alimentos para venda”, gerando hierarquias de força de trabalho (WALLERSTEIN, 1989, p. 148). Assim ocorreu com o comércio de escravos na África, com a produção de têxteis na Índia e nas indústrias turca e egípcia (WALLERSTEIN, 1989, p. 139-147). Abu-Lughod (1989, p. 355) reitera que este processo lento de incorporação e estratificação encontrada nas bases da atividade econômica já ocorria no século XII e não é parte do sistema, mas um produto dele.