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Formações familiares e trabalho até o século XX

3.3 CICLO HEGEMÔNICO 2: GRÃ-BRETANHA (1708-1918)

3.3.5 Formações familiares e trabalho até o século XX

A noção de família constituiu uma importante herança portuguesa. Ela foi a base da organização social patriarcal e o eixo da obra colonizadora, tendo-se tornado célula da produção econômica - do latifúndio às pequenas lavouras policultoras. O conceito de família vincula-se à propriedade da terra, primordialmente, pelo direito sucessório, atribuído ao filho primogênito, impedindo sua divisibilidade. Este sistema, ao qual se chamou morgadio, foi adotado por Portugal sob a União Ibérica, por intermédio das Ordenações Filipinas, em 1603, e suspensa pela mão do Marquês do Pombal, em 1770. Ele servia à perpetuação do poder econômico da família e foi amplamente enraizado na cultura brasileira, particularmente no meio rural (FROTA, 2000, p. 115-6).

Diversos tipos de arranjos familiares podiam ser encontrados ao longo do território. As tribos indígenas originárias apresentavam formas particulares e fluidas de arranjo familiar; adotavam uma divisão interna do trabalho abrangente e orientada à subsistência, além de habitarem terras de uso coletivo.

A família senhorial apresentava uma conformação estendida, incluindo, tios, afilhados e avós, além de filhos bastardos dos patriarcas (usualmente com escravas); contudo, estes filhos menos privilegiados, embora tivessem seu comportamento informado pela família branca, lócus de suas experiências, se achavam impedidos de constituir sua própria família. De forma geral, este núcleo familiar não dispunha da própria força de trabalho, valendo-se do emprego de trabalho servil para as atividades produtivas e domésticas (NEVES, 1994, p. 66-7).

Já a família escrava foi um fenômeno raro. No Brasil45, o índice de nupcialidade entre os cativos era baixo, vinculando uma parcela significativa de escravos, particularmente os nascidos em centros urbanos e pequenos plantéis de subsistência, ao cuidado exclusivo de suas mães, com quem passavam a infância, sem contato ou mesmo conhecimento de seus genitores46. As razões foram diversas e requerem uma explicação mais abrangente.

Segundo Fernandes, “impedir o florescimento da vida social organizada e da família como instituição integrada no seio da população escrava” foi uma “política central da sociedade senhorial escravocrata brasileira” (FERNANDES, 1976, p. 84); isso porque o casamento na igreja impunha restrições imperiosas da lei canônica em favor do livre usufruto do matrimônio, coibindo não apenas o abuso sexual das escravas pelos senhores, como a separação dos cônjuges por venda ou qualquer outra razão (SCHWARTZ, 1988, p. 316; KARASCH, 1987, p. 290). Somem-se a estes outros três fatores inibidores da estrutura familiar escravista: o risco de consanguinidade, particularmente em propriedades menores (SCHAWARTZ, 1988, p. 313); a inconveniência da criação de filhos de escravos, haja vista a elevada mortalidade infantil e o fato de sua vida produtiva só começar em torno dos 13 anos; e o desequilíbrio no número de homens e mulheres, decorrente da preferência do tráfico negreiro por homens, diminuindo drasticamente a possibilidade de todos formarem família. No cálculo econômico do escravista brasileiro a disponibilidade de escravos baratos e abundantes impunha-se sobre a conveniência de incrementar a procriação endógena, limitando inclusive o interesse dos senhores em oferecer melhores condições de vida, a fim de diminuir a taxa de mortalidade entre os nascidos em sua propriedade. Até 1850, a família cativa estava, portanto, fora do modelo de reprodução escravista (FRAGOSO; FLORENTINO, 1987, p. 151-173).

Quando observado o apoio dos senhores à oficialização da união entre escravos, já nos séculos XVIII e XIX, faziam-no como estratégia para prendê-los à fazenda e como garantia de sua boa conduta; outros chegavam a promover grandes festas no casamento de seus cativos como forma de (re)afirmar seu prestígio social. Em todos os casos, o apoio do senhor à

45 Diferentemente dos senhores escravistas dos Estados Unidos, que se empenharam em unir, pelo matrimônio, os seus cativos, a fim de promover a reprodução de seus plantéis (NEVES, 1994, p. 65).

46 Estudos recentes sobre a vida familiar escrava revelam que os casamentos eram mais comuns onde o desequilíbrio entre os números de homens e mulheres era maior, notadamente onde a cultura exportadora se impunha; em contrapartida, nas áreas de economia de subsistência, esse desequilíbrio era menor, assim como o percentual de cativos casados (LUNA, 1990, p. 226-36; SCOTT; BACELLAR, 1990, p. 213-7). Nestes pequenos plantéis, Slenes averiguou que 36% das crianças de 1 a 9 anos de idade estavam sem mãe ou pai presente, contra apenas 7% nos plantéis médios e grandes. Dentre aquelas entre 10 e 14 anos, 53% não tinham nenhum dos pais presentes, contra 19% nos plantéis maiores. Tal fato poderia estar relacionado ao tamanho dos planteis, que ao concentrar mais cativos também ampliavam as possibilidades para se encontrar um companheiro. Isso porque, como regra, os cativos não estavam autorizados a se casarem com pessoas que não servissem ao mesmo senhor. Outra parte da explicação residiria no “impacto diferencial do tráfico interno de escravos, que incidia com mais peso nos pequenos plantéis” (SLENES, 1987, p. 219-221; GRAHAM, 1978, p. 57).

estruturação da unidade familiar cativa dependia muito mais da conjuntura socioeconômica do que da decisão individual do senhor ou de seus escravos (NEVES, 1994, p. 70-1).

Sem por em xeque a capacidade dos cativos de estabelecer laços de afeição, associação e sangue com um significado real e permanente, Neves (1994) aventou também a possibilidade de muitos cativos não desejarem contrair matrimônio perante a igreja, fosse pela humilhação imposta por muitos padres, por serem infensos à monogamia ou à indissolubilidade do matrimónio católico, ou por guardarem crenças e tradições africanas. O próprio conceito de família está atrelado à etnia, sendo a linhagem africana e o antepassado comum seu elemento unificador (NEVES, 1994, p. 68-9).

De fato, a combinação entre a falta e acesso à propriedade da terra, a monogamia forçada pelo casamento católico e a condição demográfica do cativo limitava de forma quase incontornável suas chances de estabelecer uma propriedade rural familiar. Nas regiões de origem de boa parte dos cativos trazidos ao Brasil, além do caráter comunal da terra, a poligamia se constituía em fator econômico fundamental para a acumulação de riqueza, na medida em que determinava a força de trabalho disponível e, em sua decorrência, a terra a que tinha direito de cultivar (MATOSO, 1982, p. 126-7 apud NEVES, 1994, p. 69)47.

Assim sendo, nas regiões onde a economia voltava-se ao mercado externo, e onde estavam as maiores propriedades, apesar das mais elevadas razões de masculinidade, o convívio familiar era maior e mais perene na formação das crianças. A convivência duradoura entre os cativos, contudo, dependia de fatores que lhes eram completamente alheios: o tráfico de africanos, que poderia suprir melhor ou pior as demandas da economia; os níveis de desenvolvimento econômico na região, que determinariam a demanda por força de trabalho; fatos da vida dos senhores, como o número de filhos ou interesses particulares; dentre outros, tudo impactava a estrutura das famílias escravizadas (METCALF, 1987, p. 232). Nos núcleos urbanos, onde a propriedade escrava era ainda mais reduzida, raras eram as oportunidades à formação de famílias entre os escravos, sendo suas relações amorosas e familiares caracterizadas pela instabilidade. Disso resultou a presença marcante de mães solteiras, particularmente negras, nas cidades, reforçado pelo fato de aí estarem as melhores oportunidades de trabalho (NEVES, 1994, p. 73-4).

A estabilidade familiar estabelece-se, portanto, mais acentuadamente dentro do modelo monocultor exportador escravista, opondo-se diretamente ao modelo familiar cativo sobressalente nas áreas urbanas, ambos influindo diretamente sobre as oportunidades de vida dos

negros que acolheram. Por tudo isso, a escravidão revelou-se “uma força destrutiva que impediu ou desorganizou a vida familiar dos cativos e contribuiu para uma série de desordens na era pós- escravidão” (SCHWARTZ, 1988, p. 292). Neste contexto, o “casamento e a estabilidade familiar entre os escravos tiveram importante papel na luta dos cativos por melhores condições de existência”, assumindo mesmo a forma de resistência à instituição escravista (NEVES, 1994, p. 69, 73-75) na medida em que os cativos formalizavam suas uniões perante a igreja e o Estado com o objetivo de legitimar suas famílias, garantindo-lhes o convívio em “formas sociais e culturais que lhes proporcionassem consolo e apoio naquele mundo hostil” (SCHWARTZ, 1988, p. 310).

Em resumo, além de ter-se estabelecido, majoritariamente, sobre o latifúndio monocultor, a família escrava logrou (quando o fez) acumular pouca experiência no exercício da propriedade e gestão familiar da terra, fato agravado pela dificuldade de acesso à terra e pela própria condição social atribuída ao negro, que o empurrava, como a seus descendentes, às mais degradantes atividades econômicas.

Outro arranjo entre família, trabalho e terra se estabeleceu nos pequenos imóveis rurais. Embora estes estabelecimentos já existissem - em ínfima quantidade e sob a propriedade de portugueses e outros poucos europeus -, foi com a chegada das famílias de trabalhadores europeus, dentre os séculos XIX e XX, que se estabeleceu o tripé família, propriedade e trabalho. Compostas pelo núcleo familiar tradicional (pai, mãe, filhos, netos, genros e noras), as famílias de imigrantes exerciam, conjuntamente, a propriedade, gestão, moradia e cultivo das terras (FURTADO, 1988, p. 113-22).

No contexto da formação da camada social intermediária, matriz da força de trabalho rural e urbana, este grupo logrou diferenciar-se dos outros dois historicamente estabelecidos e amplamente disseminados no restante do país: nem senhores nem escravos, eram famílias proprietárias que, ao mesmo tempo, comercializavam sua força de trabalho e o excendente da própria produção, garantindo a reprodução de sua condição privilegiada em relação à força de trabalho do negro. Praticavam a policultura, “sem um fator determinante de interdependência” e sem predomínio de classes (FURTADO, 1988, p. 114).

Necessários à expansão do capitalismo internamente e desejados pela Coroa para a ampliação da economia, cujo foco era a agricultura; a ocupação das áreas fronteiriças, particularmente ao sul do país48, e ao branqueamento da população, este grupo logrou negociar os padrões de incorporação de sua força de trabalho. Na região Sul, onde se exigia uma ocupação

dirigida por imposições políticas e militares, a distribuição de pequenas propriedades rurais era estratégica à segurança fronteiriça49, fato que, somado ao clima temperado, tornava a região mais atraente ao agricultor europeu, acostumado ao minifúndio. Além de receber o “mesmo acesso à terra que era concedido aos portugueses”, a colonização foi inicialmente subsidiada, tendo-se concedido às primeiras levas de imigrantes europeus vantagens como passagens, diárias e lotes de terras (FURTADO, 1988, p. 114-6).

Impuseram-se os imigrantes, imediatamente, contra a violência e superexploração às quais estes estavam acostumados os latifundiários, obrigando-os a adotar padrões mais civilizados de conduta. Neste processo foram fundamentais: a concentração geográfica no Sudeste e Sul, áreas de desenvolvimento recente e com escassez de mão de obra; a organização dos trabalhadores e o apoio das representações diplomáticas de seus países de origem, que chegaram a ameaçar suspender o programa de imigração caso o governo brasileiro não tomasse providências para cessar as práticas abusivas reportadas pelos trabalhadores (FURTADO, 1988, p. 113-22).

Outro elemento particular da colonização e formação agrária ao sul do país pode ter sido, como sugeriu Novais (1989)50, o clima, determinante da inviabilidade de uma agricultura complementar, tornando a região particularmente cobiçada à substituição de importação de produtos europeus (como o trigo e o vinho). Sendo assim, agricultores familiares ao sul e sudeste encontravam-se em zona relativamente segura ou, pelo menos, não estabeleciam conflito direto com grandes produtores. Pelo clima, condição fronteiriça sensível às pressões políticas e palco de atividades militares recorrentes, e a dificuldade de acesso dos navios de maior calado ao porto de Rio Grande, teve a integração da região sul à pauta exportadora retardada, envolvendo-se de início com temas domésticos e acessando rapidamente a via industrial (FURTADO, 1988, p. 98, 119).

49 Todavia tenha impedido a formação de latifúndios ao longo das fronteiras com o Uruguai e Argentina, onde vigorou a atividade pecuária e as grandes charqueadas (FURTADO, 1988, p. 98).

50 Novais (1989, p. 95-6) refere-se às colônias inglesas setentrionais, onde clima (similar ao da Europa) foi determinante para o tipo de colonização estabelecida. De onde não se pudesse obter produtos complementares, os ingleses não podiam estabelecer uma economia ancilar, resumindo a colonização ao povoamento. Já a proximidade de colônias especializadas em produtos de exportação, ao sul da America e nas Antilhas, onde, portanto, se carecia de gêneros alimentares e manufaturas, mostrou-se outro fator de favorecimento das colônias ao norte, abrindo mercados à exportação de produtos como madeira, cereais e manufaturas. As estruturas divergentes eram também complementares. Embora todas estivessem submetidas à mesma metrópole, naquelas colônias setentrionais desenvolveram-se economias diversificadas de subsistência, orientadas ao consumo doméstico; as exportações, por sua vez, se davam fora do exclusivo colonial, ou seja, do sistema mercantilista de exploração primitiva, permitindo que algumas rendas permanecessem na própria economia exportadora.