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2.1 O SISTEMA-MUNDO MODERNO

2.1.3 O sistema interestatal e a hegemonia

Inserida na lógica do sistema está, portanto, uma estrutura fortemente hierarquizada onde os Estados nacionais alocados em zonas centrais assumem posições mais vantajosas ligadas à

capacidade de se apropriar do excedente e impor-se mundialmente (ARRIGHI, 1998). Contudo, o Estado não é uma figura política que apenas participa do sistema-mundo moderno; com efeito, ambos estão duplamente relacionados: eles não apenas emergem juntos no século XVI, como reforçam a existência um do outro.

Na explicação oferecida por Wallerstein (1974a, 1974b), são historicamente as forças produtivas e as relações de produção capitalistas que condicionam a formação dos grupos sociais e influenciam na construção de seus respectivos Estados. Tais processos produtivos estão organizados em torno de uma divisão axial do trabalho (ou tensão centro-periferia) e de uma divisão social do trabalho (ou tensão burguesia-proletariado) que possibilitam a acumulação incessante de capital que, por sua vez, é o que define este sistema histórico. Estes processos estão integrados pelo sistema interestatal, formado por Estados criados (ou transformados) dentro da dinâmica deste sistema-mundo.

Se, por um lado, a estrutura do sistema é perene e formadora de estabilidade, por outro, os Estados, comandados por governos mais ou menos aptos à acumulação de poder, estão em contínuo embate, alternando-se historicamente no exercício da hegemonia, mas sem permitir que algum se expanda indefinidamente, como ocorre com um império-mundo (RIBEIRO, 2010, p. 5). Foi exatamente do esforço do sistema interestatal de barrar este tipo de iniciativa que se formaram as ‘potências hegemônicas’: primeiro as Províncias Unidas, no século XVII, depois o Reino Unido, em meados do século XIX, e os Estados Unidos, desde o primeiro quartil do século XX; em todos os casos, a superioridade econômica teve início na produção, passando então para o comércio e, finalmente, alcançando as finanças (WALLERSTEIN, 2002, p. 34). Assim, a hegemonia resulta da concentração de poder econômico e político em determinado Estado, tornada possível em longos períodos de expansão do sistema e a sucessão hegemônica decorre da trajetória e da dinâmica particular do sistema-mundo (WALLERSTEIN, 2002).

Discordando de Wallerstein, Arrighi e Silver (2001) defendem que “a ascensão das nações hegemônicas no mundo moderno não foi mero reflexo de propriedades sistêmicas [...] a hegemonia também implicou uma reorganização fundamental do sistema e uma mudança de suas propriedades” (ARRIGHI; SILVER, 2001, p. 35). Na visão de Arrighi, o conceito de hegemonia refere-se a um poder exercido por um Estado com o propósito de desempenhar “funções governamentais sobre um sistema de estados soberanos” (ARRIGHI, 2007, p. 227). Assim, tanto as expansões quanto as reestruturações da economia-mundo capitalista decorrem da liderança de comunidades e blocos de agentes governamentais e empresariais que detém alguma forma relevante de vantagem sobre os demais agentes; eles criam estratégias e formam estruturas capazes de promover, organizar e regular a expansão da economia mundial, formando regimes de

acumulação em escala global20. Do ponto de vista metodológico, um elemento comum entre as perspectivas de Wallerstein e Arrighi é a possibilidade de se examinar os ciclos de desenvolvimento da economia-mundo capitalista a partir de suas hegemonias (ARRIGHI, 1996).

Uma terceira interpretação do sistema interestatal é oferecida por Fiori (2004), que se engaja na análise ampla das relações entre o poder político e a acumulação de capital. Para este autor, o sistema interestatal vigente teve origem num dos primeiros movimentos de expansão dos países europeus, entre 1150 e 1350, desenvolvendo-se a partir de uma relação virtuosa entre acumulação de poder e de riqueza. A necessidade de financiamento de um permanente ambiente belicista e competitivo teria induzido os governos a multiplicar a dívida pública e ampliar a arrecadação de tributos, como consequência do que se deu o incremento do excedente e do comércio, além do mercado de moedas e dos títulos de dívidas. Daí o círculo virtuoso e original entre os processos que permitiram a acumulação de poder e de riqueza. A virtuosidade de que fala Fiori remete à articulação entre agentes e instrumentos (governos, tributação, formação de excedente, desenvolvimento de guerras, expansão do crédito, entre outros), da qual resulta um dinamismo particular que alimenta o sistema em expansão.

O impacto mais objetivo desta abordagem sobre a visão da economia-mundo capitalista é que não seria possível deduzir a necessidade de acumulação a partir do mercado ou das trocas; em vez disso, é a luta pelo poder que estimula a formação de excedente. Esta lógica não se teria alterado com a formação do modo de produção capitalista e nem com a “consolidação do processo de concentração e centralização privada do capital” (FIORI, 2007, p. 16).

Sobre os limites históricos da integração do sistema-mundo e da presença de hegemonia, Abu-Lughod (1989) argumenta que “nenhum sistema está absolutamente integrado” e que, “portanto, nenhum pode ser completamente controlado, mesmo pelo mais poderoso de seus participantes”. Particularmente, não é completo o poder de controlar ou prevenir mudanças no sistema, de modo que subsistemas, configurações regionais e até mesmo “pequenas condições localizadas” podem interagir com condições adjacentes de forma a criar resultados que de outro modo não teriam ocorrido, haja vista que “grandes perturbações, por vezes, vibram até o fim, enquanto as menores podem, ocasionalmente, reverberar descontroladamente, a depender do que está acontecendo no resto do sistema” (ABU-LUGHOD, 1989, p. 368-9). Portanto, mesmo admitindo que o todo sistêmico represente mais do que a soma de suas partes, a autora reconhece a possibilidade de mudanças imprevisíveis e dramáticas advirem de partes menos importantes.

20 A vida de cada um destes regimes (formação, consolidação e desintegração) conforma um ciclo sistêmico distinto (ARRIGHI, 1996).

Sua perspectiva não determinista alinha-se parcialmente à proposta de Arrighi, para quem a mudança, embora possível, só pode ser levada a cabo por um Estado poderoso.

Mais do que conceber mudanças sistêmicas a partir de elementos periféricos, a autora questiona a necessidade de uma hegemonia para a manutenção do sistema-mundo. Segundo ela, ainda que o sistema-mundo moderno apresente uma sequência clara de hegemonias desde o seu surgimento, este não é um pré-requisito à conformação sistêmica, pois teria havido pelo menos três economias-mundo anteriores convivendo, cada qual com sua hegemonia, mas sem que qualquer dos subsistemas exercesse hegemonia sobre o sistema (ABU-LUGHOD, 1990, p. 2). O sistema asiático, anterior à hegemonia europeia, foi marcado por um tipo de ‘interdependência balanceada’ em contraste com a hierarquia desenvolvimentista e espacial do sistema europeu capitalista. (ABU-LUGHOD, 1989)