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Complexificação socioeconômica e agricultura de subsistência

3.3 CICLO HEGEMÔNICO 2: GRÃ-BRETANHA (1708-1918)

3.3.6 Complexificação socioeconômica e agricultura de subsistência

No novo eixo econômico, o Sudeste, formou-se um tipo novo de sociedade, mais flexível que a do açúcar e mais permeável aos ideais liberais que a do Nordeste. Ali foram constituídas cidades e novas capitanias. Em torno das zonas auríferas cresceram muitas cidades, locci da vida dinâmica e das novas profissões; aumentaram as atividades comerciais, sociais e de trabalho; foram criadas igrejas, escolas, teatros e órgãos públicos. André João (1976) descreveu o fenômeno da seguinte maneira:

A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número de pessoas que atualmente lá estão [...]. Cada ano, vem nas frotas quantidades de portugueses e de estrangeiros para passarem às minas. Das cidades, vilas e recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se servem (ANTONIL, 1982, p. 167).

É a partir da análise das grandes fases em que se processa a evolução do povoamento no Brasil, com seus fluxos e refluxos entre o litoral e o interior, ao sabor do desenvolvimento de cada ciclo econômico, que Prado Jr. constata a grande mobilidade da população, refletindo o caráter da colonização: aproveitamento aleatório de conjunturas passageiramente favoráveis, com vistas a um mercado exterior e longínquo. Advertiu o autor que “[...] a colonização não se orienta no sentido de constituir uma base econômica sólida e orgânica, isto é, a exploração racional e coerente dos recursos do território para a satisfação das necessidades materiais da população que nele habita” (PRADO JÚNIOR, 1972, p. 73).

De fato, a situação do abastecimento local alcançou momentos críticos nos quais se viu a coroa portuguesa obrigada a intervir, por decreto ou diretamente, não apenas pela situação de carestia, como em função da significativa transferência de recursos que as importações da classe abastada implicavam. Após muitas queixas, em 1770 o próprio Marquês do Lavradio se encarregou de enviar à colônia uma remessa de farinha que deveria ser vendida a preço de custo na Bahia, devido à escassez de alimentos naquela capitania, muito embora a região mais desenvolvida da colônia (LAVRADIO, 1770). Importante, entretanto, ter em mente que, nesta época, a Europa estava inundada pelo trigo advindo das colônias britânicas e a iniciativa portuguesa pode ter tido, paralelamente, a intenção de escoar uma parte da oferta à colônia.

Este vice-rei, após o recebimento de um mapa da plantação do distrito de Maricá, advertiu por carta ao mestre-de-campo, Miguel Antunes, que:

[...] os Senhores de Engenho, [...] por se acharem ocupados na cultura das Canas, devo dizer-lhe, que isto não pode servir de desculpa, por terem a obrigação de plantar os mantimentos necessários para haver abundância deles; e como da carta de v.me. vejo que eles nem para si, nem para os seus escravos, o têm plantado, v.me. me dirá quem são os senhores de engenho, que os tem deixado de plantar, e a porção de terras que cada um deles tem devolutas, para se lhes haver de tirar e dar-se àquelas pessoas que as cultivem [sic] (LAVRADIO, 1770).

Com a chegada da Família Real e a estrutura do Estado português, deu-se a necessidade de incrementar o abastecimento de gêneros agrícolas para o mercado interno, em função do que. D. João VI, atento a “essa situação de emergência e à rusticidade dos meios de produção”, criou o primeiro curso de agricultura na Bahia (1812) e a cadeira de botânica e agricultura no Rio de Janeiro (1814). Seu objetivo fora melhorar conhecimento das espécies nativas para descobrir seus usos alimentares, curativos e tecnológicos (RESUMO..., 1817, nota 4).

Por haver aqui uma economia essencialmente agrícola (pois até mesmo o tráfico de escravos existia como função desta), a subordinação da colônia ao mercado externo expressava-se também pela reflexividade, ou seja, sua vulnerabilidade ante as flutuações do mercado internacional: em épocas de altas dos preços internacionais dos gêneros exportáveis, observava- se, internamente, a expansão das atividades coloniais voltadas ao mercado interno, como fora com a pecuária e a agricultura de subsistência. Assim, as variações no mercado externo determinavam a evolução do abastecimento doméstico, mas apenas enquanto insumo à própria expansão da produção exportável, cujo crescimento – baseado nos dois fatores essenciais de uso extensivo: mão de obra escrava e terra, sendo esta abundante - implicava o aumento da demanda pela primeira e, doravante, por produtos que garantissem o abastecimento da estrutura produtiva ampliada. Tendo a grande exploração lugar central na economia, “tudo mais [...] será subsidiário e destinado unicamente a amparar e tornar possível a realização daquele fim essencial” (PRADO JÚNIOR, 1972, p. 119, 135), em sua função “dispor-se-ão os outros setores acessórios do comércio da Colônia e que não têm outro fim que alimentar e amparar aquela corrente fundamental” (FURTADO, 1988, p. 102).

Da mesma forma, quando ocorriam baixas nos preços internacionais (por retração nominal ou relativa da demanda em relação à oferta global), o processo inverso era observado na produção de subsistência, então retomada pela mão de obra escrava dentro das grandes lavouras. Como resultado, ainda que aumentasse a produção para consumo doméstico, esta não se dava de forma mercantilizada, ficando restrita ao autoconsumo. E por não permitir qualquer acumulação, também não viabilizava o crescimento da renda monetária, que retornava aos cofres patronais tão logo se invertesse a tendência sistêmica (FURTADO, 1967, p. 95). Desta dinâmica resulta também que os custos de ajustamento às mudanças desencadeadas pela variação dos preços

internacionais eram absorvidos, principalmente, pela minguada camada social intermediária51, uma vez que a mão de obra escrava, sendo uma propriedade de vida útil determinada, estava sempre ocupada, qualquer que fosse a situação do sistema. Para Castro (1980), as limitações internas à reprodução social da colônia chegavam a determinar uma dinâmica própria interna de resposta às demandas do centro.

Este quadro só foi amenizado pela chegada de imigrantes, a partir de 185052, e o crescimento da população, de duas vezes e meia entre 1850 e 1900. Através do trabalho assalariado e de seus mais elevados padrões de consumo, eles contribuiram acentuadamente para a elevação da renda e expansão do mercado interno, a reboque do que ganhou dimensão a economia de subsistência, especialmente no estado Minas Gerais, onde se formou o maior celeiro do país (FURTADO, 1988, p. 96, 100). Mas até os anos 1950, pelo menos, a imigração continuou a ser um mecanismo estratégico de suplementação do trabalho, particulamente na agricultura. Em 1938, quando já se buscava conter os fluxos migratórios, o governo autorizou a permuta entre nações das parcelas inutilizadas de suas quotas de imigração, desde que favorecesse a entrada de trabalhadores para a agricultura. E, a partir de 1945, quando redesenhados os critérios de imigração (que em face do processo de industrialização ficaram mais exigentes e passaram a privilegiar trabalhadores qualificados para a indústria), foram mantidas as subvenções nos casos que atendessem as necessidades da agricutlura (FURTADO, 1988, p. 122)53.

Prado Júnior (1972), Furtado (1967) e Novais (1989) concordam terem sido características primordiais da etapa colonial: (a) a presença de dois tipos de produção: uma principal, voltada para a exportação e performada em grandes propriedades a partir da mão de obra escrava; e a produção subsidiária, orientada ao abastecimento interno e empreendida em propriedades menores, onde havia a predominância de trabalhadores livres ou mesmo dentro da grande lavoura exportadora, em uma área destinada à produção de subsistência; (b) exíguo desenvolvimento das forças produtivas em decorrência do uso extensivo dos recursos naturais e da mão de obra escrava; (c) profunda concentração da renda na elite agrário-exportadora; (d) um mercado interno reduzido, cuja dinâmica estava atrelada aquela do comércio externo.

51 “[C]omposta daqueles que vegetam miseravelmente nalgum canto mais ou menos remoto e apartado da civilização, mantendo-se ao deus-dará, embrutecidos e moralmente degradados” (PRADO JÚNIOR, 1972, p. 282). 52 Entre 1850 e o início do século XX, 130 mil imigrantes foram destinados ao plantio de café (FURTADO, 1988, p.

96).

53 Entre 1888 e 1930, a crise de superprodução do café deslocou a mão de obra disponível de duas formas: a queda dos salários rurais fomentou a migração dos trabalhadores aos centros urbanos e a baixa dos preços deslocou o capital acumulado para outros setores produtivos em torno daquela cultura, mobilizando grande parte da força de trabalho, cada vez mais absorvida pelo setor industrial (FURTADO, 1988, p. 138-9).

Fragoso (1992) observou uma dinâmica própria neste reduzido mercado interno, evidenciando contribuições expressivas das formas não capitalistas de produção à acumulação da economia colonial. Para ele, a presença de um mercado doméstico capaz de orientar o desenvolvimento de segmentos produtivos “introduz um novo elemento na lógica de funcionamento da formação colonial”; isto é, a constituição de “movimentos de acumulação introversas” aumentava as possibilidades de retenção do sobretrabalho e, portanto, de autonomia diante de flutuações externas. Tais movimentos de acumulação endógena dependiam da própria formação econômico-social e resultavam da “interação mercantil dos processos de reprodução do escravismo colonial com os setores produtivos ligados ao mercado doméstico” (FRAGOSO, 1992, p. 131-2). Mas até o final do século este movimento ainda era bastante incipiente, prevalecendo aqui um quadro de miséria, com baixo nível cultural e salários ínfimos que restringiam por demasiado o consumo (FURTADO, 1988, p. 102).

Orientado pela mesma inflexão de Fragoso, Barros de Castro defendeu que, para além da finalidade de servir aos interesses do comércio europeu, uma vez que a produção em massa de mercadorias criara raízes no Novo Mundo, assumindo a forma de um aparato produtivo complexo, seu sentido (para usar o termo adotado por Novais) passou ser inerente, ou seja, impunha-se a tarefa de reproduzir-se a si mesma. E para tanto o comércio foi reestruturado e determinações estabelecidas no nível da produção, criando uma estrutura socioeconômica dotada de elementos de rigidez, regularidades, interesses e conflitos próprios que acabaram por subjugar (embora não tenha eliminado) os interesses mercantis e o projeto colonial. Isso é dizer que as possibilidades de atuação externa sobre a colônia passaram a depender “primeiramente da sua solidez e da sua estrutura interna” (CASTRO, 1980, p. 88-9).