• Nenhum resultado encontrado

3.3 CICLO HEGEMÔNICO 2: GRÃ-BRETANHA (1708-1918)

3.3.1 O primeiro Regime Alimentar

A liderança inglesa ensejou um arranjo global de produção e consumo denominado Primeiro Regime Alimentar por Friedmann e McMichael (1989), do qual originaram dois movimentos opostos: o apogeu da organização colonial e o surgimento do sistema interestatal (FRIEDMANN; MCMICHAEL, 1989, p. 95-8), cada qual decorrendo de e introduzindo um padrão histórico cujos desdobramentos devem ser mencionados.

O duplo movimento advinha da reconstituição da Grã-Bretanha. A hegemonia britânica envolveu a abertura para o comércio internacional de mercados coloniais até então protegidos; seu regime de livre comércio operou tanto pela força como pela diplomacia e baseado tanto na superioridade do comércio de bens industriais como na infraestrutura de circulação centrada no mercado de descontos londrino e na Libra Esterlina como moeda internacional (MCMICHAEL, 1985 e 1987b apud FRIEDMANN; MCMICHAEL, 1989, p. 99)16. Este movimento desencadeou respostas nacionalistas dos demais Estados europeus, que já não podiam assegurar-se pelas

16 MCMICHAEL, Philip. Britain’s hegemony in the nineteenth-centrury world-economy. In: EVANS, P. et al. (Eds.)

States versus Markets in the World-System. Beverly-Hills, CA: Sage. p. 117-50. MCMICHAEL, Philip. State formation

and the construction of the world Market. In: ZEITLIN, M. (Ed.) Political power and social theory. Greenwich: JAI Press, 1987. p. 187-237.

práticas mercantilistas, e que por isso estenderam suas relações comerciais e reformaram estruturas político-administrativas internas em busca de estabilizar suas economias e nacionalizar o capitalismo tanto quanto possível (FRIEDMANN; MCMICHAEL, 1989, p. 99).

A organização das economias nacionais na Europa assumiu duas formas: a realocação de algumas culturas temperadas para as colônias britânicas de povoamento e o uso de tarifas protecionistas para permitir a transformação comercial de sua agricultura, reforçando o intercâmbio doméstico entre setores produtivos. No primeiro caso, uma especialização internacional deu-se em torno da produção familiar de commodities nos Estados coloniais britânicos (Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia), especialmente de trigo e carne bovina, bases da alimentação dos trabalhadores europeus. Com o objetivo de baratear os produtos da cesta básica, em 1894 a Inglaterra autorizou a livre importação de grãos, em cuja contrapartida exportava bens de capital e pessoal da Europa para organizar a produção. Este contexto foi crucial para a formação de uma agricultura familiar industrial nos Estados Unidos e o decorrente estabelecimento de uma nova forma de agricultura comercial especializada e de desenvolvimento capitalista17. Enquanto as reformas nacionais na Europa fomentavam o comércio global, paradoxalmente, crescia também a hegemonia britânica (FRIEDMANN; MCMICHAEL, 1989, p. 99).

O comércio mundial expandiu de forma bastante competitiva, em especial por parte dos Estados coloniais, estimulando um movimento protecionista de longo prazo em favor da agricultura europeia que, inevitavelmente, demovia o livre comércio britânico do centro da ordem econômica mundial. Mas quando a Inglaterra já dava sinais de declínio, a Libra Esterlina e o padrão-ouro assumiram a função de regulador internacional em virtude do papel axial de Londres no comércio mundial, garantindo a liquidez do sistema multilateral de comércio18. Assim, o sistema interestatal formava-se dentro (e na contramão) das relações de mercado, com as relações nacionais e internacionais se reproduzindo como contingência da hegemonia britânica. Enquanto isso, as estruturas nacionais capitalistas – elas próprias contingenciais – formavam a base para que a especialização colonial desse lugar à especialização internacional (FRIEDMANN; MCMICHAEL, 1989, p. 99-100).

17 Segundo Polanyi (1957), foram estas medidas estatais ativas que sustentaram o liberalismo econômico do final do século XIX, promovendo mobilidade por terra, o trabalho (inclusive de imigrantes), o capital e as commodities (apud FRIEDMANN e MCMICHAEL, 1989, p. 99).

18 Isso era possível compelindo os Estados nacionais a estabilizarem a conversibilidade de suas moedas com depósitos naquela cidade, bem como regular as moedas nacionais e orçamentos domésticos à conveniência e conforme sua posição no comércio internacional (FRIEDMANN; MCMICHAEL, 1989, p. 99-100).

Se antes a Europa fomentou uma 'proto-indústria' e o comércio colonial com base em políticas mercantilistas, à sua vez, os Estados-coloniais ao mesmo tempo definiram os territórios nacionais e estabeleceram setores produtivos comercialmente integrados entre si. Esta reconstituição da economia mundial não apenas alterou a divisão do trabalho em seu conteúdo e forma, como antecipou o declínio da divisão do trabalho de natureza colonial. Pelo mercado, produtores coloniais europeus enfrentavam a competição de bens produzidos a partir de trabalho assalariado, pelo qual a produção era reorganizada em torno de linhas industriais onde eram substituídos os produtos tropicais, como ocorreu com o algodão a partir do advento dos têxteis sintéticos. Elevada a capacidade produtiva dos Estados-coloniais em torno do trabalho assalariado, integrados os mercados e controlados internacionalmente os preços de produtos básicos, deu-se então o deslocamento da produção de culturas temperadas para os Estados- coloniais, cujas importações permitiram à Europa superar os limites impostos pela escassez de terras agricultáveis e elevados preços dos alimentos à acumulação de riqueza. Formava-se um novo padrão de comércio ao lado do ainda vigente padrão colonial de administração direta pelas metrópoles sobre a produção (complementar) de culturas tropicais. Esta nova ordem mundial e o caráter de complementariedade das trocas encorajaram um movimento no sentido das vantagens comparativas e da criação de um “aparente mecanismo automático de especialização”, favorecendo o deslocamento e a ampliação das esferas coloniais. Após significativa queda no preço dos grãos promovida pela competição com os Estados-coloniais, instaurou-se uma crise na produção europeia de grãos, em consequência da qual houve uma retomada do apelo nacionalista e a implantação de políticas balanceadoras dos efeitos do livre comércio, dentre as quais a retomada ativa de políticas coloniais. Era o nacionalismo econômico expressando as forças do mercado mundial. Após décadas de guerras e depressão, o desenvolvimento comercial da agricultura na Europa finalmente logrou complementar o setor industrial; neste ínterim, os Estados-coloniais implantaram legislações e políticas específicas para enfrentar o colapso do comércio mundial, como suporte de preços e controle de mercado, os quais logo seriam replicados na Europa e nas ex-colônias, que gradativamente se tornavam independentes (FRIEDMANN; MCMICHAEL, 1989, p. 94, 100-2).

Ao final do século XIX, a agricultura mundial havia estabelecido três novas relações com a indústria: a complementariedade baseada nas diferenças climáticas e sociais dos produtos dera lugar ao comércio competitivo, a partir da lógica ricardiana de vantagens comparativas; as ligações mercadológicas entre agricultura e indústria determinavam o caráter capitalista do primeiro setor, que todavia não processava a produção, apenas fornecia insumos industriais e consumia o produto final; e a complementariedade entre os setores comerciais da agricultura e da

indústria, originada no comércio internacional e dela ainda dependente, foi paradoxalmente incorporada pelas economias nacionais, dando origem aos complexos agroindustriais de produção e consumo (FRIEDMANN, 2000, p. 102-3).