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3.4 INTERVALO HEGEMÔNICO 2 (1919-1945)

3.4.3 Estrutura social e agrária

Ao longo da década de 1920, um vigoroso movimento nacionalista politizou a doença e a saúde, explicando que a onipresença das endemias rurais, da fome e do analfabetismo no interior do país, a despeito das problemáticas superproduções, se devia à ausência de poder público. Um interior dominado por potentados locais em um país não integrado devido ao federalismo e gerido por lógicas oligárquicas, de “governos inapetentes e ineptos para prover os benefícios da medicina à sua população”. Para o movimento sanitarista da Primeira República só havia uma solução: uma reforma sanitária com ações e políticas públicas centralizadas. Algumas reformas, de fato, ocorreram entre os anos 1910 e na década de 1920 (HOCHMAN, 2013).

Já para o médico sanitarista e professor, Samuel Barnsley Pessoa, o caso não era de advogar por mais intervenção estatal e centralização, menos ainda o clima tropical; a causa das doenças nas áreas rurais era resultado das estruturas econômicas, defendendo haver uma relação determinante entre a estrutura agrária e as endemias rurais, na qual a concentração de terras e o latifúndio representavam uma dimensão crucial para a compreensão da fome, miséria e doenças endêmicas do Brasil rural. Junto a higienistas e sociólogos que estudavam o fenômeno rural, ele defendia a necessidade de uma reforma agrária como caminho sine qua non à melhora nas condições da alimentação, vestuário, habitação, saúde e educação no campo (PESSOA, 1978, p. 193; PESSOA, 1949). O autor também pôs limite à extensão do atributo desenvolvimentista e a disseminação de seus discursos e artigos sobre as condições miseráveis das populações rurais foi censurada ao final do Estado Novo. Em 1940, responsabilizou o poder público, os proprietários rurais, e de maneira menos clara, o capitalismo brasileiro, pelas condições de vida dos trabalhadores rurais, em particular nas áreas de expansão agrícola. Referia-se às dificuldades impostas por fazendeiros no estabelecimento de postos sanitários em suas propriedades, sob a alegação de que a presença dos serviços e doentes desvalorizaria as terras. A mentalidade profundamente arraigada de defesa de seus produtos priorizava a terra, o gado e as plantações em detrimento dos “operários agrícolas”; os capitalistas rurais eram inapetentes até mesma à filantropia no campo da saúde, recusando qualquer doação para este fim (PESSOA, 1940, p. 13).

Apesar dessa consciência que surgia sobre os vínculos entre latifúndio, fome e doença, não houve política de apoio ao desenvolvimento do pequeno estabelecimento rural, excluindo da sua propriedade uma parcela significativa da população que, a seu turno, assegurava a força de trabalho barata e abundante para aquela outra parcela da população. Por isso, Silva (1996, p. 337) conclui que a abundância de terras “era um dado relativo e socialmente determinado”.

No contexto de crise de demanda das principais culturas de exportação e ampla proteção e apoio à expansão das cadeias sucroalcooleira e cafeicultora, cujos desdobramentos incluíam a canalização dos recursos públicos aos grandes produtores, expansão fundiária e a valorização do preço da terra, Taunay observou importantes estratégias de cooperação entre pequenos e grandes produtores nas zonas cafeeiras.

Segundo Taunay, a baixa dos preços revelara que as grandes fazendas eram as mais vulneráveis a queda dos preços. Em São Paulo, principal loco da produção nacional, até 90% o cultivo estava bem distribuído em lavouras de 5.000 a 20.000, de 20.000 a 50.0000, de 50.000 a 100.000 e de 100.000 a 500.000 pés de café; em Minas Gerais o cenário era bem diferente, as propriedades entre 5 e 20 mil pés representavam 36,74% e aquelas com menos de 5 mil pés, 53,66%; no Espírito Santo, 20.000 proprietários cultivavam em torno de 175.000.000 de pés de café, do que resultava uma média simples de 8750 pés por empreendimento. Em situação completamente diferentemente estava a Colômbia, o segundo maior produtor, onde quase metade da produção era gerada em propriedades de menos de 5.000 pés, um terço delas de 5.000 a 20.000 e um décimo em propriedades de até 50.000 pés. Ou seja, a propriedade mediana paulista era dez vezes maior que a colombiana, o que, ao ver do autor, era a razão de a cafeicultura brasileira ser mais vulnerável que sua concorrente. Igualmente, reforçou que a produção de café no Brasil priorizou o latifúndio não por uma necessidade do café, mas do arranjo agrário aqui se encontrava disponível (TAUNAY, 1939, p. 168-70).

Tamanha era a dependência sobre o cultivo do café que, a despeito da frugalidade dos fazendeiros, chegara-se à situação em que o café não deixava saldo sequer para a subsistência das famílias cafeeiras; os pequenos proprietários, por sua vez, “conseguiam um superavit de receita, mas muito minguado que mal lhes podia deixar margem para á manutenção da vida de civilizados [sic]” (FURTADO, 1988, p. 142). As fazendas maiores de São Paulo tinham grande e constante dificuldade em garantir a mão de obra, quase toda ela constituída por colonos contratados para o ano cafeeiro74; com a recente abertura de novas lavouras, os colonos deslocaram-se, cada vez mais, para o interior, dificultando sua contratação e elevando o preço do fator trabalho a tal

ponto que os preços altos do café respondiam diretamente aos contratos de colonos, feitos a preços igualmente elevados, deixando aos colonos “resultados apreciáveis” que permitiram alguma acumulação de capital para a aquisição de terras. Junte-se a isso o simultâneo encerramento das ondas de imigração europeia e tem-se uma redução severa da mão de obra disponível. Para compensar os elevados custos do trabalho, algumas fazendas autorizaram o plantio do milho no meio do cafezal, cujo produto serviria como parte do pagamento, prática comum nos pequenos empreendimentos, porém banida das grandes lavouras, onde a economia com trabalho era ínfima, cabendo a estas os maiores prejuízos. Talvez por isso, diante da queda das exportações de café, averiguou-se um aumento na oferta de gêneros alimentícios de primeira necessidade no mercado interno, particularmente de arroz, feijão, cana de açúcar75, mandioca, milho e trigo (FURTADO, 1988, p. 142).

Com o tempo esta prática foi revogada, pois os colonos, naturalmente, tinham mais interesse pelo trabalho no milharal do que o cafezal propriamente. Ademais, os contratos dos colonos revelaram-se ‘ásperos’ demais para que os trabalhadores se interessassem pela conservação do cafezal, colheita ou mesmo o ‘modo de se a fazer’, do que decorria a baixa produtividade do trabalho em fazendas mais antigas e maiores, mas não naquelas novas e mais afastadas – onde os próprios colonos ampliavam o cultivo o café e onde a diferença de rendimento variava entre 33 e 50% em relação ao trabalho que prestava ao patrão (TAUNAY, 1939, p. 168-70).

Cândido (2010) observou na figura do caipira um elemento primordial para compreender os processos mais amplos e profundos que resultavam da transformação do país nas décadas de 1940 e 1950 e, particularmente, da “crise de incorporação à economia moderna” dos caipiras de São Paulo (TAUNAY, 1939, p. 221). Às vésperas do milagre brasileiro e no lócus da geração de riqueza do país, Cândido (2001) fala de um caipira cuja mobilidade e autonomia – artifícios para sobreviver à fome, à pobreza e aos conflitos, garantindo seu ‘mínimo vital’, - estavam cada vez mais limitadas pela solidificação do sistema de propriedade, esta disputada pela elevação da densidade demográfica e a urbanização. Sem meios para reproduzir-se a partir da conjunção do próprio trabalho e terras, tornava-se o caipira cada vez mais dependente do mercado na medida em que, de um lado, incorporava novas necessidades, inclusive alimentares e, de outro, transferia o local da geração de renda para fora do sítio, fosse pela especialização ou em virtude da migração para os centros urbanos. A urbanização estabelecia a direção e o compasso das mudanças sociais no campo, embora o ritmo fosse dado pela resistência do caipira. Diante da

75 Observe-se que o aumento da oferta de cana de açúcar pode conectar-se à queda simultânea das exportações de seus derivados.

decadência econômica iniciada com a crise na produção de café em larga escala, nas primeiras décadas do século XX, uma estratégia – ou arranjo temporário - predominante entre os caipiras fora a da parceria como relação de trabalho. Descreveu o autor que médios e grandes proprietários, diante da impossibilidade de explorar as próprias terras, arrendavam-nas aos caipiras (também chamados de aforados, ou aqueles que vinham de afora), a quem coubera não apenas a cultura do café, mas a produção de gêneros alimentícios, utilizados para o pagamento em espécie pelo ‘empréstimo da terra’; uma verdadeira ‘parceria’ entre capital e trabalho em que ambos revelavam-se desinteressados nas relações de trabalho assalariado, e cujo resultado fora a “associação, sobre um solo pobre, do trabalho lento e do capital tímido” (CÂNDIDO, 2001, p. 216-7, 248).

E uma vez atendido o autoconsumo, os excedentes deste arranjo colaborativo conjuntural eram destinados ao mercado doméstico, contribuindo também para conter a tendência inflacionária (FURTADO, 1988, p. 142).

Sob todas as formas que pode assumir a parceria (50% ou menos, se o fazendeiro não puder arcar com as inversões iniciais para a exploração da terra) é possível dizer que seu incremento extraordinário “pode significar verdadeira capitulação do latifúndio, que permite refazerem-se no seu território agrupamentos de lavradores [...], praticando, em pequena escala, agricultura de subsistência", habilitando-lhes a preservação da qualidade de trabalhadores semi- independentes e proprietários incompletos – tendo mais do que o camarada e o colono, porém menos do que o sitiante, ainda que a posição de vida de todos eles fosse mais ou menos equivalente. A parceria representava "um ponto de precária estabilidade no processo de mudança" e "uma forma de proletarização rural [...] que retarda ou evita não apenas as suas formas extremas (salariado), mas ainda a proletarização urbana imposta pelo êxodo" (CÂNDIDO, 2001, p. 218-9). O autor concebeu este arranjo como a elaboração de um novo "ajuste ecológico", ao qual fora obrigado o caipira, em consequência da influência destrutiva que o crescimento da economia capitalista tinha sobre sua cultura tradicional, processo ao final do qual ele já não detinha a terra necessária à sua reprodução social e ainda passava a integrar a base de um novo sistema social de acentuada estratificação (CÂNDIDO, 2001, p. 215-6).

De uma perspectiva da mudança estrutural, é interessante observar que a parceria surge, em meio à crise, como um recuo temporário do processo de modernização; uma solução mútua entre caipiras76, grandes e médios proprietários de terras e em cuja essência esteve a absorção das

76 O caipira, com frequência, era proprietário de certa quantidade de terras, todavia insuficientes à autossuficiência em virtude de suas técnicas rudimentares, da subdivisão da herança, da degradação econômica advinda da impossibilidade de provar, legalmente, os diretiros territoriais, e da expansão do café, que interferia na economia dos sítios e na constituição dos bairros. Quando ficavam sem qualquer terra era devido, geralmente, à displicência

novas tarefas econômicas, assim como dos custos de ajuste à nova situação do país, que recaía, acima de tudo, sobre a figura do caipira. O arranjo possibilitou a reativação do modelo econômico anterior, pois a parceria levou à revalorização das terras velhas, recriando as condições para o latifúndio produtivo (diretamente administrado) e recompondo a distribuição fundiária anterior; e ainda que fossem maiores as possibilidades para o pequeno proprietário, era “desprezível” o número dos que, tendo sido parceiros, lograram tornarem-se proprietários (CÂNDIDO, 2001, p. 219-20). Vale-se Cândido do termo ‘franja’ para designar o lugar habitado pelo homem do campo paulista neste processo: o limite, a periferia, a borda, a fronteira, o meio fio, mas nunca o moderno ou o tradicional, a ruptura ou a permanência, mas a convivência de visões de mundo, de temporalidades, o compromisso entre a condição local e a forma universal.