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Brasil, Portugal e a liderança britânica

3.3 CICLO HEGEMÔNICO 2: GRÃ-BRETANHA (1708-1918)

3.3.2 Brasil, Portugal e a liderança britânica

A crise do sistema colonial conecta-se à independência dos Estados Unidos (1776) e à propagação dos ideais iluministas na França, movimentos que também influenciaram a criação do sentimento nativista brasileiro e do qual resultaram a expulsão dos holandeses e uma série de revoltas internas19 (SCHWARCZ, 2015, p. 49). Entre o século XVIII e o início do XX, o Brasil deixou de ser uma colônia portuguesa (1534-1808/1815) para tornar-se reino (1815-1822), império (1822-1889) e, finalmente, república (1889-presente), de modo que dois terços do desenvolvimento nacional associam-se à liderança inglesa.

No início do século XVIII, Portugal e Inglaterra assinaram o Tratado de ‘Panos e Vinhos’ (Tratado de Methuen, 1703-1836), pelo qual esta se incumbiu da “sustentação militar e diplomática” daquele, recebendo por contrapartida a abertura dos portos lusitanos às manufaturas inglesas. De forma geral, o acordo mostrou-se bastante prejudicial para Portugal, que acumulou um déficit comercial crescente sobre uma pauta exportadora baseada no açúcar e no fumo (originários da colônia brasileira) e teve o benefício da exclusividade de seus vinhos no mercado inglês abolido em 1786. Embora a resposta inicial de Portugal ao avanço imperialista inglês tivesse sido uma política marcadamente antibritânica que alcançou algum sucesso20, em pouco tempo viu-se este dependente da Inglaterra e, antes mesmo da virada do século, era a Inglaterra que abastecia o Brasil via Portugal, cuja função intermediária, invariavelmente, encarecia o custo de vida na colônia (LOPEZ, 1981, p. 75). Relatos de membros da igreja católica, à época, referiam-se aos magistrados, traficantes de escravos e comerciantes reinóis ingleses como os novos colonizadores. Trocava-se, aqui, o colonialismo mercantilista pela dependência do capital industrial inglês (ARRUDA, 2008, p. 13, 80-1; HOLANDA, 1970, p. 44– 99; MANCHESTER, 1933).

19 Inconfidências Carioca (1794) e Mineira (1798), Conjuração Baiana (1798) e Revolução Pernambucana (1817). 20 Sobre tal política, Arruda (2008) afirma que "[...] no qüinqüênio seguinte, 1790–1795, pela primeira vez em todo o

século XVIII, as exportações portuguesas para a Inglaterra superaram as importações, obrigando os ingleses a remeterem ouro para Portugal, algo absolutamente inusitado" (ARRUDA, 2008, p. 52).

A situação em que se encontrava Portugal foi explicitada no icônico alvará de D. Maria I (1785)21 proibindo o estabelecimento de fábricas e manufaturas na colônia sob o argumento que, com o seu desenvolvimento, os colonos deixavam de cultivar e explorar as riquezas da terra, assim como não faziam prosperar a agricultura nas sesmarias. E para que a agricultura e a mineração não enfraquecessem por "falta de braços", proibiu-se todo tipo de fábrica e manufatura têxtil no Brasil, à exceção das que produzissem tecidos que servissem para vestuário dos negros e empacotamento de fazendas e outros gêneros. Não se podia produzir coisa passível de ser importada da metrópole (JUNTA..., 1785). A resposta lusitana à decadência econômica e à dependência em relação a Londres foi o enrijecimento da política mercantilista sobre a colônia brasileira, decretando seu monopólio comercial e passando a fixar os preços de compra e venda. Os impostos sobre as atividades produtivas foram elevados ao limite, desagradando à elite nativa. A ânsia lusitana pelo ouro já não servia às suntuosas despesas monárquicas, mas à liquidação dos déficits junto à Inglaterra (LOPEZ, 1981, p. 70-4).

Com o retorno do Marquês do Lavradio a Portugal, foram encerradas as atividades da Academia de Ciências do Rio de Janeiro (1779), porém instalada a Academia Real das Ciências de Lisboa com o objetivo de pesquisar sobre as potencialidades naturais e econômicas das colônias, consubstanciados nas memórias elaboradas pelos acadêmicos. A experimentação de novas culturas e a implantação de manufaturas que pudessem incrementar o giro do comércio, sem fazer concorrência à metrópole, estavam atreladas ao projeto pombalino de fortalecer a economia portuguesa, diminuindo a sua dependência, sobretudo dos ingleses22, e a consequente evasão de divisas (SILVA, 1986, p. 456-7). O argumento de Silva sobre a intenção de gerar maior autonomia econômica é explicitado em carta ao Marquês de Angeja, em 1772, onde o marquês do Lavradio expressou a intenção de ampliar os ramos de comércio na colônia, crendo

[...] que não só será de muita glória para a nação, mas também de muita utilidade, porque nas admiráveis plantas que temos, encontramos excelentes bálsamos, gomas, óleos, raízes, cascas, e finalmente mil outras cousas maravilhosas, que podem aumentar infinitamente o comércio [...] não digo que se não conheciam, mas posso dizer que nunca absolutamente se animaram. O objeto de seda tenho eu já bastantemente principiado; o de fabricar anil, que aqui são matos; [...] o da cultura do trigo, para evitar que entre na América imensidade de farinhas que os estrangeiros nos trazem do Norte; [...] para a ilha de Santa Catarina e Rio Grande mandei também a receita do modo de fazer queijos e a manteiga, que nos poderá também fazer desnecessários estes gêneros que compramos aos estrangeiros. (…) A seda pode ser em tal abundância como V. Exª poderá julgar sabendo que em Portugal, só têm as amoreiras folhas três meses no ano, e

21 A ordem foi revogada por D. João, em 1808, em cujo alvará demonstrava desejar promover a “riqueza nacional”, melhorando a agricultura e fornecendo meios para a subsistência de seus vassalos (JUNTA..., 1808).

22 À guisa de curiosidade, até 1777, os principais destinos das representações diplomáticas portuguesas foram, por ordem de importância, Grã-Bretanha, Espanha, França, Santa Sé, Holanda e Áustria; apenas posteriormente surgiram como novos destinos os Estados Unidos e a Rússia (MONTEIRO; CARDIM, 2005, p. 7-40).

na América dez, e que os bichos produzem à mesma proporção. Além disto, o tamanho da folha, é duas e três partes maior que a nossa de Europa, agora considere V. Exª esta facilidade de produção em um País tão vasto, se será capaz de fornecer todo o preciso para as nossas manufaturas, sem o mendigarmos dos estrangeiros, e ainda a estes levarmos o que nos for de sobejo [sic].” (LAVRADIO, 1772, carta 389).

O eufemisticamente chamado ‘Pacto Colonial’ só chegou ao fim em 1808, quando o príncipe regente, Dom João, resistindo à pressão de Napoleão Bonaparte para que obedecesse ao Bloqueio Continental23, fugiu com família real para o Brasil. Em troca pela proteção inglesa, ordenou o rei a imediata abertura dos portos na colônia brasileira24, pondo fim ao monopólio comercial e habilitando as trocas internacionais, particularmente, com a Inglaterra, que desfrutou amplamente das preferêncais que lhe foram asseguradas no Tratado de Comércio e Navegação e na Aliança da Amizade25. Foram muitos os interesses nacionais prejudicados, assim como os dos antigos colonizadores.

Fica claro que, na fase da ascensão, a Inglaterra organizava indiretamente (pela subordinação de Portugal) a produção brasileira, incluindo a expansão da mineração, graças ao que foi possível um breve reflorescimento do comércio lusitano. Ao mesmo tempo, forçava uma abertura política e comercial na colônia com vistas à expansão industrial inglesa, o que, mais tarde, traduziu-se em incentivos à formação de uma classe social intermediária no Brasil, composta por uma massa assalariada e consumidora das manufaturas inglesas.

Após D. João VI, reinou seu filho D. Pedro I, a quem coube o desmembramento definitivo entre o Reino do Brasil e o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Nasceu o Império do Brasil em 12 de outubro de 1822, com a aclamação D. Pedro I e a outorga da Constituição brasileira de 1824, esta seguida de grande agito liberal e alguns conflitos armados. A independência foi anunciada com um famigerado grito às margens do Rio Ipiranga26, em São Paulo. Não por acaso, pois a cidade era, junto com Rio de Janeiro e Minas Gerais, também a mais permeável aos ideais liberais27, dos quais era afeito o próprio imperador, como revelou sua opção

23 Por ser a Inglaterra o principal entrave à dominação francesa da Europa, Napoleão ordenou o fechamento dos portos de todos os países europeus ao comércio inglês.

24 Carta Régia de 28 de janeiro de 1808.

25 Ambos de 1810 e com validade de 15 anos; entre outras coisas, incluíam a proibição de retorno da colonia brasileira à condição de monopólio comercial; a permissão aos britânicos para comercializar livremente nos portos de Portugal e suas colônias; o direito da extraterritorialidade aos britânicos que no Brasil residissem, isto é, de serem julgados por juízes ingleses e segundo as leis daquele país; liberade de culto aos britânicos e proibição da inquisição no Brasil; alíquotas preferencias para a importação de bens ingleses, inclusive em relação aos produtos portugueses; o direito de a Inglaterra distribuir os produtos tropicais na Europa; autorização para o corte de madeiras, a construção de navios e a manutenção de uma esquadra de guerra inglesa no litoral brasileiro; a abolição gradativa do tráfico de escravos (TRATADO DE ALIANÇA E AMIZADE, 1808).

26 O historiador Guilherme Frota defende que a independência teria sido proclamada em 20 de agosto, em assembleia nas dependências da loja maçônica Grande Oriente, no Rio de Janeiro (FROTA, 2000, p. 252).

de romper com a corte portuguesa. Mas os liberais que trabalharam para sua aclamação logo se apresentaram contrários ao que julgaram ser um viés absolutista28, levantando-se contra o Imperador no Sudeste como no Nordeste. Acuado pela agitação e organização de grupos republicanos, o imperador abdicou do trono em 1831, partindo imediatamente para a Europa, onde tentou reaver o trono deixado a D. Maria II, usurpado por seu irmão, D. Miguel. Aqui deixou o filho único, D. Pedro II, príncipe regente, que assumiria o trono nove anos depois (FROTA, 2000, p. 247-54, 272-4).

O I Reinado não alterou o esquema econômico iniciado pelos portugueses: a economia nacional continuou baseada na produção agrícola monocultora, exportadora e latifundiária, assim como na mão de obra escrava, aqui arduamente defendida como essencial à sobrevivência do império (FROTA, 2000, p. 275; CARVALHO, 2004, 18-9). A escravidão acabou por se acomodar ao novo cenário político e ideológico; se, por um lado, a natureza privada do escravo não admitia sua demissão, apenas sua venda, por outro, impunha um limite objetivo à racionalização produtiva: procurando-se economizar na mão de obra, não havia especialização produtiva (VIOTTI, 200129 apud SCHWARZ, 2014, p. 49; PRADO JÚNIOR, 1974).

Em seu turno, D. Pedro I observou o interesse de Londres no comércio com o Brasil e seu desejo de ver a escravidão extinta; acolheu agentes dos Estados Unidos para observar a evolução das liberdades no Brasil e trouxe centenas de oficiais franceses, ingleses e irlandeses para organizar a força militar imperial, muitos dos quais acabaram por estabelecer residência definitiva no Brasil, colaborando para o movimento de estratificação social (FROTA, 2000, p. 254; 261).

O II Reinado (1840-1889) foi marcado pela impropriedade do pensamento e pela importação assídua das visões de mundo e instituições europeias. Deste ‘desterro intelectual’ vieram singularidades que marcaram a história do país: “[...] éramos um país agrário e independente, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro do mercado externo” (SCHWARZ, 2014, p. 48-9; HOLANDA, 1956, p. 15).

Independentemente do grau de autonomia que se possa ter atingido a economia local, como defendem alguns dos críticos de Prado Jr., sugerindo até mesmo ter havido nas Américas um modo de produção escravista colonial, reconhecem estes que a economia colonial era dependente e que sua dependência se impunha de duas maneiras: na reprodução da força de trabalho, que em

28 Particularmente, levantaram-se os liberais contra a Constituição de 1824. O movimento mais estrondoso foi a Confederação do Equador (1824), que se espalhou de Pernambuco para a Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, justamente, onde o apoio a Portugal era mais saliente.

29 COSTA, Emília Viotti da. Introdução ao estudo da emancipação política. In: CARLOS, Guilherme Mota (Org.).

larga medida se dava na África, e na realização da mais-valia, que apesar de extraída na colônia só poderia ser realizada no mercado Europeu (GORENDER 1985; CARDOSO, 1975; COSTA, 1995). Furtado (1967, p. 95), definiu a dependência como um sistema econômico sem autonomia: “[...] sendo uma plantação de produtos tropicais, a Colônia estava integrada nas economias europeias, das quais dependia. Não constituía, portanto, um sistema autônomo, sendo simples prolongamento de outros maiores.” A relação de dependência com a Europa não era, como sugere o trecho citado, apenas em relação aos mercados, mas também da tecnologia dali importada, da proteção e da estratégia do hegemon.

Propôs Novais (1979, p. 109) que a transferência do excedente da colônia para a metrópole por meio do monopólio do comércio de gêneros tropicais foi o “sentido profundo da colonização” e que, ademais, serviu à acumulação primitiva de capital que impulsionou a Revolução Industrial no século XVIII (pois Portugal transferia para a Inglaterra o excedente apropriado). Em decorrência do que tudo o mais que existisse na colônia seria subsidiário e seu mercado interno, necessariamente reduzido. À visão de Novais alinha-se a tese de Caio Prado Júnior (1981), na qual o capital comercial teria sido o eixo do sistema colonial. Até mesmo a escravidão no Brasil seria explicada pelo capital comercial e pela acumulação primitiva, já que não fora a instituição escravidão que ensejou o tráfico negreiro, mas, ao contrário, ele oferecia a melhor contribuição para a acumulação primitiva. E assim o sistema colonial poderia ser entendido como uma peça central da acumulação primitiva no contexto mais amplo do desenvolvimento do capitalismo mercantil europeu, dando sentido e conectando os diferentes ciclos econômicos que se sucederam.

Em suma, é do sistema originado a partir da grande propriedade (agrícola ou mineradora) como unidade produtora, aglomeradora de numerosos contingentes de mão de obra escrava e dirigida pelo colono branco que “se origina a concentração extrema de riqueza que caracteriza a economia colonial”; dele “[…] derivou toda a estrutura do país: a disposição das classes e categorias de sua população, o estatuto particular de cada uma e dos indivíduos que a compõem. O que quer dizer, o conjunto das relações sociais no que têm de mais profundo e essencial” (PRADO JÚNIOR, 1972, p. 124; 143).