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2.1 O SISTEMA-MUNDO MODERNO

2.1.4 Delimitação geográfica e expansão

A delimitação geográfica é outra característica fundamental dos sistemas-mundo e pode ser observada tanto na delimitação das fronteiras externas – que determinam a abrangência geográfica do sistema –, como nas fronteiras internas que organizam os processos de produção. De forma geral, as fronteiras geográficas de uma economia-mundo são determinadas pelo ponto de equilíbrio entre a pressão expansionista (que resulta da dinâmica das forças no centro) e a relação entre o custo e o benefício da incorporação de novas áreas, dentre os quais: a distância e a presença de autoridade, a organização social e a resistência (WALLERSTEIN, 1974a, p. 338). A importância atribuída aos meios de comunicação e transporte neste cálculo faz das fronteiras do sistema uma função direta da disponibilidade tecnológica. E como a mudança tecnológica cumulativa oferece o potencial necessário para aumentar continuamente o alcance e a velocidade das interações, o sistema tende a se expandir e integrar, apresentando fronteiras cada vez mais fluidas (ABU-LUGHOD, 1989, p. 368; WALLERSTEIN, 1974a, p. 349).

Orientado por sua lógica peculiar de incessante acumulação de capital, a economia- mundo capitalista expandiu-se gradativamente até incorporar todo o globo à sua imensa rede de processos produtivos mercantilizados. Tal expansão deu-se em movimentos cíclicos de incorporação de novas áreas e esteve impelida por processos internos que demandavam o desdobramento espacial das cadeias mercantis a jusante e a montante, ou seja, no sentido da ampliação da produção e do consumo (HOPKINS; WALLERSTEIN, 1987, p. 765).

De forma elementar, o processo de expansão geográfica é caracterizado pela incorporação de áreas externas (minissistemas, impérios-mundo ou economias-mundo concorrentes), em

decorrência da qual se dá a imediata ampliação dos limites geográficos do sistema. A incorporação “envolve ‘fisgar’ uma zona para dentro da órbita da economia-mundo”, integrando- a às diversas cadeias produtivas que conformam a divisão do trabalho vigente21 “de tal forma que ela virtualmente não possa mais escapar”. (WALLERSTEIN, 1989, p. 130). Por isso mesmo, a incorporação não é uma iniciativa das zonas incorporadas, mas uma necessidade do sistema, que se expande em resposta à dinâmica das forças em seu centro. A função que assumirá a nova região dependerá da resistência que ofereça e de sua organização interna – as mesmas condições que codeterminaram o custo de sua incorporação –, bem como das necessidades do centro. Por isso Rússia e Polônia, Ásia e América Latina assumiram funções distintas ao serem incorporadas à economia-mundo (WALLERSTEIN, 1989, p. 130; WALLERSTEIN, 1974a).

A incorporação à economia-mundo transforma necessariamente a estrutura social das áreas incorporadas (WALLERSTEIN, 1974a, p. 337). Um dos motivos é que a oferta de trabalho em uma zona em processo de incorporação tem necessariamente que ser coagida, direta ou indiretamente, a trabalhar em um determinado local e ritmo, sob a coordenação de estruturas que não devem ser nem tão fortes nem fracas (WALLERSTEIN, 1989, p. 157, 171). A periferização, que é o aprofundamento das relações existentes, dá-se apenas depois de finalizado o processo de incorporação (WALLERSTEIN, 1989, p. 129-30), de cuja consolidação decorre, evidentemente, o aumento da capacidade de acumulação de riqueza (e poder) do centro.

A ideia de expansão geográfica do sistema, proposta por Braudel, Wallerstein e Arrighi, tem como implicação primordial o fim deste processo quando da incorporação de todos os Estados. Este, entre outros, é o motivo pelo qual Wallerstein (2009) defende que a economia-mundo capitalista já iniciou seu processo de declínio e está “num período de transição do qual sairemos em 30 ou 50 anos num tipo muito diferente de mundo”. Para ele, o sistema vivia (e vive) um colapso de funcionalidade, uma crise estrutural fundamentada nos limites autoimpostos à acumulação de capital, como outrora mencionado. As taxas de lucro devem ser reduzidas significativamente, pois o lucro de uma produção quase monopolizada, alicerce da acumulação, está comprometido pelo aumento dos impostos, dos custos dos insumos e pela internalização de custos ambientais pelas empresas. Não há mais fuga para as periferias, reflete. Esta visão segregadora ou insular sobre a geografia da divisão axial do trabalho tem, como demonstrado, implicações objetivas para a compreensão do momento cíclico desta economia-mundo. Esta não é, todavia, a única forma de conceber a expansão do sistema.

21 Para tanto, detalha, é preciso questionar-se sobre a natureza das estruturas econômicas de decisão, a forma diferenciada como o trabalho é disponibilizado, o grau de relação entre as unidades de governança e os requerimentos da superestrutura da economia-mundo capitalista e, finalmente, da emergência ou ampliação da infraestrutura institucional necessária para cobrir as zonas incorporadas (WALLERSTEIN, 1989, p. 131).

Embora admita a utilidade do mapeamento territorial ontem, hoje e no futuro, Gills (2016a) faz uma das poucas críticas existentes às limitações da premissa da delimitação geográfica, “única resposta que a antropologia pode oferecer”. Alternativamente, o autor explora uma nova reconceitualização de periferia baseada em mentalidades sociais históricas de ‘complexo de valor’ e ‘complexo de acumulação’ subjacentes às relações sociais hierárquicas da cadeia de valor do sistema-mundo. Ele sugere uma compreensão histórica das hierarquias socioespaciais, a partir de uma mudança no foco da análise, que passaria a ser “os processos históricos de formação de relações sociais hierárquicas de extração (de excedente e riqueza) e a formação histórica e perpétua reformação de ‘zonas de extração’ subordinadas a ‘centros de acumulação’” (GILLS, 2016a). O autor também argumenta que o conhecimento sobre os padrões globais de periferização é um desafio analítico que poderia explicar mais assertivamente as variações históricas nos complexos globais de valor, além de reconstruir a trajetória das relações mutáveis de acumulação em escala global. O objetivo central da sua proposta é entender os processos de transformação da natureza e das relações sociais em “relações sociais de extração e acumulação” em escala mundial, o que permitiria uma nova e mais abrangente conceitualização de periferia, capaz de superar o vínculo entre território e processo social e redefinindo o entendimento sobre o atual estágio de desenvolvimento desta economia-mundo (GILLS, 2016b).

Opondo-se às visões de Wallerstein e Arrighi, Fiori (2008) sugere a possibilidade de estar em curso outra fase de expansão do sistema, desta vez centrada na expansão do poder imperial americano e na resposta nacionalista que ele enseja ao redor do mundo. Para ele, a disputa entre as potências não acabou; em vez disso, intensifica-se, como demonstra o acirramento da concorrência entre as principais nações. O autor enfatiza que a ascensão da China, por exemplo, não representa um confrontamento ao poder estadunidense, mas uma relação única de complementaridade que, em diversos aspectos, beneficia o processo de expansão do poder hegemônico dos Estados Unidos. Trata-se de uma transformação estrutural de longo prazo do sistema interestatal, a qual teve início ainda nos anos 70, quando os EUA acentuaram seu processo de expansão imperial (com a guerra contra o Vietnã). A abordagem de Fiori extrapola a concepção de Wallerstein sobre a expansão econômico-geográfica da economia-mundo e isso determina sua visão sobre um sistema em expansão. O autor também atribui ao Estado nacional um peso mais significativo na expansão do sistema do que faz Wallerstein, argumentando que são eles que lutam constantemente pela conquista e manutenção do poder. Estas unidades políticas submetem as economias nacionais ao poder nacional, o que explica o processo de nacionalização da atividade econômica, mesmo no contexto de um sistema em expansão, fato que para Fiori não é incoerente, mas um fenômeno imanente à lógica expansionista. Da dinâmica estabelecida entre

os Estados nacionais pela manutenção da condição hegemônica ou, em resposta a esta, pela aquisição de poder, tanto pela paz como pela guerra, resulta a expansão do sistema (FIORI, 2008, p. 34).

Abu-Lughod (1989) questiona a crença de que o capitalismo teria dado conta de criar um sistema-mundo absolutamente inovador e coloca em xeque a necessidade de sua expansão contínua. A partir da observação de sistemas-mundo anteriores, a historiadora identificou arquiteturas estruturais comuns que lhe permitiram concluir que as condições internas da Europa, comumente atribuídas à emergência da economia-mundo europeia, não eram as únicas a habilitar a formação de um sistema-mundo; este processo poderia ter sido iniciado em um contexto não europeu, já que algumas das inovações técnicas atribuídas a este processo advieram do Oriente, mais precisamente do sistema-mundo asiático. A seu ver, nunca houve uma superioridade europeia, nem uma necessidade histórica capaz de explicar a dominação de quase todo o planeta pela Europa; em vez disso, o que houve foi a degradação do sistema-mundo asiático por razões internas e muito anteriores à ascensão europeia, o que lhe acabou por abrir um ‘espaço imperial’ (ou hegemônico).