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3.1 CICLO HEGEMÔNICO 1: PORTUGAL E PAÍSES BAIXOS (1502-1678)

3.1.2 O empreendimento colonial

Os trinta anos subsequentes ao ‘descobrimento’ caracterizaram um período pré-colonial, quando, a despeito da dominação portuguesa e a extração de produtos vegetais (pau-brasil e algodão, dentre outros3), a exploração não se dava de forma sistêmica, ou seja, não havia para este propósito o aparato político, social e cultural próprio da periferização. Tampouco se poderia observar o binômio metrópole–colônia4. Em grande parte, isso deveu à orientação mercantilista da época que considerava rentável a colônia que produzisse especiarias ou dispusesse de riqueza mineral, ambos não produzidos no Brasil (LOPEZ, 1981, p. 15-8).

Segundo Prado Jr. (1972), a colonização não fora uma finalidade portuguesa, mas uma consequência do descobrimento. Isso porque, pelo motivo inaugurado por Colombo – o controle da rota atlântica às Índias -, viu-se o governo português diante da necessidade de manter seus domínios na América, concedendo a terceiros o direito de explorá-lo. E ainda que o território tivesse permanecido sob o monopólio da coroa, o Brasil não se mostrou uma fonte muito rentável e a iniciativa malogrou. A ausência de uma fixação portuguesa aqui estimulou a aventura de outras nações por estas terras, particularmente dos franceses, que não reconheciam o Tratado de Tordesilhas e lograram estabelecer um bom relacionamento com os povos autóctones, dos quais, como os portugueses, obtinham o serviço da derrubada do pau-brasil. Foi apenas em 1530, quando a pilhagem da Índia já dava sinais de esgotamento, que Portugal decidiu povoar e explorar as novas terras, integrando-a, finalmente, ao sistema colonial (LOPEZ, 1981, p. 18-9).

Valeu-se, para tanto e a partir de 1534, do loteamento da faixa costeira em 15 lotes horizontais, as chamadas capitanias hereditárias5 que, apesar do nome, não configuravam doações da coroa portuguesa, mas concessões apenas inicialmente hereditárias. Junto com sua administração, foram oferecidos aos donatários o exercício da justiça, a participação nos impostos e a prerrogativa de conceder sesmarias (unidades agrárias internas à capitania para a exploração agrícola por terceiros), a escravização de indígenas e a fundação de vilas. Não lhes era permitido vender, repartir ou negociar as terras e a coroa manteve para si o monopólio de riquezas básicas (como o solo, a cunhagem de moedas e a cobrança de impostos), dentre outras

3 Os principais produtos de extração na fase pré-colonial foram o pau-brasil e o algodão, ambos conhecidos dos indígenas. O lucro proporcionado pela madeira, embora não tenha ultrapassado os 5% da receita portuguesa, serviu para financiar o período de pesquisas e manutenção do território (LOPEZ, 1981, p. 34; FURTADO, 1988, p. 11, 16).

4 No binômio metrópole (dominação) – colônia (dependência) a atuação de ambos é recíproca, ou seja, enquanto a primeira é dinâmica e sua atuação é ativa e determinante, a colônia é o componente passivo que aceita e imita os valores da metrópole. Ambos estão organizados para a manutenção, sobre uma base econômica, de dito binômio. Neste novo território não havia a quem ou o que dominar; tampouco os índios daqui eram dependentes de Portugal ou afetados por sua necessidade de enriquecimento (LOPEZ, 1981, p. 15-6).

ações prudentes para evitar que a descentralização administrativa evoluísse para um feudalismo. Ao cabo, o objetivo de Portugal com a colonização era integrar o Brasil diretamente ao sistema mercantil, inibindo a reprodução da economia estática, autossuficiente e fechada como era a feudal. Ante as dificuldades impostas pela grande extensão dos lotes, a falta de recursos, a distância da metrópole e o desinteresse dos donatários, por exemplo, e sem outro apoio externo que não os direitos atrelados à nomeação de donatário, a fase inicial da colonização foi medíocre, tendo dado origem a apenas duas capitanias, São Vicente e Pernambuco, onde se desenvolveu algum povoamento e prosperidade graças à cultura da cana-de-açúcar (LOPEZ, 1981, p. 27-30).

Definida por uma lei Portuguesa de 1375, mas inspirada no antigo instrumento greco- romano da enfiteuse, um tipo de contrato de arrendamento, a sesmaria legislava sobre a concessão de terras destinadas à produção agrícola compulsória. Sua criação remete a um contexto de crise econômica europeia agravada pela peste negra, responsável pela morte de milhões de pessoas em zonas urbanas e que desencadeou um importante fluxo migratório para as áreas urbanas, com o consequente desabastecimento alimentar e o despovoamento de áreas rurais6. Os objetivos da lei eram obrigar os proprietários a cultivar as terras mediante pena de expropriação; obrigar igualmente ao trabalho na agricultura todos os proprietários ou herdeiros de terras, assim como aqueles que não possuíssem bens avaliados até quinhentas libras; controlar a inflação através da fixação dos salários rurais; obrigar à criação de gado suficiente para a lavoura, fixando seu preço e proibir sua criação para outros fins; fixar preços de rendas da terra, aumentar o número de trabalhadores rurais pela compulsão de homens e mulheres em situação de mendicância, ociosos ou vadios em condições de trabalho (Lei das Sesmarias, 1375). A lei inovou pela instituição do princípio da função social da terra, autorizando a expropriação da propriedade caso a terra não fosse adequadamente aproveitada ao mesmo tempo em que funcionava como uma reforma agrária ad hoc, que de acordo com Miriam Dolhnikoff (apud NOZOE, 2006, p. 601.)7 incrementava a produtividade agrícola, fortalecia o Estado perante o poder privado, fomentava o povoamento no interior e atraia imigrantes europeus.

A lei chegou ao Brasil por extensão do instituto jurídico português e, como já referido, a distribuição de terras a sesmeiros (que aqui, diferentemente de Portugal, era o titular ou receptor da sesmaria) era uma prerrogativa dos capitães-donatários, os titulares das capitanias hereditárias.

6 De acordo com a historiadora portuguesa Virgínia Rau (1982), foram causas da promulgação desta lei: a escassez de cereais, a carência de mão de obra, o aumento de preços e salários agrícolas, a falta de gado para a lavoura, a diferença entre as rendas pedidas pelos donos da terra e os valores oferecidos pelos rendeiros e o aumento dos ociosos e vadios. Também por este motivo, Portugal não teria disposto de contingentes populacionais significativos para enviar à colônia.

7 DOLHNIKOFF, Miriam (Org.). Prefácio. In: SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 25-7.

E se em Portugal a lei convertia-se em política de povoamento e abastecimento, aqui a prioridade fora a imediata instalação da ‘plantation’ açucareira, única capaz de atrair investidores diante das dificuldades de uma terra tão distante, vasta e habitada por povos “hostis”. Por isso mesmo, a lei teve que ser implantada com adaptações, a exemplo da ampliação do caráter vitalício das doações para hereditário, ao menos incialmente, tendo o próprio Martim Afonso de Sousa concedido as primeiras sesmarias em caráter perpétuo. Também o tempo já não podia ser contado a partir da data de doação, pois era longo o período que se impunha até que as terras fossem limpas, os índios afastados e a produção efetivamente iniciada (DIAS, 1924, p. 224).

A aplicação dessa lei na colônia acarretou o surgimento de extensas propriedades territoriais e alta concentração fundiária, diante da qual se tornou comum o apossamento de terras cultiváveis por colonos. Todavia, desde a formulação deste sistema, no século XIV, já se consagrava a apropriação para o cultivo como elemento criador de direito de propriedade territorial, prerrogativa de que se teria valido Dom João, que ciente dos problemas agrários desta terra ordenou, um ano antes de retornar a Portugal, que questões que envolvessem o desalojamento de posseiros por conta da concessão de novas sesmarias fossem tratadas pela justiça comum, além de mantida a posse dos terrenos aos suplicantes enquanto tramitassem os embargos (NOZOE, 2006, p. 596). Aos homens “sem qualidade” (lavradores, analfabetos e sem influência política sobre o governo-geral) convinha apossar-se de faixas de terras entre os limites das grandes propriedades ou mesmo a migração para zonas distantes dos núcleos de povoamento, em busca de terras que, “de tão remotas, ao senhor de fazendas lhe não valia ainda a pena requerer de sesmaria” (LIMA, 1988, p. 47). Segundo Petrone (1982), na falta de oposição das autoridades prevaleceram duas situações díspares: as posses se davam em áreas da fronteira econômica, algumas sujeitas a invasões dos índios, e as sesmarias eram estabelecidas em zonas populosas com organização administrativa, social e econômica delineada. A tolerância dos governantes e das camadas superiores diante da apropriação informal deveu-se, sobretudo, a sua compatibilidade com o modelo de colonização vigente, uma vez que viabilizava a abertura de áreas pioneiras a custo reduzido e a drenagem da população indesejável para a fronteira, onde poderiam dedicar-se à cultura de mantimentos e à criação de gado, porcos ou aves, gêneros consumidos em regiões mais densamente povoadas e com estrutura econômica organizada para o atendimento do mercado externo. Costa (1995, p. 7) acrescentou que, a despeito da posse e da propriedade legal da terra ser altamente seletiva, elitista e restritiva, a população logrou acesso à terra de formas variadas, como pela cessão graciosa, o aluguel e o aforamento, as quais deram origem a figuras como moradores, agregados, rendeiros e lavradores modestos ─ também conhecidos como obrigados ─ que “fizeram com que o usufruto da terra não se marcasse pela

excludência, mas, antes, por certa ‘permissividade’”. Tal a tolerância mostrava-se funcional, pois permitia a abertura e preparação de novas terras, sobre as quais logo “choviam cartas de sesmarias” (LIMA SOBRINHO, 1946, p. 134).

Este “punhado de grandes propriedades, dominadas por senhores com muitos escravos” (LOPEZ, 1981, p. 31) foi, portanto, a base da economia colonial e um arranjo socioeconômico determinante dos desdobramentos históricos no ‘novo’ território. A legitimação desta configuração contou com o apoio das missões jesuítas, responsáveis por estabelecer os laços de dependência cultural com o velho mundo ao introduzir a catequese e assumir para si o ensino, de caráter elitizante e incapaz de fomentar qualquer crítica ao sistema latifundiário e escravista da época (LOPEZ, 1981, p. 59).

Em 1549, quando já agonizava o comércio com a Índia, Portugal voltou-se de forma mais determinada ao Brasil na esperança de que o açúcar e, possivelmente, alguma riqueza metálica, dessem solução ao problema colonizatório que aqui se colocou. O envio de um governador-geral visou a dar apoio às capitanias, sobrepondo a estas, gradualmente, sua autoridade e os interessas da metrópole. A chegada do Marquês do Pombal, no século XVIII, marcou a ascensão do Brasil ao status de vice-reino e os primeiros esboços de poder público no Brasil. O sistema de capitanias hereditárias foi substituído por um de capitanias reais (tuteladas diretamente pelo rei), aprofundando a exploração sistemática da colônia, ao que se seguiu a transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, afastando-a do controle político de grupos jesuítas e aproximando-a do Sudeste, onde se desenvolvia uma atividade econômica ainda mais promissora: a mineração (SODRÉ, 1988).

Assim, a etapa colonial brasileira, no contexto da expansão do capitalismo mercantil, foi marcada por dois ciclos econômicos e três mercadorias essenciais: a cana de açúcar e o escravo africano, cujas funções são apresentadas a seguir, e o ouro, abordado de forma transversal em diferentes subcapítulos, conforme sua relevância para cada período.