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4 A INSPIRAÇÃO CIRENAICA E EPICURISTA: GENEALOGIAS DA ÉTICA

5.4 Ética das afinidades eletivas: os círculos éticos

5.4.2 A amizade

Sem retomar o que já foi dito sobre a amizade na seção dedicada a Epicuro digamos, à guisa de complemento, que somente a amizade verdadeira, vale dizer, aquela e única relação ética que podemos definir como “a mais fina e mais sublime” (ONFRAY, 1995, p. 173) entre todas permite, com segurança, complementar o eu como uma identidade firme e imune às corruptelas dos jogos sociais. Paradoxalmente, é com dois (supondo uma relação de amizade entre dois indivíduos) que melhor se faz um. A razão disso é que na amizade protegemos a individualidade do outro simultaneamente à sua afirmação integral porquanto, no que se refere ao amigo, o queremos tal como ele é, não de outro modo. Os amigos são, assim, seres que se complementam, pois é papel do amigo contribuir para essa identidade outra compartilhando-a com a sua própria numa relação baseada na afinidade máxima, na semelhança de caráter, até mesmo no princípio de irmandade. Apenas na presença de um amigo somos nós mesmos, podemos ser nós mesmos, ao natural, tal como o somos na solidão porque, como disse Francis Bacon em seus Ensaios, “um amigo é outro eu; pois um amigo é muito mais que outro” (BACON, 2007, p. 92). Eis porque na prática da verdadeira amizade nos tornamos, com o outro, uno.

A amizade é a sociabilidade mínima em quantidade, porém máxima em qualidade. Ela é uma relação de caráter nobre que se basta a si mesma e que serve de proteção aos amigos contra a gregariedade exagerada e vulgar a qual, graças a ela, podem com segurança prescindir. Por isso Georges Palante exaltou a amizade como um “princípio de individualização” e de “aristocratização” que se “opõe à sociabilidade cujas tendências vão do conformismo e do nivelamento, à estagnação das inteligências” (PALANTE, 1995, p. 75-76). Nesse sentido, a amizade é uma potência “aristocrática e associal” (ONFRAY, 1995, p. 173) que nos blinda contra os males exteriores. Assim, “na relação com o mundo”, ela “é provedora de uma força que isola do resto da humanidade” (Ibid.). Essa proteção contra as relações superficiais possibilita, por outro lado, o cultivo aprofundado da mais perfeita das

relações humanas, aquela que é responsável pelo complemento do nosso ser. A amizade é, nesse sentido, um fim em si mesmo. Somente ela torna possível a mais livre manifestação da “singularidade de cada um” na medida em que “autoriza, na escultura de si, o recurso ao outro como a um espelho que se pode interrogar sem risco de obter um reflexo infiel” (ONFRAY, 1995, p. 173-174). Essa transparência total entre dois indivíduos faz da fidelidade mútua a principal característica da amizade.

Tal fidelidade está associada diretamente à expressão maior de uma livre escolha, algo que faz com que a relação entre amigos supere todas as demais ligações com outrem em seu conjunto. Nesse sentido, ela se diferencia completamente das relações sociais obrigadas, inclusive das mais importantes dentre elas, como as que se dão entre pais e filhos. Realmente, aqui não existe escolha possível quanto às idiossincrasias do outro nem livre arbítrio de nossa parte. Não se escolhe os filhos nem os pais que se tem. Ambos nos são dados pela natureza por obra do acaso e seu vínculo de amor se dá de forma muito natural e instintiva, mas também, quando a natureza não basta para garanti-lo, o vínculo encontra sua proteção na forma da lei, esse garantidor último das obrigações mínimas entre os parentes consanguíneos tais como são exigidas pela sociedade civilizada. De todo modo, trata-se de uma relação obrigada. Por outro lado, como afirma Montaigne, a quem pertence o exemplo que acabamos de apresentar, “nosso livre arbítrio não tem manifestação que seja mais verdadeiramente sua do que a da afeição e amizade” (MONTAIGNE, I, 28, p. 277), já que apenas na amizade ocorre um dos fenômenos mais raros entre os indivíduos: a “concordância das vontades” (Ibid., p. 278), algo difícil de ocorrer mesmo entre irmãos consanguíneos. Aliás, questiona Montaigne, por que encontraríamos necessariamente nestes últimos “a correspondência e afinidade” próprias das “amizades perfeitas?” (Ibid., p. 277). E aqui o autor dos Ensaios se refere a uma amizade de tipo único, tal como a que ele mesmo encontrou na pessoa de Étienne de La Boétie, a quem considerava seu verdadeiro irmão: “O nome irmão é um nome belo e cheio de dileção, e por esse motivo nós dois, ele e eu, usamo-lo em nossa aliança” (Ibid., p. 276).

Uma amizade assim é ainda mais especial por preservar e complementar, como dissemos, a individualidade dos envolvidos. Em vez de exigir sacrifícios identitários – e todas as demais relações sociais fazem essa exigência – em qualquer nível que seja, por vezes até à anulação do indivíduo, a amizade de que Michel Onfray faz o elogio é, pelo contrário, condição sine qua non para uma individualidade filosoficamente bem formada. E por que é assim? Ora, pela simples razão de que, como ensina o epicurismo, não existe vida filosófica sem amizade. Nesse sentido, “o propósito do amigo” aparece sobretudo como “a colaboração

de si e do outro sob a forma concluída e acabada de uma bela individualidade, de uma singularidade completa” (ONFRAY, 1995, p. 174). Por isso que, ressalta Onfray, na relação de amizade, e apenas nela, “o solipsismo” inevitável a cada um se encontra o mais longe possível, “quase esquecido” (Ibid.): é que no amigo encontramos, como diz Bacon depois de Montaigne, “um outro eu”, ou seja, um igual, ainda que na diferença, e talvez até mesmo devido a ela, já que se trata de uma diferença muito especial. Ora, essa diferença pertencente ao outro que é nosso amigo é precisamente aquilo mesmo que não somos, que não temos, mas que no entanto carecemos de ser e de ter e que, se tivermos sorte, encontramos na amizade, essa forma sublime que todo homem e toda mulher bem-aventurados têm de complementar seu ser fadado pela natureza à incompletude. Não é por acaso que a amizade, quando aparece, aparece justamente como um grande alento para o grau de vazio existencial que cada um comporta em si.

É essa complementaridade proporcionada pelo amigo que nos autoriza e nos impele, em troca, a uma entrega total de nosso ser ao outro. Aliás, Onfray lembra que a etimologia da palavra já indica “o quanto o amigo se define pela privação de si, pela renúncia de uma parte de si em prol do outro entendido como esse fragmento nosso que agora nos falta” (Ibid.). Ou seja, há privação de si porque há, na verdade, complemento de si, razão pela qual a amizade é um “sentimento individualista” e, por isso mesmo, “um sentimento eletivo e aristocrático” (PALANTE, 1995, p. 74). Uma vez que verdadeiros amigos se encontram numa instância relacional muito superior a todas as outras relações as quais, por sua vez, são indispensáveis à estrutura social, eles podem se dar à liberdade de delas prescindirem e, assim, se colocarem à margem da sociedade e de suas normas estritas. De fato, a amizade dispensa as regras e as leis instauradas e dá de ombros às instituições Trabalho, Família, Pátria, Estado e Nação. É que amigos são amigos antes, depois e a despeito de seus status de cidadãos integrados e de seus papeis para com a sociedade, daí a “radical força atômica” e o “caráter associal” (ONFRAY, 1995, p. 175) da amizade. Não é por acaso que as instituições sociais desconfiam dos amigos:

Podemos dizer que as sociedades organizadas (...) veem com um olhar ciumento e suspeitam mais ou menos abertamente de tais sentimentos, precisamente porque eles são particularistas, eletivos, individuais. (...) A sociedade sempre teve uma tendência a regulamentar o amor e a monitorar a amizade. O espírito social ou gregário não tolera as afeições particulares, exceto na medida em que lhe estão subordinadas. Parece-lhe que o indivíduo rouba algo da sociedade quando encontra sua força e sua alegria em um sentimento que foge à regulamentação. Parece-lhe que existe um egoísmo condenável, um assalto feito à sociedade (PALANTE, 1995, p. 76-77).

Não obstante todas essas considerações emblemáticas que fazem da amizade a mais perfeita das relações humanas, Onfray não a vê como um absoluto, ou seja, como uma união inabalável entre dois seres. Para ele, também a amizade não é uma ligação rigorosamente estável, pura e totalmente imune à entropia. O nosso autor não faz nenhuma concessão ao idealismo, por mínima que seja, visto que sua concepção ética evoca o dinamismo de forças incessantemente atuantes e constantemente empregadas, portanto passíveis de produzirem efeitos diferentes em situações distintas. Para Onfray, não existe Amizade em si, “mas somente provas de amizade, todas dadas nos instantes, nos momentos” (ONFRAY, 1995, p. 176) precisos de um tempo espaçado tal como ela exige. Por isso a amizade nunca está pronta, mas em contínua construção, tal como os indivíduos que ela envolve em seus enlevos, eles próprios sempre tornando-se o que são. Exercício, pois, incessante, a amizade só pode ser concebida como uma sublimação prática, nunca teórica. Não se deve idealizar a amizade. Para que ela seja, é preciso vivê-la e praticá-la porquanto ela não se sustenta por si mesma, como uma entidade conceitual autônoma. Palavras, atos, gestos e tudo o que se pode conceber sob a ideia de “provas de amizade” não cessam assim de lhe conferir forma e força no transcorrer do tempo, tempo que, a seu respeito, “é um fator de embelezamento” (Ibid.) uma vez que o tempo transcorrido é a própria expressão, quase por si só, do vigor virtuoso que une os amigos. Não é por acaso que a autoridade do tempo costuma ser solicitada quando as pessoas querem demonstrar a força de seus vínculos de amizade.

Em contrapartida, os tempos modernos, tais como o gênio chapliniano retratou no cinema, não veem com bons olhos uma relação tão subversiva da ordem social e por isso tudo fazem para inviabilizá-la. Trabalho, família, ausência de ócio e os mais diversos compromissos ditos sociais são impedimentos poderosos para a prática viva da amizade tanto quanto para o cultivo de si. O humano unidimensional caro ao mercado e à moral social não tem amigos verdadeiros, apenas parentes, conhecidos ocasionais e colegas eventuais. Desde Montaigne (portanto, desde o início da modernidade) “o que costumamos chamar de amigos e amizades são apenas contactos e convivências entabuladas devido a alguma circunstância ou conveniência por meio da qual” (MONTAIGNE, I, 28, p. 281) almas estranhas umas às outras são obrigadas a se manterem juntas e estabelecerem relação. Em consequência, a amizade não é sinônimo de coleguismo, companheirismo ou camaradagem, e é por isso que “raramente ela suporta o distanciamento”, o “silêncio” ou “a falta de tempo” (ONFRAY, 1995, p. 176), desculpa perene que serve para justificar todas as acomodações sociais que sinalizam a consolidação da alienação. A amizade, no entanto, “perece de negligência e de ausência de razão de ser”, escreve Onfray, sublinhando, em conclusão, que ela “não é um sentimento

etéreo sem relação com suas condições de exercício” (Ibid.). Eis mais um pensamento herdado diretamente do epicurismo, tradição filosófica dada a praticar tudo aquilo que teoriza. Se nas demais formas de relações humanas a prudência recomenda reserva, discrição, fala contida, ação comedida, salvaguarda de si, intimidade e identidade confundidas nessa proteção, na amizade, como foi dito, podemos nos revelar por inteiro ao outro como a nós mesmos nos revelamos. Isso é permitido porque na figura do amigo nos deparamos com o nosso confidente, algo que nos faz perceber o quanto encontrar um amigo é também, e sobretudo, encontrar um ponto de equilíbrio na condução da nossa existência. Com efeito, a amizade é responsável por “restaurar os equilíbrios interiores” (Ibid., p. 177) do indivíduo, afirma Onfray, escrevendo aqui sob a inspiração de Francis Bacon:

De algum modo, ela é uma ciência singular, uma arte termodinâmica. Os prazeres e as dores que ameaçariam estragar a alma são assim desativados pela partilha, pela confidência. Daí a extrema modernidade das análises de Francis Bacon que define a amizade como um sentimento aparentado a

confissão auricular, de onde ela procede (Ibid.).

Epicuro disse que “toda amizade deve ser buscada por si mesma, mas origina-se de seus benefícios” (EPICURO, 2014, 23, p. 30) terapêuticos, algo que também fora apontado por Sêneca: “Lucílio, meu excelente amigo, nada ajuda tanto um doente a recuperar como a afeição dos amigos, nada é mais eficaz para afastar de nós a expectativa e o medo da morte” (SÉNECA, 2018, 78, p. 329). Francis Bacon, por sua vez, escreve belamente que o principal benefício que a amizade nos proporciona é a reconfiguração de nossos medos e angústias mediante o “desabafo pleno dos tormentos do coração” (BACON, 2007, p. 88). O amigo é aquele “a quem você pode manifestar pesares, alegrias, medos, esperanças, suspeitas, deliberações, e o que estiver no coração a oprimi-lo, em um tipo de absolvição ou confissão” (Ibid.). Essa definição da amizade reforça sua extrema raridade. A bem dizer, são mesmo raros os indivíduos que encontram alguém a quem possam se entregar confidentemente sem reservas numa relação de total cumplicidade ao ponto de extrair disso grandes benefícios para as suas vidas.

Encontrar um amigo, dizíamos, é ter a sorte de encontrar um outro eu, um eu que nos completa e graças ao qual podemos ser mais humanos. Ninguém expressou melhor essa bela ideia do que Montaigne: “Na amizade de que falo”, escreve o mestre por trás dos Ensaios, as almas “se mesclam e se confundem uma na outra, numa fusão tão total que apagam e não mais encontram a costura que os uniu” (MONTAIGNE, I, 28, p. 281). Manifestação maior de uma relação por afinidade, amar um amigo é como amar a si mesmo, assim como proteger um

amigo é proteger a si próprio. Por isso Montaigne conclui dizendo que, se lhe pressionassem a responder por que ele amava tanto Étienne de La Boétie, a resposta mais sincera que poderia dar seria esta: “Porque era ele; porque era eu” (Ibid.), simples assim! Só muito raramente alguém tem acesso a esse tipo de felicidade.

Por fim, é preciso dizer que o amigo tem uma função claramente hedonista em nossas vidas, pois ele possibilita uma alegria ampliada no sentido espinosiano da expressão na medida em que faz oscilar para cima nossa força de ação no mundo. Ou seja, o amigo nos proporciona conatus, isto é, potência de existir. No registro baconiano, Onfray escreve que a amizade é “a arte de amenizar as dores e pulverizar” as tormentas (ONFRAY, 1995, p. 177) existenciais. Nesse sentido, ela possui também uma “natureza catártica” e, como tal, “ajuda a viver instaurando o equilíbrio, a paz interior, a ordem dentro de uma alma onde o desequilíbrio” e a “guerra contra si mesmo” (Ibid.) ameaçam destruir o ser. No campo hedonista, continua ele, “a amizade é princípio de harmonia pelo qual, ao realizar a partilha dos afetos, aumentam-se as alegrias e diminuem as dores do amado, assim como as suas próprias” (Ibid.). Ora, segundo o princípio epicurista, “a amenização da aflição induz imediatamente o aumento de prazer” (Ibid.), por conseguinte, promove uma intensificação da vida. Assim, com seu equilíbrio restaurado ou conquistado, com sua vitalidade renovada ou fortificada, o indivíduo se apodera das condições de possibilidade para viver experiências estéticas concernentes exclusivamente a si, a seu corpo e à matéria de que a natureza é feita, porém partilháveis com seu quase duplo, o amigo.