• Nenhum resultado encontrado

Prazeres cinéticos e catastemáticos

4 A INSPIRAÇÃO CIRENAICA E EPICURISTA: GENEALOGIAS DA ÉTICA

4.2 Epicuro de Samos

4.2.4 Prazeres cinéticos e catastemáticos

“Ler os filósofos”, “comentá-los”, “partilhar ou confrontar” seus “pontos de vista”... Sendo assim, dando então continuidade aos prazeres desta ordem convém retornarmos a um tema importante com o intuito de rematá-lo, a saber: a diferença efetiva, em potencial ou aparente entre as teorias hedonistas de Aristipo e Epicuro. Lembremos, seguindo Onfray, a divergência tal como ela é tradicionalmente apresentada:

De um lado, Epicuro e sua ataraxia: ausência de perturbações, falta de sofrimento, de dor, negação da negação62 – em termo técnico, aponia; de

62

Em artigo sobre os cirenaicos e Epicuro o professor Markus Figueira afirma não existir, em Epicuro, esse “estado negativo” atribuído à dor, pois esta “é afirmada como um acontecimento natural” (SILVA, 2017, p. 88), portanto positivo, o que é, evidentemente, correto. Acrescentaríamos a isso o seguinte: nada parece ser mais positivo no epicurismo do que a dor em razão de o próprio prazer ser definido como sua simples ausência. Ou seja, basta que o mal deixe de se manifestar para que o bem comece a surgir, proporcionalmente. O bem é então a ausência de um mal que se manifesta substancialmente, isto é, positivamente. Contudo, há uma negatividade que se pode legitimamente atribuir à dor no âmbito do pensamento epicurista, desde que aplicável do ponto de vista qualitativo e sob a perspectiva da lógica que rege toda escolha e toda rejeição. Assim, a dor é um mal,

outro, Aristipo e seu gozo permanente, sem limite, ativo, voluntário. Um prazer negativamente definido no Jardim: não sofrer, não temer, não faltar, não padecer; um prazer positivamente buscado em Cirene: a alegria, o júbilo, o contentamento ativos e militantes, expansivos, demonstrativos. Os pãezinhos e a água do primeiro, o perfume caro do outro, o hedonismo ascético epicurista contra o hedonismo jubiloso cirenaico (Ibid., p. 203).

Eis a oposição clássica entre ambos os pensadores. No tópico sobre Aristipo abordamos essa problemática precisamente a partir desse modelo interpretativo e, como vimos, o próprio Onfray endossou, em letras claras e fortes, essa distinção que se tornou canônica. Aqui, em As sabedorias antigas, ele rever significativamente essa leitura e se volta contra a tradição que outrora contou, neste ponto, com sua contribuição. Menos mal, pois não deixa de ser interessante, para o pesquisador, poder constatar o movimento de um pensamento, a dinâmica de uma leitura e as revisões a que um autor submete sua interpretação. Antes isso do que a inflexibilidade dogmática que impede qualquer avanço teórico.

Pois bem, além dos vários fragmentos dos dois filósofos hedonistas colaborarem para essa leitura, a oposição clássica entre ambos se deve especialmente a Diógenes Laércio que no Livro X de suas Vidas e doutrinas reserva os passos 136 a 137 especialmente para marcar as diferenças doutrinais entre Epicuro e Aristipo (DL, 2014, X, p. 314-315) – assim, quanto aos prazeres, Aristipo admite apenas o gozo em movimento, ao passo que Epicuro “admite ambos, quer os da alma” (o prazer estático), “quer os corpo” (o prazer em movimento) (Ibid., X, 136, p. 314), mas prefere aqueles a estes (Ibid., X, 131, p. 313). De fato, a divergência se impõe na maior parte do tempo quando se confronta o arsenal de fragmentos, máximas, ditos e anedotas disponíveis. Michel Onfray, no entanto, relativiza um pouco essa leitura e sugere que há convergências em geral ignoradas porquanto, como vimos seção anterior, também Aristipo pensa a evitação do sofrimento e não é o imprudente teimoso incapaz de projetar uma ação ética para além do puro instante do momento presente (ONFRAY, 2008, p. 204). Do mesmo modo Onfray observa que há um “dinamismo hedonista em Epicuro” em razão de que, compreende-se, o mestre do Jardim não poderia se contentar tão só e exclusivamente com o prazer em repouso ou em cultivar o mal menor hoje na expectativa de obter um bem maior amanhã ou em um futuro ainda mais distante. Aristipo não podia escapar a certa dimensão do pensamento projetivo e Epicuro, por sua vez, jamais desprezaria a importância

portanto é negativo, eticamente falando. O prazer, por outro lado, é um bem, logo é bom, ou seja, é positivamente querido e buscado ainda que fenomenicamente seja definido de forma negativa. Por outro lado, da perspectiva ontológica, empírica e científica, ou seja, na condição de fenômenos naturais que afetam o estado do organismo, tanto o prazer como a dor se manifestam sempre positivamente.

de colher o prazer do momento presente, “pois o filósofo asceta frágil e doentio” também soube rejubilar-se “com prazeres instantâneos”, aqueles da ordem do dia, a saber: “A doçura, a amizade, a conversação, a filosofia praticada, a alegria, o contentamento que são prazeres em movimento” (Ibid.), ainda que na prática epicurista se trate de um movimento bem mais calmo se comparado à cinética cirenaica.

No que concerne a Aristipo, se colher os frutos do instante presente lhe bastasse, como seria possível justificar a existência de todo um “arsenal soteriológico” existente em sua obra? Mesmo despedaçadas, as lições de sabedoria existem no corpus cirenaico (Ibid., p. 205) e toda a preocupação de Aristipo com a cultura, com a educação, com a prática filosófica visando a manutenção de sua autonomia e liberdade (liberdade que, como vimos, ele valoriza acima de tudo) demonstra que ele “levava em consideração o porvir e o futuro – ao contrário do animal, incapaz de se desprender do instante, com o qual tantas vezes” Aristipo foi injustamente comparado (Ibid.). Daí que a diferença entre prazeres cinéticos e catastemáticos não pode ser tão rigidamente interpretada ao ponto de concluir por dois mundos incompatíveis entre si. Para Onfray, o que em teoria Epicuro e Aristipo afirmam representa “menos duas concepções opostas do que duas variações sobre o mesmo tema” (Ibid., p. 204). Assim como hedonismo e eudemonismo constituem mais um continuum de uma mesma natureza do que duas realidades distintas, do mesmo modo a problemática que envolve os prazeres ditos em repouso e os júbilos dinâmicos expõe muito mais uma série de variações sobre um mesmo tom. Isso não significa dizer que diferenças não existam, mas sim que elas não são tão radicais como se pintam porque, na prática, aquele que “conhece a cinética do júbilo” não está preso a esta dimensão do gozo e, portanto, não está alheio e indiferente às delícias ligadas ao gozo “de um tipo de ataraxia ou de aponia” (Ibid.). Para Onfray, a oposição efetiva entre Epicuro e Aristipo, como não poderia deixar de ser, reside bem mais entre “dois temperamentos” do que “entre duas concepções” do prazer “radicalmente antinômicas” (Ibid.).

Foi o que assinalamos no início desta seção, quando afirmamos que o hedonismo de Epicuro não poderia ser o mesmo que aquele praticado por Aristipo: ambos expressam as exigências de duas fisiologias distintas; dois corpos atomicamente organizados de maneira única, com especificidades próprias; dois contextos históricos diferentes, logo dois seres irredutíveis cujos corpos produzem temperamentos únicos, um para cada tipo de filosofia hedonista. Não obstante, é ainda da filosofia que se fala, e mais ainda do prazer, mas de prazeres cultivados em diferentes graus de intensidades que, vez ou outra, parecem convergir para um ponto comum, seja para a ataraxia e o repouso, seja para a dinâmica e o movimento –

com a diferença, sempre determinante, que maiores doses de moderação são mais exigidas por um corpo do que por outro.