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Mas voltemos a um ponto de interesse central o qual foi apenas aludido no tópico anterior, mas não devidamente desenvolvido, a saber, a distinção conceitual entre hedonismo e eudemonismo, ou, por outras palavras, a diferença filosófica entre as noções de prazer e de felicidade. Eis aqui um jogo de definições um tanto problemático com o qual nos deparamos frequentemente. Com efeito, a consulta de qualquer bom dicionário ou manual de filosofia irá oferecer definições distintas para cada um desses termos. Assim, do lado do hedonismo temos o prazer concebido como o bem a que todo homem e cada mulher deve buscar como ideal motivador da conduta ética. Já o eudemonismo, por sua vez, diz respeito à ideia de felicidade entendida como sinônimo de bem-estar e serenidade, objetivos a que deve visar a ação moral virtuosa. As duas expressões pertencem ao vocabulário filosófico e possuem significados próprios e independentes, de modo que o prazer e a felicidade parecem realmente não dar conta, indistintamente, das “mesmas situações”, “emoções” e estados “físicos e psíquicos” (ONFRAY, 2008, p. 45): à palavra prazer imediatamente ligamos os sentidos a um estado de satisfação do corpo em relação a um desejo ou à causa de determinada sensação prazerosa; à felicidade associamos o estado de espírito de quem se encontra tranquilo, imperturbável, sereno e em paz consigo mesmo. Pode-se ainda dizer que está feliz quem se encontra alegre ou contente, porém costuma-se dissociar dessa condição o sentimento de prazer.

Não obstante, Michel Onfray vê o prazer e a felicidade menos como dois mundos conceituais distintos ou como dois estados do corpo separados e independentes um do outro do que como duas formas de expressar uma única e mesma realidade (Ibid.). De fato, como pensar num estado de felicidade que exclua o prazer ligado à satisfação mesma de estar feliz? É difícil dissociar uma coisa da outra e, observa Onfray, uma tal distinção implica em incongruência. Se determinados tipos ou fontes de prazeres podem gerar sofrimento após sua fruição (o consumo ou o abuso de certas drogas, por exemplo), e se nesse caso pode-se apontar uma separação entre prazer e felicidade, por outro lado é difícil ascender a esta sem aquele. Certos prazeres, se bem fruídos, conduzem diretamente à felicidade e à serenidade como que por uma porta de entrada principal que seria difícil acessar sem as chaves do júbilo. Nesse sentido podemos afirmar que a felicidade não é senão um prazer mais ameno e mais duradouro, pois a verdadeira diferença entre o prazer e a felicidade encontra-se mais na ordem dos graus de intensidade do que numa suposta natureza exclusiva e inerente a cada um desses estados de espírito. Ou seja, entre ambos temos mais uma gradação harmônica composta com picos mais extremos aqui e ali do que dois mundos independentes ou mesmo, como querem alguns, incompatíveis entre si.

Esses picos de oscilação, todavia, são mais que do suficientes para marcar diferenças significativas da experiência que envolve ambos os sentimentos. Com efeito, Onfray define o prazer como “uma sensação bastante violenta para que provoque um curto-circuito da consciência”, quer dizer, “no momento do gozo, há apenas ele e não há lugar para a razão, a inteligência ou o trabalho intelectual útil para saber que se vive nesse momento emocional específico” (Ibid., p. 46). Significa afirmar que, em virtude de sua intensidade máxima, o prazer se apodera do “sujeito emocionado” (Ibid.), pois a força de certos prazeres é de tal ordem que a consciência é anulada por um breve instante (Ibid.). Nesse gozo puro vive-se a experiência de ser dominado pela força hedonística da natureza. De certo modo e em certos casos, experimenta-se uma inconsciência resultante da consciência alterada de que Baudelaire dá um testemunho poético em Paraísos artificiais. Todavia, não deixa de ser perigoso brincar nos arredores desse abismo. Daí a necessidade de um trabalho seletivo da razão sobre os tipos e as fontes dos gozos antes de entregar o organismo a uma fruição muito aguda visto que, durante esta, não será possível qualquer escolha, e depois será, certamente, tarde demais. Como escreve D’Holbach, “os prazeres mais vivos são comumente os menos duradouros”, no entanto são os que “produzem as comoções mais violentas no organismo humano; de onde se segue que um homem sábio deve ser econômico com eles, visando à sua própria conservação” (HOLBACH, 2014, p. 17).

Quanto à felicidade, esta se encontra, explica Onfray, “a montante ou a jusante”, ou seja, “antes do prazer esperado ou depois daquele que se teve” (ONFRAY, 2008, p. 46), mas sempre a ele ligado. A diferença está em que ela, a felicidade, deve sua manifestação emocional à consciência, isto é, ao fato de que toda felicidade é um estado psicológico originário de um reconhecimento lúcido e soberano de si mesma. Quer dizer, todo indivíduo feliz não tem dúvida de que o é e que assim se encontra – ainda que, como vimos na crítica ao consumismo fomentado pelo capitalismo, exista uma perversão eudemonista, vale dizer, a felicidade ilusória e enganosa a qual muitos se entregam. “O estado de felicidade”, observa o nosso autor, é naturalmente “menos violento que o de prazer” em virtude de invocar “a doçura, a paz, a serenidade, a calma aferentes às certezas de que um contentamento alegre ocorrerá ou acaba de ocorrer” (Ibid.). A felicidade é, assim, dependente da mais vívida lembrança de um prazer fruído recentemente e cuja satisfação, ainda quente no corpo, se faz sentir na forma de um estado físico e psicológico pleno de uma alegria serena. De modo

semelhante, a expectativa segura e certa de estar prestes a viver um momento prazeroso já produz a tão desejada eudaimonia.40

“Com a felicidade”, escreve Onfray, o corpo parece conhecer “arroubos mais voluptuosos do que com o prazer, gerador de forças mais terríveis, de energias aumentadas e consideráveis” (Ibid.). A volúpia é, então, um movimento bem mais calmo e, como tal, permite a plena consciência de que se vive um estado de felicidade em ato. O prazer, por seu turno, é um movimento rápido, forte e pode ser intenso o suficiente ao ponto de dominar todo o corpo, sobretudo sua parte consciente. Nisso reside a diferença substancial: a intensidade forte e inconsciente, porém breve, de um (o prazer); e a serenidade duradoura e consciente de se encontrar em mar calmo e tranquilo, por certo, mas também de vir a viver novas e intensas aventuras hedonísticas mais à frente no tempo (a felicidade). Apesar dessa distinção, estamos, ainda assim, tratando da dinâmica própria de fenômenos emocionais que compartilham a mesma natureza, razão pela qual Onfray considera um erro pensar “o hedonismo e o eudemonismo como dois mundos separados” (Ibid.). Sobre isso, ele afirma não existir “nenhum instrumento de medida física ou metafísica” que permita “qualificar” ou “quantificar as intensidades úteis para decidir” (Ibid.) a seguinte questão: qual deles, o prazer ou a felicidade, desempenha o papel preponderante sobre o indivíduo? (Ibid.).

Contudo, uma preocupação maior com a ideia de prazer se impõe em razão de o prazer, apartado da noção de felicidade, ter sido historicamente estigmatizado, censurado e condenado por mais de mil anos de dominação cristã sobre os corpos. De fato, o cristianismo associou o corpo e o prazer à animalidade terrena tanto quanto a um pecado a ser combatido em nome da alma celestial. Por estar diretamente ligado à carne, o prazer se tornou o pecado por excelência. Onfray afirma que esse delírio colaborou “singularmente para diabolizar” o prazer, “torná-lo inaudível, carregado de miasmas e odorizado pelos gazes pútridos do inferno católico” (Ibid.). A campanha difamatória cristã foi reforçada pela associação dos prazeres aos instintos mais animalescos quando, na verdade, “nenhum hedonista jamais propôs como ideal os plenos poderes dos instintos, das pulsões, das forças noturnas que assemelham o homem ao mais selvagem, ao mais brutal animal” (Ibid., p. 46-47). O cristianismo, enquanto deturpa por séculos a fio a noção de prazer não deixa, por outro lado, de celebrar a ideia de felicidade sob a roupagem teológica da bem-aventurança, da glória ligada à felicidade eterna desfrutada num paraíso fictício após uma vida de agonia e sofrimento passageiros nesta Terra bem real. Enquanto o filósofo hedonista vê o prazer e a felicidade como afetos e sentimentos

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interdependentes, o cristianismo separa radicalmente essas duas instâncias e faz a vida feliz depender da dor de existir.

Essa contaminação cristã, todavia, não atinge o hedonismo professado por Michel Onfray porque ele se inspira em um tempo pré-cristão, mas precisamente no helenismo grego, para poder pensar uma ética do prazer digna do nome. É da ética grega, portanto, que ele parte e esta é, essencialmente, uma ética eudemonista. Ocorre, porém, que eleger a felicidade como meta nos aproxima igualmente do prazer, e é nesta aproximação que Onfray insiste em As sabedorias antigas, obra na qual inicia sua história da filosofia na perspectiva do hedonismo e onde lemos a seguinte ideia: a de que “a ética grega é” essencialmente “eudemonista”, pois

sejam quais forem as escolas, elas convidam o homem que pratica a filosofia a se desvencilhar do que impede sua felicidade, a trabalhar seus desejos para rarefazê-los e torná-los inofensivos, a se desfazer de todas as amarras que dificultam e até impossibilitam um trabalho de purificação de si mesmo. O propósito é a autonomia, a independência, a ausência de sofrimento, de problemas, a existência feliz e a vida filosófica [grifo nosso] que a permita. Os exercícios espirituais, as reflexões, os diálogos, as meditações, as relações de mestre com discípulo, tudo isso visa a construção de uma subjetividade radiosa, solar, independente e livre. E da fabricação dessa individualidade nasce um prazer, o prazer obtido consigo mesmo. O

eudemonismo, então, possibilita o hedonismo [grifo nosso] – definido pela

capacidade de desfrutar de si como um ser em paz consigo mesmo, com o mundo e com os outros (Ibid., p. 47).

Onfray fala aqui de um prazer que emerge da felicidade inerente a uma arte de viver e de saber desfrutar de si enquanto individualidade bem constituída, algo que remete à temática do sábio que se basta a si mesmo e que é uma constante na ética filosófica antiga. Contudo, não se trata apenas de uma questão de parentesco: o eudemonismo, aponta ele, é condição de possibilidade para o hedonismo, assim como o inverso é ainda mais verdadeiro visto que o filósofo hedonista deseja, precisamente, que o conjunto de seus prazeres potencialize sua vida e a dinamize movimentando-a, porém num grau maior do que poderia admitir um eudemonista de profissão convencido de que a calmaria ataráxica lhe é suficiente. É assim entre os estoicos, por exemplo. No entanto, mesmo os mestres da ética da virtude austera desfrutam, em qualquer grau que seja, do prazer contra o qual estão sempre armados, pois o momento mesmo em que se realiza sua ação virtuosa é gerador de um inegável júbilo – lembremos aqui a sentença de Montaigne já mencionada: “Na própria virtude o fim último a

que visamos”, consciente ou inconscientemente, “é a volúpia” (MONTAIGNE, 2002, I, 20, p. 120).41

No campo do hedonismo, essa volúpia é assumida e requerida pois aqui o filósofo, seja ele de tendência cirenaica ou oriundo da escola epicurista, deseja que suas lembranças sejam boas e estejam ligadas a experiências de fruição dos prazeres certos e na intensidade conveniente à manutenção de sua alma serena e imperturbável. A ataraxia está assim presente em ambas as posturas éticas e estas, por sua vez, se movimentam numa mesma escala de variáveis. Desse modo, enquanto um seguidor de Aristipo privilegia os cumes inconscientes do prazer máximo e positivo, um epicurista fiel à sua doutrina buscará manter sua consciência bem desperta e alerta se entregando somente aos prazeres ditos moderados, ou seja, aqueles minimamente entorpecentes. Nos dois casos, porém, podemos subscrever a seguinte definição de felicidade: “A felicidade”, escreve D’Holbach, é “um estado de quiescência contínua às maneiras de sentir e de existir que nós achamos agradáveis ou em conformidade com o nosso ser” (HOLBACH, 2014, p. 14).

Aristipo e Epicuro, estes dois mestres maiores do prazer e da felicidade, definirão duas tendências básicas na sabedoria hedonista: para um, o prazer autêntico é cinético, ou seja, um movimento corporal; para o outro, o melhor prazer se dá de forma catastemática, isto é, em repouso porque em maior comunhão com o espírito e a ataraxia. Todavia, assim como entre o prazer e a felicidade existem mais assimilações necessárias do que distinções, veremos igualmente que Epicuro não ignorou de todo a parcela de dinamismo própria de sua filosofia do prazer, bem como o fruidor emblemático que foi Aristipo não desvalorizou os júbilos ditos negativos que surgem no momento da evitação de um desprazer. Isso dito, assinalemos que há diferenças dignas de análises: Aristipo e Epicuro são dois filósofos éticos simultaneamente hedonistas e eudemonistas. Contudo, a temperatura entre os respectivos estados de alma (ou seja, entre o prazer e a felicidade) oscila significativamente quando consideramos o adepto de um mestre ou o discípulo do outro.

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O prazer parece mesmo estar por trás de toda ação virtuosa interpretada como um fim em si mesma e desprovida de qualquer interesse pessoal. É o que apontam estudos científicos recentes segundo os quais atos de cooperação social ativam “regiões cerebrais ligadas à liberação de dopamina e aos comportamentos de prazer, sugerindo, curiosamente, que a virtude é a sua própria recompensa” (DAMÁSIO, 2004, p. 162-163). A intuição de Montaigne estava correta e, de fato, quem, sendo virtuoso, não sente uma pontinha de júbilo ao praticar cotidianamente a sua virtude? Também D’Holbach escreveu algo no sentido de desmistificar o altruísmo puro, uma coisa que não existe, pois “o homem virtuoso desfruta dentro de si mesmo do bem que ele faz aos outros e se nutre agradavelmente da ideia de ser amado por isso” (HOLBACH, 2014, p. 18). O mundo seria um lugar melhor se mais indivíduos descobrissem o prazer que há em ser virtuoso.

4 A INSPIRAÇÃO CIRENAICA E EPICURISTA: GENEALOGIAS DA ÉTICA