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Um mestre sem escola e sem discípulos

4 A INSPIRAÇÃO CIRENAICA E EPICURISTA: GENEALOGIAS DA ÉTICA

4.1 Aristipo de Cirene

4.1.4 Um mestre sem escola e sem discípulos

Para concluir com Aristipo, destaquemos um ponto interessante e não menos polêmico da interpretação que Michel Onfray faz do pensador de Cirene, a saber, a inexistência dos cirenaicos! Sim, é isso mesmo: segundo Onfray, não há uma escola propriamente dita cirenaica. Ora, após passarmos as últimas páginas nos referindo alternadamente a Aristipo e aos seus, depois de tratarmos o filósofo hedonista e os ditos cirenaicos como sinônimos, eis que agora apresentamos a hipótese levantada por Onfray de que o mestre do hedonismo não fundou uma escola à maneira dos pitagóricos, estoicos, céticos e epicuristas. Analisemos...

Na introdução das Vidas e doutrinas Diógenes Laércio, em sua classificação das escolas ou seitas filosóficas, escreve que “alguns filósofos foram qualificados segundo suas cidades natais, como os elíacos e os megáricos, os eretrianos” e... “os cirenaicos” (DL, 2014, I 17, p. 16). Entretanto, no livro II, após tratar da vida de Aristipo ele pretende passar “em revista os filósofos da escola cirenaica” (Ibid., II, 85, p. 68), ou seja, aqueles “que derivam dele”, de Aristipo, “embora alguns chamem seguidores de Hegesias, outros de Aníceres, e outros ainda de Teôdoros” (Ibid.). Esta última observação feita pelo compilador grego não pode passar despercebida porque, ao distinguir os seguidores destes últimos, ele aponta para um distanciamento cada vez maior em relação ao próprio Aristipo, supostamente um fundador de escola. Como discípulos de uma linhagem direta de Aristipo aparecem sua própria filha, Areté (hipoteticamente filha, mas hipoteticamente também irmã), um neto homônimo seu, conhecido como o metrodídaktos (discípulo da mãe); Teôdoros, chamado o Ateu, e os já

mencionados Hegesias e Aníceres. (Ibid., II, 86, p. 68), para ficarmos apenas com os nomes mais representativos.

Seguindo Diógenes Laércio e outros doxógrafos da Antiguidade, toda uma tradição tem englobado “sob o epíteto Cirenaicos uma série de nomes, obras, fragmentos, reputações, anedotas e teses” que Onfray entende como sendo “extremamente contraditórias” (ONFRAY, 2008, p. 123). De fato, ao consultarmos qualquer manual de filosofia constataremos que sob as rubricas Cirenaicos, Cirenaísmo ou Cirenaica diz-se tratar de uma escola filosófica hedonista fundada por Aristipo, natural de Cirene, por sua vez discípulo de Sócrates (um socrático dito “menor”, segundo uma classificação depreciativa clássica). Pois bem, em um tópico chamado Os cirenaicos existem? Onfray coloca a hipótese de que o termo cirenaico serve antes

para reunir artificialmente indivíduos que têm como único ponto em comum o fato de terem nascido em Cirene – hoje região da Líbia – do que para qualificar filósofos cujo corpus reúne visões de mundo semelhantes, próximas, que diferem apenas por algumas evoluções ou transformações (Ibid., p. 123-124).

Para sustentar essa hipótese o autor da Contra-história da filosofia aponta para uma falta de coerência minimamente aceitável entre os ditos discípulos fiéis (DL, 2014, II, 86, p. 68) e as lições do mestre. Assim, para ser verdadeiramente um cirenaico, não basta, para tanto, ser filósofo e natural de Cirene. Para Onfray, autor da primeira (e até agora única) doxografia sobre Aristipo em língua francesa – L’Invention du plaisir: Fragments cyrénaïques (A invenção do prazer: Fragmentos cirenaicos), de 2002 – ,

o que subsiste sob a rubrica dos filósofos cirenaicos parece uma casa da sogra: Aristóteles, não o Estagirita, mas o nativo de Cirene, Antípatro, Aristóxenes, Dionísio o Trânsfuga, Hegesias, Anicéris, Teodoro o Ateu, todos provêm das planuras verdejantes e irrigadas da Cirenaica, com certeza, mas o que têm em comum? O que ensinam que constitua uma escola estruturada, coerente e digna desse nome? Infelizmente nada (ONFRAY, 2008, p. 124).

O problema maior gira em torno do nome de Hegesias, sempre destacado nos manuais como o principal discípulo de Aristipo. Ocorre, porém, que associar aquele a este não apenas implica em erro lógico por falta de coerência como parece, antes, trair uma tentativa velada de desacreditar o hedonismo aristipiano. Por que? Porque Hegesias, apesar de adotar o prazer e a dor como fins, privilegia claramente a perspectiva desta sobre aquele, o que certamente faz

dele um filósofo pessimista, mas de forma alguma um hedonista. De fato, os seguidores de Hegesias consideram que “a felicidade é totalmente impossível” uma vez que o corpo não escapa aos sofrimentos que de todos os lados lhe atingem e fazem com que a alma, em consequência, viva num contínuo estado de perturbação (DL, 2014, II, 94, p. 70). Para Aristipo, como vimos, a felicidade existe: ela é o conjunto dos prazeres vividos e por viver. Além disso, o corpo aristipiano se mostra mais afetado por estes últimos e o mais distante quanto possível dos “muitos sofrimentos” (Ibid.) caros à visão pessimista de seu pretenso discípulo que, de resto, encontra sua sabedoria última na indiferença perante a vida (Ibid., II, 95, p. 70). Ora, nada há de mais contrário à postura de Aristipo, esse sábio hedonista amante e afirmador da existência. Que seja dito, enfim, que Hegesias se tornou conhecido como aquele “que persuade a morrer” – peisithânatos (Ibid., p. 243) – , uma vez que para ele viver é indiferente, mas morrer não...

O que Hegesias verdadeiramente representa é uma oportunidade para os críticos de Aristipo associarem seu pessimismo ao que eles entendem como sendo um processo natural de decadência que inevitavelmente atinge a doutrina aristipiana do Carpe diem após seu apogeu. “Com Hegesias”, escreve um deles, “a escola (cirenaica) desembocará num pessimismo absoluto. É que o prazer é raro ou fraco, e que o presente dura muito...” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p.104). A mesma ideia se encontra no verbete Cirenaísmo do Dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano: “(...) a conclusão dessa atitude é o conselho de pensar no dia de hoje, aliás, no instante em que cada um atua ou pensa, dada a incerteza radical do futuro” (ABBAGNANO, 2012, p. 168). Sim, correto, mas, em compensação: “Hegésias extraía consequências pessimistas desse ponto de vista, afirmando que, para o sábio, a vida é indiferente” (Ibid.). Michel Onfray tem, pois, razão quando caracteriza Hegesias como “um pessimista nato”, “um desesperado de primeira ordem com retórica eficaz e pérfida, a tal ponto que a ele se deve uma epidemia de suicídios que levará Ptolomeu a proibir suas aulas” (ONFRAY, 2008, p. 124) – eis um exemplo raro de como a filosofia pode ser perigosa aos seus praticantes. Ora, Aristipo, filósofo hedonista emblemático, é, ao contrário, “um adorador da vida que não conhece fadiga e entusiasmado por sua tarefa” (ONFRAY, 1999a, p. 240) de viver prazerosamente, o que supõe um otimismo teórico e prático em tudo oposto às ideias do pregador da morte voluntária que é Hegesias.

Nos ensinamentos de Aristipo, “a morte é dispensada” (Ibid.), pois só a vitalidade lhe interessa. “É difícil”, portanto, “entender como Hegesias e os seus podem ser considerados cirenaicos a não ser por uma razão geográfica, a única aceitável!” (ONFRAY, 2008, p. 124). Quanto a nós, acrescentaríamos mais uma razão: a oportunidade dos críticos em lançarem

descrédito à filosofia hedonista insinuando que ela degenera em pessimismo. Assim, conclui Onfray, da mesma maneira que Aristipo não se orgulhava de ter engendrado uma prole – Diógenes Laércio narra que certa vez o filósofo foi duramente criticado por rejeitar o próprio filho; sua resposta, porém, foi a mais chocante possível: “Sabemos que o escarro e os piolhos também provêm de nós, mas por serem inúteis jogamo-los fora e tão longe quanto possível” (DL, 2014, II, 81, p. 67)53 – , igualmente não se preocupou em deixar para a posteridade a herança doutrinal de uma escola filosófica que eternizasse seu nome tal como fizeram Pitágoras, Platão, Zenão e Epicuro.

Ao que tudo indica, não interessava a Aristipo cercar-se de discípulos zelosos. Para Onfray isso é coerente com a ideia de que o hedonismo não “suporta a cristalização de sua dinâmica em um ensino congelado, imóvel, morto” (ONFRAY, 2008, p. 125). Com efeito, a história do hedonismo testemunha a renovação, e não a degeneração, desse pensamento a cada vez que ele é retomado. O hedonismo está submetido a uma mudança evolutiva constante, e isso obriga o historiador das ideias a falar em hedonismos, no plural. Como poderia ser diferente, se a sensibilidade filosófica é antes de tudo a manifestação de uma subjetividade específica e se toda ética oriunda de uma sabedoria reivindica, direta ou indiretamente, o relativismo que lhe é inerente? Nesse sentido, nada é mais próprio da história de uma corrente de pensamento do que as “infidelidades”, as “transformações”, as “reformulações” e os “reajustes” (Ibid.) diversos que ela sofre. A cada vez o pensamento é necessariamente reelaborado e adaptado a uma sensibilidade sem-par. Assim, o hedonismo de Aristipo a ele pertence, exclusivamente. Inspirar-se em sua ética e retomar suas intuições e ideias principais significa se apropriar de sua filosofia para dela fazer outra filosofia. No entanto, um pensamento original deve sua força e sua permanência na história das ideias precisamente a essas apropriações necessariamente infiéis que ele suscita.

É então doutra maneira que “Aristipo faz escola”, observa Onfray: ele o faz “perdurando, citado em sinal de cumplicidade e de benevolência nos livros de alguns filósofos como um ponto de ligação, uma oportunidade de convivência” (Ibid.) na comunhão de ideias afins e eletivas. Nesse sentido, a verdadeira influência exercida pelo pensamento de Aristipo na história da filosofia “ainda está por ser escrita” (Ibid.), diferentemente daquela, muito forte, que as ideias de Epicuro desempenharam sobre todo o pensamento materialista e hedonista depois do período helenístico – não obstante a tentativa cristã de apagar da história todo e qualquer vestígio dos sistemas de pensamentos incompatíveis com suas ficções. A influência

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Montaigne faz menção a esse fato: “Viram-se filósofos que desprezavam essa costura natural – ou seja, a ligação obrigada dos pais para com os filhos – , como prova Aristipo” (MONTAIGNE, 2002, I, 28, p. 276).

epicurista encontra-se bastante documentada. Todavia, uma vez que não há pensamento sem inspiração e sem modelo, o fato é que ao abordar o hedonismo de Epicuro continuamos a dialogar muito fortemente com Aristipo, o único “cirenaico” digno desse nome.