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Prazer e dor: afetos fundamentais da vida

Pois bem, o que dissemos acima sobre a dor serve, como apontado, igualmente para o prazer. Ou seja: ambos, prazer e dor, são concebidos aqui como afetos fundamentais, o que significa dizer que, desde que se tenha um sistema nervoso suficientemente desenvolvido toda a vida, seja ela humana ou outra variação do reino animal, está baseada na relação imposta pela natureza a partir desses dois afetos opostos, primeiros e primordiais.22 O que é o prazer? Sendo um afeto que está na base da vida ele é, assim como a dor, algo que escapa a precisões teóricas. Também aqui é o corpo que, sentindo, nos diz a verdade inteira. O corpo detém, sempre, a grande razão da vida. O resto é interpretação do real, conceito ou, se quisermos, representação verbal aproximada da realidade percebida pelo corpo. Contudo, digamos, numa primeira abordagem, que o prazer “é o afeto que se opõe à dor”, o que significa dizer que é “o afeto que nos agrada” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 467) em oposição ao que nos desagrada. O prazer, portanto, é o afeto “que nos regozija e nos faz bem” em contraste ao que nos pesa, nos entristece e nos faz mal. O prazer, define André Comte-Sponville, “é a satisfação agradável de um desejo” (Ibid.), ao passo que a dor é tanto uma satisfação não agradável de um desejo como, o que é mais frequente, a simples privação dessa satisfação. Em ambos os casos, a insatisfação perdura, portanto o desprazer.

Definindo assim o prazer e a dor como afetos fundamentais, ou seja, como a base e o alicerce de que tudo o mais decorre na existência e a que estão submetidos todo querer, desejo e ação cabe-nos, consequentemente, definir o que devemos entender por essa palavra, afeto. André Comte-Sponville põe a coisa em devida ordem conceitual em seu Dicionário filosófico: afeto, explica ele, “é o nome comum e erudito dos sentimentos, das paixões, das emoções, dos desejos – de tudo o que nos afeta agradavelmente ou desagradavelmente” (Ibid., p. 16). Vale dizer, chamam-se afetos todas as variações entre prazer e dor a que o corpo está submetido por sua sensibilidade e que ele expressa à sua maneira, mas que nenhuma definição atende suficientemente, mas apenas aproximadamente. O afeto, essa única palavra, diz então o que é possível e necessário dizer sobre a relação corpo, sentimento e consciência. Assim, “o afeto é

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Neste capítulo, ao falarmos de prazer e dor como afetos fundamentais que se opõem não estamos, necessariamente, subscrevendo um pensamento dualista do tipo metafísico caracterizado por separar o corpo da alma ou este mundo do além-mundo. Nada mais contrário à nossa proposta e ao pensamento de Michel Onfray. Se tratamos prazer e dor como dois princípios que se opõem isso não significa, todavia, que os entendemos como sendo de naturezas radicalmente distintas, mas, sim, que, primeiro, terminologicamente não é possível trabalhar de outro modo; segundo, que a terminologia do tratamento teórico tem sua base na experiência concreta da vida prática, real e efetiva, lá onde, de fato, sentimos os prazeres e as dores de forma distinta, e mesmo dualista, ainda que, na verdade, trate-se de variações afetivas próprias de um continuum, ou seja, de uma mesma e única natureza sensitiva que se organiza e se manifesta de forma diversa. Não há vida sem morte, nem prazer sem dor, e o monismo da matéria prevalece numa lógica imanentista que, esta sim, subscrevemos. É inegável, porém, que a variação do espectro vital em favor da vida e do prazer não se confunde, nem produz os mesmos efeitos práticos, que sua predominância em favor das dores que trabalham em prol da morte. Diferença fundamental, lógica dos contrários e, se quiserem, dualista, mas submetido à ordem maior de um monismo radical.

como o eco, em nós, do que o corpo faz ou sofre. O corpo experimenta; a alma sente, e é isso que se chama afeto” (Ibid.).

Sendo o prazer e a dor os afetos elementares de toda vida animada (no sentido biológico do termo), eles determinarão a oscilação que afeta essa vida mesma, seja para mais, seja para menos potência de viver, de existir, a depender se é a dor ou o prazer que lhe atinge, que lhe aflige, que lhe afeta. E aqui, como não poderia deixar de ser, o conterrâneo de Michel Onfray convoca Espinosa, uma autoridade maior no tema que define o afeto da seguinte maneira: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (SPINOZA, 2011, III, def. 3, p. 98). Esta é a passagem da Ética citada por Comte- Sponville cujo comentário não é de modo algum desprovido de interesse: segundo ele, o que Espinosa está dizendo muito explicitamente é que a existência, a nossa existência humana, “não é um absoluto”, mas sim que “existimos mais ou menos”, segundo o ritmo de “nossos afetos” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 16) numa lógica em que “a alma e o corpo são uma só e mesma coisa”, ou seja, “não acontece nada naquele que não suceda também neste, e vice- versa” (Ibid.). O afeto? “É o nome dessa unidade” corpo/alma, explica Comte-Sponville, “na medida em que exprime um aumento ou uma diminuição da nossa potência de existir e de agir”. Noutros termos, afeto “é o esforço de viver (o conato), considerado em suas flutuações positivas ou negativas” (Ibid., p. 16-17).

Prazer e dor são as duas instâncias por trás desse relativismo de nossa existência, pois é em virtude desses afetos que, mesmo vivos, o somos em graus oscilantes. A energia vital não é algo estático, mas dinâmico e, nesse sentido, é dependente dos afetos. Por conseguinte, a vida mesma se apresenta, num dado momento, mais ou menos potente: mais potente, se é a alegria o afeto preponderante em nosso corpo; menos potente, ao contrário, se a tristeza predomina. De maneira que existimos em maior ou menor grau de vitalidade na medida mesma em que nos sentimos mais ou menos vivos, com mais ou menos força para afirmar essa nossa existência. Viver e agir constituem um único e mesmo ato: mais dor, menos vitalidade, menor força para agir. Na direção oposta, o prazer tem uma relação direta com o aumento da vitalidade que, por sua vez, proporciona força para a ação, para o movimento, portanto para a vida. Assim, dor e o prazer determinam, universalmente, mas de modo diverso em cada indivíduo, essa variação da energia vital. Vimos acima, na Algodiceia narrada por Michel Onfray, o quanto a dor e o sofrimento manifestam sua condição de afetos paralisantes, por vezes destruidores, da vida. Veremos, no decorrer deste nosso escrito, o quanto o prazer, a alegria e a felicidade são para o nosso autor armas existenciais de combate a essa ameaça

mortífera que é a dor. Sua afirmação é pela vida enquanto fruição, gozo, júbilo, prazer, portanto enquanto maximização da potência de existir, um conceito espinosista que intitula uma de suas obras.23

Segundo as teses onfrayrianas, somos todos, por natureza, seres hedonistas, e esta é uma condição tão essencial à vida que se manifesta mesmo antes de esta vir à luz. De fato, considerando o tempo de gestação da vida humana, é ainda na escuridão do ventre materno, por volta da vigésima quinta semana de gestação, que se dá o momento chave no qual o sistema nervoso parece estar suficientemente desenvolvido para fazer com que “a matéria cinzenta” (ONFRAY, 2010, p. 114) reaja aos estímulos mais básicos, quais sejam, “a capacidade de sentir o prazer e a possibilidade de sentir dor – base do hedonismo” (Ibid.), logo, da condição necessária para que o indivíduo possa apreender a realidade. Por isso Onfray entende esse momento gestacional como sendo aquele no qual surge o primeiro estágio da condição propriamente humana do feto: “É essa a data”, observa ele, “a partir da qual ele sai do nada para entrar no humano, apesar de ter sido vivo desde o encontro espermatozoide/óvulo” (Ibid.). Os demais estágios do processo de humanização, a saber, a descoberta de si, dos outros, do mundo, a formação de uma consciência a partir do meio social, as memórias afetivas que constituirão um caráter etc., tudo isso não será senão um longo e complexo processo de desenvolvimento regido por essa base hedonista, variações ricas em possibilidades tanto quanto de imprevisibilidades que se dão sobre apenas dois tons: prazer e dor.

O hedonismo, num sentido mais amplo, é o tropismo instintivo que nos orienta em relação aos estímulos de que nosso corpo é o alvo receptor. Munidos da capacidade de sentir dor e prazer em todo seu espectro, tudo fazemos para atingirmos este, o prazer, ao passo que somos impelidos a nos afastarmos o máximo possível daquela, a dor. Nesse sentido cru e natural, dor e prazer são como dois polos sustentadores da vida em seu estado mais elementar. A dor, assim como sua variação, o medo, são alertas naturais evidentes para o ser vivo, avisos claros de uma ameaça a ser evitada. Já o prazer é um estímulo para irmos ao encontro de tudo o que potencialmente contribui para o fortalecimento, desenvolvimento e perpetuação da vida. Nisso o hedonismo funciona como uma bússola de precisão para todo o reino animal – do qual o ser humano faz parte – em seu estado de pura natureza.

É uma questão de seleção natural, explica a biologia moderna: “Nosso cérebro está programado para gostar de sexo”, à guisa de ilustração, “porque o sexo, no estado natural,

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produz bebês” (DAWKINS, 2007, p. 224), e isso garante a preservação da espécie. Por outro lado, a mesma “seleção natural estabeleceu a percepção da dor como senha para danos corporais que representem risco à vida, e nos programou para evitá-la” (Ibid.) a qualquer custo. A dor é simplesmente um “recurso” da natureza “que funciona de modo a aumentar as chances de sobrevivência do sofredor” (DAWKINS, 2009, p. 367). “Os cérebros”, explica nosso biólogo, “são construídos com uma regrinha prática mais ou menos assim: ‘se você sentir dor, pare o que quer que esteja fazendo e não torne a fazê-lo’” (Ibid.). Lição a reter: sem a capacidade de sentir dor não haveria chance de sobrevivência para a vida animal. Assim, ainda que a dor seja um mal a ser evitado porque sinaliza um comportamento de risco ao ser vivo, se ela persistiu ao longo da evolução é porque essa utilidade de alerta natural favoreceu enormemente à sobrevivência da nossa e de inúmeras outras espécies de seres vivos na natureza. Contudo, como observa Richard Dawkins, “ainda está em aberto o interessante debate sobre por que raios tem de doer tanto” (Ibid.). De qualquer modo, nos casos extremos em que a luta contra a dor é perdida, ela devora o indivíduo até o fim se metamorfoseando em sua ausência, ou seja, em morte, quer dizer, em alívio no nada.

Na natureza que se basta a si mesma essas questões são muito bem resolvidas. Os problemas verdadeiramente humanos só têm início no âmbito da cultura e a nossa, de base judaico/cristã, por desprezar o corpo e não reconhecer o que em nós é natureza (e somos inteiramente natureza antes de qualquer coisa) tem sido desastrosa na lida com nossos afetos fundamentais a ponto de inverter a lógica hedonista ao fazer, da dor, um bem, e, do prazer, um mal. Daí a necessidade de persistir, partindo das lições fornecidas pela natureza, no desenvolvimento de um hedonismo cultural, portanto artificial – no sentido primeiro da palavra, ou seja, daquilo que é produto de uma arte do fazer – e ético.