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Pensamento que ecoa a revolucionária ideia nietzschiana de que o corpo é a grande razão, sem dúvida, mas em relação a qual Onfray dá um passo adiante e lembra que o cérebro, hoje, não pode deixar ser reconhecido como a “grande razão dessa outra grande razão” (2010, p. 47). Com efeito, o cérebro é o lugar onde toda a tensão pulsional13 que perpassa o organismo se concentra e sofre a esperada transfiguração geradora dos pensamentos ordenados – ou apolíneos. Quer dizer, o cérebro é a sede da alma, ou melhor, ele é a própria alma. Aquilo que, por exemplo, Epicuro dizia ser a alma dentro do corpo hoje é identificado como sendo o cérebro em sua complexidade operacional. É para isso que Michel Onfray chama a atenção: “Os que conhecem o homem neuronal”, ou seja, nossos neurocientistas e neurobiólogos contemporâneos, certamente dirão, um dia, quando as pesquisas avançarem suficientemente, “de que modo uma singularidade filosofante é, talvez, antes de tudo um corpo excêntrico, uma carne que delira” (ONFRAY, 1999a, p. 30).

Daí o materialismo vitalista de que fala Onfray, uma posição ontológica digna de um discípulo de Epicuro adepto da sutileza atômica produtora da alma, por certo, mas que igualmente subscreve a noção nietzschiana que define a vida como vontade de potência. Assim é que Onfray afirma seu materialismo no mesmo passo em que se apropria do conceito de vitalismo, já que para ele não há mais antagonismos entre as duas posturas, mas sim um complemento necessário: “A antiga oposição entre materialismo sumário e vitalismo sutil, tendo de um lado os não crentes e, do outro, os cristãos, saiu de cena em benefício de uma superação dialética singular: o material vitalista” (ONFRAY, 2010, p. 46). O epicurista do século XXI, alinhado às últimas descobertas da neurofisiologia e da física contemporânea

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A propósito, explicitemos o sentido psicológico e dicionarizado do termo pulsão: “Pressão constante e inconsciente que impele o indivíduo a uma ação que possa conter ou suprir o estado de grande tensão do organismo” (Michaelis).

(esta última empregando cada vez mais sutilezas qualitativas como onda, partícula, massa ou energia em sua definição da matéria) reivindica, como dissemos em outro lugar (Cf. COSTA, 2017, p. 67), a existência de um vitalismo da matéria, uma força energética que faz a vida ser o que é mas que, simultaneamente, “não foge à matéria, não está para além dela mas, ao contrário”, dela faz parte, a constitui trabalhando-a, “é ela” (Ibid.).

Aquilo que Espinosa chamou de “conatus”, Schopenhauer de “vontade”, Nietzsche batizou de “vontade de potência”, Bergson de “elã vital”, Freud de “pulsão” e Wilhelm Reiche de “orgone” – este último, tomado pelo delírio de captar o que ele entendeu por força vital, chegou até mesmo a fazer experimentos com rádio e a construir uma máquina dedica a façanha de capturar e reservar o tal orgone para uso terapêutico antes de, claro, dar de cara com o fracasso de sua empreitada científica – , Onfray chama de “material vitalista” e se recusa a fornecer maiores precisões teóricas pela simples razão de que elas, cientificamente e ao menos por enquanto, inexistem. Nosso autor deixa claro que sua posição ontológica é pelo materialismo, uma vez que para ele tudo o que existe, todo o real, é redutível à matéria, às partículas elementares materiais, ao átomo ou ao que mais os físicos apontem como sendo ainda mais elementar, mas ainda assim físico, material, corpóreo, por minúsculo e sutil que seja. No detalhe, porém (detalhe que ainda escapa à compreensão humana), seu materialismo é vitalista, pois, de fato, a matéria parece ser “atravessada por fluxos perpétuos, eles também reduzíveis à matéria”, certamente, ainda que ultrapassando “a pura e simples justaposição atômica” (ONFRAY, 2010, p. 46) do materialismo clássico.

Há um “entremeio da matéria”, explica Onfray, que rapidamente ressalta, a fim de afastar qualquer mal entendido, que o que se encontra nesse permeio “também é matéria”, algo mantido por forças imanentes que “aguardam sua decodificação científica” (Ibid.). Por isso seguimos ignorando suas lógicas operacionais enquanto explicação causal satisfatória, apesar de constatarmos seus efeitos. Nesse sentido, o corpo pode ser considerado como o notável “lugar percorrido pelas dinâmicas destinadas a permanecer misteriosas e desconhecidas”, escreve Onfray. “Podem-se apenas”, continua ele, “constatar seus efeitos, apontar seus trajetos, cartografar seus fluxos” (Ibid.) numa vida filosófica intensa, e esta é a pretensão do seu conceito de hápax existencial.

Seu materialismo vitalista e monista permite conceber o pensamento como sendo originário de fluxos corporais do mesmo modo que as demais “regulações” produzidas “sob a mesma carne” e “sob a mesma pele” (ONFRAY, 1999a, p. 94), sem dúvida, mas essa constatação supõe o cérebro como a central nervosa que administra esses processos, algo para o qual um dos maiores expoentes do Iluminismo francês, o Barão de Holbach, já apontava em

pleno século XVIII. Sem deixar de ironizar o dualismo corpo/alma ainda tão em voga em sua época, D’Holbach escreve: “Aqueles que distinguem a alma do corpo nada mais parecem ter feito do que distinguir seu cérebro de si mesmo” (HOLBACH, 2010, p. 136). Em seguida o autor do Sistema da natureza (livro de 1771) conclui seu raciocínio como se estivesse escrevendo à luz da neurofisiologia do século XXI:

Com efeito, o cérebro é o centro comum aonde vêm dar e se confundir todos os nervos espalhados por todas as partes do corpo humano. É com a ajuda desse órgão interno que se realizam todas as operações que são atribuídas à alma; são as impressões, as mudanças, os movimentos transmitidos aos nervos que modificam o cérebro. Como consequência, ele reage e põe em funcionamento os órgãos do corpo, ou então age sobre si mesmo e se torna capaz de produzir no interior do seu próprio âmbito uma grande variedade de movimentos, que foram designados pelo nome de faculdades intelectuais (Ibid., p. 136-137).

A alma é, portanto, o cérebro ou algo produzido e dependente deste órgão, o mais intrigante órgão do corpo humano e uma das mais complexas obras da natureza. Michel Onfray considera que é nesse “estranho encéfalo” (ONFRAY, 1999a, p. 40), ainda muito misterioso, o lugar que concentra e são consumidas as potências enérgicas do corpo. No entanto, se já avançamos significativamente no que se refere ao conhecimento do cérebro, é preciso reconhecer que “nada sabemos” acerca da qualidade própria dessas forças vitais que o rondam. Ignoramos a natureza dessas energias e “seu modo de funcionamento” de forma a estarmos “reduzidos, para tentar captar o máximo de informações a respeito delas, a examinar” tão só “seus efeitos” (Ibid., p. 40), efeitos estes de que os hápax existenciais de Rousseau e Nietzsche são abundantes.