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E se, como ensina Onfray, uma filosofia é para ser vivida, uma parte significativa do impulso do filósofo enquanto escritor será direcionada à prática da escrita autobiográfica ou, no vocabulário conceitual onfrayriano, do romance autobiográfico. De fato, nosso autor diz explicitamente não ser capaz de conceber “uma filosofia sem o romance autobiográfico que a torna possível” (ONFRAY, 2001, p. 14). Mas no que consiste, para um filósofo, o exercício do “romance autobiográfico”? Trata-se, evidentemente, de narrar uma vida que se quer filosófica e que, para dar cabo a esse projeto, em retrospecto se examina, se espelha, busca as relações, as genealogias de si enquanto pensador, portanto os elos possíveis entre uma experiência passada e um pensamento escrito e afirmado no presente.

Assim, quando da preparação de uma obra, o autor inclui em seu projeto a narrativa de vivências pessoais não por vaidade, menos ainda por um cultivo gratuito do próprio ego, mas sim por creditar a elas a origem de determinados problemas filosóficos e das ideias estabelecidas em consequência da tentativa de resolvê-los. Essa escrita de si é romanceada porque literária. Ou seja, o filósofo lança mão de sua memória afetiva tanto quanto de seu talento com a pluma para exercitar um tipo de escrita que não pode deixar de ser também um exercício de “transposição da vida para um plano artístico” (Aurélio, verbete “Romance”, acepção 4), algo que caracteriza toda obra literária, filosófica inclusive. Escrevendo à maneira de um romancista suas próprias memórias o filósofo faz, então, uma autobiografia romanceada em virtude de imprimir um tom literário à narração feita para si mesmo da própria vida, mas doravante compartilhada em cumplicidade com potenciais leitores. Os prefácios dos livros de Michel Onfray são um belo exemplo disso e, de certo modo, lembram os prólogos que Nietzsche escreveu às suas próprias obras – “talvez a melhor prosa que escrevi até agora” (NIETZSCHE, 1995, p. 12), disse Nietzsche a seu amigo Overbeck.

Isso quanto à forma, quanto à arte de escrever, que de todo modo deve estar presente como meio para um conteúdo a prevalecer, pois para o filósofo escrever não é uma atividade comercial, puro ganha pão, mas uma necessidade existencial. Sua escrita “pressupõe menos fazer parte de um processo de oportunidade de mercado literário do que para tentar resolver, para si mesmo, certo número de problemas encontrados no trabalho próprio de ascese filosófica” (ONFRAY, 2018b, p. 244). A escrita é, portanto, antes de tudo um exercício

espiritual. Que um autor possa, como se diz, ganhar a vida vendendo livros é algo secundário e mesmo uma consequência bem vinda na medida em que lhe permite continuar trabalhando livremente.

Continuando nossa elucidação de tal conceito, a saber, o romance autobiográfico, digamos que se trata, ademais, de demonstrar a implicação de uma vida numa filosofia, o que significa justificar esta a partir daquela e, recíproca e consequentemente, comprometer, com o máximo de coerência, aquela com esta. Trata-se de escrever o que se vive e, em troca, de praticar uma escrita viva e pulsante. É o movimento que Nietzsche executa com maestria inigualável em Ecce Homo que serve aqui de modelo a Onfray – Nietzsche, cujos primeiros escritos, bem como sua última obra, são do gênero autobiográfico, escreve: “Falo apenas do vivido, não somente do pensado; a oposição pensamento/vida não existe em mim” (NIETZSCHE, 1995, nota 36, p. 125). Com efeito, todo o Ecce Homo é uma demonstração de como suas obras expressam suas vivências e de como estas fizeram brotar aquelas. A vida pessoal de Nietzsche está implicada em seus livros porquanto não há, para ele, um divórcio entre filosofia e vida.

Também Michel Onfray tenta evidenciar o quanto sua obra não se distingue de sua existência. Também ele fala do vivido que para ele se tornou o pensado. Seu método de demonstração consiste em utilizar fatos de sua história pessoal como prolegômenos às suas teses teóricas e às suas hipóteses filosóficas. Assim, cada um de seus livros é aberto com um pequeno ensaio autobiográfico onde o leitor encontra, através da narração de uma experiência pessoal, a justificativa vital da abordagem teórica que se segue. De fato, há em Michel Onfray uma forte carga autobiográfica por trás de cada ideia expressa em seus textos e o sentido tanto ideológico quanto metodológico dos prefácios que os acompanham é o de explanar essa relação deliberadamente buscada e construída entre filosofia e vida, e isso desde o seu primeiro livro publicado.

Desse modo, em Féeries anatomiques: généalogie du corps faustien (Espetáculos anatômicos: genealogia do corpo faustiano), o prefácio se intitula Tumeur (Tumor) e conta a odisseia vivida por Onfray e sua companheira na luta contra o câncer que esta contraiu e da qual brotaram as páginas desse livro sobre bioética (Cf. ONFRAY, 2003, p. 23-75). Em Fisiologia do corpo político, introdução de A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão (Cf. Id., 2001, p. 13-28), a experiência de trabalho, aos dezessete anos, na fábrica de queijos de sua aldeia natal onde conhece a transfiguração do corpo pela labuta, a submissão dos necessitados aos poderosos, mas também a revolta mediante recusa em protagonizar, por sua vez, a luta de classes já que, diante da oferta feita pelo proprietário para

que o então jovem estudante Onfray se torne diretor em sua fábrica, ele escreve ter experimentado, “pela primeira vez, o júbilo que existe em se dizer não” (Ibid., p. 25). Donde sua proposta de uma política libertária que elogia o anarquismo e reivindica o pensamento de maio 68 e o nietzschianismo de esquerda francês tutelado intelectualmente por Bataille, Deleuze e Foucault, tudo desenvolvido em devida ordem teórica, claro, mas com a diferença de que essa teoria não é vazia como um produto de abstração pura, e sim a expressão da força de “um caráter” enraizado numa “experiência existencial fundadora” e, por isso, “impressa na carne desde os mais tenros anos” (Ibid., p. 267).

Igualmente em Autorretrato com criança, texto que abre A potência de existir: manifesto hedonista (Cf. Id., 2010a, p. XIII-XL), livro síntese de sua proposição filosófica, no qual nosso autor revisita, trinta e seis anos depois, o episódio mais marcante de sua vida, aquele que funda toda sua visão de mundo, a saber, o longo período vivido num internato dirigido por padres: “Texto adiado, muita dor para voltar àqueles quatro anos num orfanato de padres salesianos entre meus dez e catorze anos” (Ibid., p. XIII). Ou ainda, nas páginas iniciais de Le crépuscule d’une idole: L’affabulation freudienne (O crepúsculo de um ídolo: a fábula freudiana), a história de como suas primeiras descobertas literárias produziram efeito no terreno fértil de sua alma juvenil, pois aos quinze anos, no “mercado do conselho de Argentan”, sua cidade natal, Onfray descobre Nietzsche, Marx e Freud por acaso através de uma vendedora de livros usados: “Aquela senhora de cabelos curtos, cujo rasto perdi entretanto, vendia-me por uma ninharia uma grande quantidade de livros que eu lia com avidez, na desordem e no caos de uma alma sequiosa de clarezas” (2012a, p. 19).17 Três livros o impactaram notadamente: O Anticristo de Nietzsche, O manifesto do partido comunista de Marx e Três ensaios sobre a teoria da sexualidade de Freud, “três relâmpagos no céu negro dos meus anos pós-orfanato acenderam o fervor em que ainda hoje vivo” (Ibid. p. 21). De fato, em experiências livrescas dessa ordem cabe perguntar: “Seremos, algum dia, capazes de medir os efeitos que as ideias de um filósofo podem produzir sobre a existência de um jovem leitor?” (p. 25). Eis um campo fértil para a pesquisa filosófica e literária.

O livro A arte de ter prazer contém igualmente um prefácio importante, mas sobre ele convém não apenas fazer menção, e sim um comentário que nos será útil na transição entre este e o nosso próximo capítulo. Antes, porém, destaquemos que em Théorie du corps amoureux: pour une érotique solaire (Teoria do corpo amoroso: por uma erótica solar), publicado em 2000, Michel Onfray trata mais detidamente sobre o tema da escrita

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autobiográfica. O livro, que tem como texto de abertura um Manifesto pela vida filosófica (ONFRAY, 2018b, p. 31-42), é concluído precisamente com um Manifesto pelo romance autobiográfico (Ibid., p. 231-245) e, entre a abertura e a coda, encontra-se o desenvolvimento de uma proposição filosófica para pensar e subverter as relações humanas e seus códigos sociais acerca dos desejos e prazeres sexuais a partir de uma releitura das teses dos filósofos helenistas, especialmente cirenaicos, cínicos e epicuristas.

No Manifesto pelo romance autobiográfico lemos a seguinte exortação: a de que o filósofo seja consequente, ou seja, que aponte em sua existência os efeitos de sua teoria (Ibid., p. 236) e, do mesmo modo, que seus leitores possam “constatar na elaboração de um mundo de conceitos o peso de uma vida e a profundidade de uma biografia” (Ibid.). Essa ideia põe em jogo a coerência, tão negligenciada, entre dois mundos frequente e arbitrariamente separados: um eu que pensa e escreve e um eu que vive. Contudo, um filósofo é tanto mais probo quanto mais procura manter sincronizados esses dois tempos, e é por concebê-lo assim que Onfray diz não poder aceitar uma “filosofia sem a vida filosófica, e a vida filosófica sem o romance autobiográfico que a acompanha” e atesta a “autenticidade do projeto”. Para ele, “uma existência deve produzir uma obra exatamente como, em troca, uma obra deve gerar uma existência” (Ibid., p. 236-237).