• Nenhum resultado encontrado

Uma objeção no meio do caminho

Nosso esforço aqui é o de esclarecer, o quanto for possível, o que Michel Onfray entende por hedonismo. Antes, porém, é necessário considerar a existência de uma definição mais sumária e geral comum a todas as variantes do hedonismo e por isso encontrável nos mais diversos manuais de filosofia. Tomemos, para exemplificar, a definição que André Comte-Sponville (esse mestre das definições) oferece no seu já mencionado Dicionário filosófico, onde, aliás, o nosso autor é mencionado como um legítimo representante dessa tradição na contemporaneidade. Lemos, então, no verbete “hedonismo” da referida obra que

este termo designa “toda doutrina que faz do prazer (hedoné)27 o soberano bem ou o princípio da moral: é assim em Aristipo, em Epicuro (embora seu hedonismo se acompanhe de um eudemonismo) ou, hoje, em Michel Onfray” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 273). Definição correta, limpa e precisa. No entanto, por se tratar de um dicionário filosófico, e não de um dicionário de filosofia,28 o autor, que não é partidário do hedonismo, faz uma objeção digna de que façamos uma pausa atenta antes de prosseguirmos. Assim, na esteira de sua definição, o colega de Michel Onfray faz a seguinte observação:

Admitamos que o militante que prefere morrer na tortura a denunciar seus companheiros aja tendo em vista o prazer (ou para evitar um sofrimento maior: o de ter traído, o de seus companheiros, que teriam sido torturados por sua vez, o da derrota...). Mas, nesse caso, o hedonismo nada mais é que uma espécie de teoria onivalente, que perde sua virtude discriminante. Se todo mundo age em função dela, para que reivindicá-la? (Ibid.).

Vemos nessa passagem que é precisamente a universalidade do hedonismo que Comte-Sponville considera como o “ponto fraco” da teoria quando aplicada à ética: “A doutrina só é aceitável”, escreve ele, “se der à palavra prazer uma extensão a tal ponto vasta que já não quer dizer grande coisa” (Ibid.). E mais: para o autor do Pequeno tratado das grandes virtudes a conhecida máxima de Chamfort (1740-1794), a saber, “Goza e faze gozar sem fazer mal nem a ti nem a ninguém: eis aí, creio, toda a moral” (CHAMFORT, 2009, 319, p. 99), célebre entre os hedonistas modernos (Onfray, por exemplo, costuma mencioná-la com frequência), não deixa de ser atraente e verdadeira em boa parte. Entretanto, a seu ver, ela é insuficiente porque seria a tentativa de “erigir o princípio de prazer (que não pretende ser mais que descritivo) em ética (que seria normativa)” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 273). “Mas”, questiona, enfim, Comte-Sponville, “como esse princípio, em sua universalidade simples, poderia bastar?” (Ibid.).

Em réplica diríamos que, de fato, ela não basta, nem deve bastar, se a fórmula de Chamfort tiver de ser entendida como sugere Comte-Sponville, ou seja, como uma máxima prisioneira da “universalidade” do princípio de prazer e da sua pura e “simples” transposição para o campo da ética, sem mais. Ora, nada é tão simples assim e nenhum hedonista pretendeu se contentar com essa sumária aplicação de um fato natural a uma norma moral, ainda que ressaltando o imperativo de não fazer mal nem a si nem a ninguém. Isso seria deixar de lado a

27

Hedoné é o termo grego para “prazer” ou “gozo”.

28

No primeiro tipo de obra, de inspiração voltairiana, o autor não apenas apresenta as definições conceituais como pensa a partir delas para expor sua opinião própria. Já no segundo caso os autores de verbetes costumam se contentar com a tecnicidade descritiva e se abstém de expressar seu juízo próprio acerca deste ou daquele conceito filosófico.

complexidade que toda tarefa ética exige, logo seria fadar-se ao fracasso desde a saída. Ademais, restaria sempre a questão necessária de saber o que se deve entender pelo principal, isto é, gozar, uma vez que as categorias dos prazeres e dos seus usos possíveis são tão diversas e múltiplas quanto os corpos e os temperamentos que delas se apropriam, o que impossibilita qualquer tentativa de uma universalização moral simplória.

De resto, gozar por gozar, sem fazer mal a si nem aos outros pode até bastar como regra geral, à maneira de uma divisa ética do tipo “minha liberdade termina onde inicia a do vizinho”. Mas isso não é suficiente para um filósofo hedonista que enxerga, nessa sentença enxuta, não um fim em si mesmo, mas inúmeros desdobramentos. Ele precisa ir além, e o faz hierarquizando seus prazeres e não apenas fruindo inofensivamente deles, pois não obstante ser esta uma regra fundamental, a qualidade que distingue um prazer de outro conta tanto ou mais que sua neutralidade ofensiva (não causar dano). Chamfort, com sua bela máxima, fornece tão somente a divisa, o preceito geral do qual se deve partir. Todavia, a complexidade da empresa ética surge assim que se toma a decisão de cultivar esse preceito com a finalidade de erigir o prazer em soberano bem. Daí, a nosso ver, a necessidade de fazer a seguinte distinção: uma coisa é o impulso do princípio de prazer; outra, bem diferente, é o trabalho cultural e intelectual exercido sobre essa força da natureza com o propósito de construir uma ética que incorpore um estilo de vida filosófico único, original, inimitável e, portanto, despreocupado com normas morais universais. O filósofo hedonista quer domar a natureza bruta que o habita a fim de superar seus ditames; deseja domesticar suas forças selvagens a fim de usá-las a favor da criação de sua existência humana (voltaremos a isso). Essa é sua tarefa, e para a qual nenhuma fórmula sumária basta.

Como observamos acima, o tropismo hedonista tem, por assim dizer, vida própria: ele é um fato biológico natural e universal que define o movimento de aproximação ou de afastamento do organismo em relação à fonte de estímulo tendo como critério as sensações de dor e de prazer. Determinado por essa lógica, todo ser humano tende a fruir o máximo que puder e a sofrer o mínimo possível. Não obstante, isso igualmente se aplica à lesma, à rã, ao cachorro, ao cavalo, às ovelhas, aos insetos, quiçá até mesmo com plantas e vegetais é assim que se passa.29 Esse é um movimento que abarca toda a vida animal na Terra e, de nossa

29

Observemos de pronto que não existe, até o momento, nenhuma evidência científica comprovando que as plantas sentem dor, ainda menos prazer, tal como os animais sentem, já que para tanto a natureza parece exigir a presença de um cérebro munido de um sistema nervoso, o que não é o caso das plantas. Contudo, os vegetais não são seres insensíveis e, como escreve Onfray em Cosmos, à sua maneira “as plantas vivem, sofrem” e “reagem a estímulos” sendo, portanto, “também capazes de sofrer – ou, em outras palavras, de vivenciar o afeto que põe em risco sua existência” (ONFRAY, 2018a, p. 136). De fato, há estudos mostrando “que quando uma folha ou caule é arrancado, um gás é liberado, o que seria o equivalente a um grito de dor vegetal. Esse gás emite um som,

parte, não temos como escapar da natureza que nos produziu e que nos constitui. Uma vez que nos entendemos quanto a isso, surge a problemática propriamente humana, e ela é de outra ordem, a saber, o que fazemos dessa tendência natural no âmbito da vida cultural, logo moral, que por sua vez nos rege como uma segunda natureza a despeito do que em nós é natureza primeira?

O exemplo do militante utilizado por Comte-Sponville é válido para demonstrar, por um lado, a óbvia universalidade do tropismo hedonista e, por outro, o fato de, por consequência, não existirem ações desinteressadas. Ou seja, agimos, sempre, mesmo em nossos sacrifícios mais altruístas, com base no interesse próprio. Trata-se, todavia, de um exemplo extremo, ao passo que na vida prevalece um cotidiano menos dramático ou heroico no qual as coisas são mais diluídas e de difícil percepção quanto às causas que nos governam. Um cotidiano, lembremos, feito de cultura e educação. Aliás, quem pode precisar o efeito e o alcance que a educação e a cultura exercem sobre a tendência inata e natural que pulsa no ser humano, seja para o bem, seja para o mal? E nos casos, certamente mais comuns, em que o militante preso e submetido à tortura age no sentido contrário e delata seus companheiros para salvar a própria pele? Isso está igualmente de acordo com a universalidade do princípio de prazer e das ações egoístas comuns a humanos e animais. Pode, ainda, no entanto, estar em concordância com um caráter duvidoso formado por um processo de aculturação e de moralidade menos virtuoso e que, por conseguinte, o determinou a uma escolha menos digna de sua condição humana do que de sua natureza de primata. De fato, a moral também exerce seu peso. Ela tem o poder de criar determinantes, até mesmo uma segunda natureza, como diz Nietzsche, que interaja ou se sobreponha, de uma forma ou de outra, à natureza primeira. A civilização, a propósito, não é feita senão de moral e de efeitos castradores sobre nossas tendências mais inatas. Na lógica da moral, ascética por excelência, prazer e dor podem inclusive ter seus polos invertidos e suas funções naturais distorcidas na medida em que são usados a favor de uma vida mais disciplinada, porém menos potente.

Não se pode confundir, então, o hedonismo natural e universal com aquele, artificial, cultural e particular cujo aperfeiçoamento os filósofos, desde Aristipo, se esforçam por dar conta. Este hedonismo é uma construção da razão; o outro, matéria bruta produzida por Gaia.30 O hedonismo filosófico busca construir uma ética que é também uma segunda

imperceptível ao ouvido humano, que fica mais intenso à medida que a planta é submetida a mais situações de estresse” (Cf. Sabrina Haick. Planta sente dor? Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo- estranho/planta-sente-dor-2/. Acesso em: 22 set. 2019).

30

Gaia é a personificação, na mitologia grega, da Terra e de sua potência geradora de si. Aqui a tomamos como sinônimo de natureza pura.

natureza a ser esculpida a partir da energia proveniente do hedonismo natural. Dessa forma, a nosso ver, o hedonismo não é uma formulação tautológica, conforme a crítica que André Comte-Sponville lhe faz31, uma vez que o prazer universal, considerado em seu estado de natureza, já não terá o mesmo estatuto, a mesma condição original, pois já será outra coisa após um trabalho de redirecionamento e condicionamento promovido pela inteligência humana. Noutros termos: qualquer satisfação de desejos, portanto qualquer prazer, não será um bem para um filósofo hedonista se não for lapidado, incessantemente trabalhado, justificado e fundamentado na sua razão mais que nos seus instintos, ainda que em harmonia com estes. Para uma operação dessa ordem não há fórmula universal, mas apenas decisões circunstanciais e únicas. Ao contrário da moral, a ética não é universalizável – será preciso voltar a esse tema mais tarde.

Eis, então, uma primeira distinção fundamental: o filósofo hedonista não busca o prazer puro como tal. Para isso ele precisaria estar nas savanas e viver como “um bom selvagem”, e não nas cidades como um indivíduo integrado à civilização. Todavia, o prazer é por ele querido, não rejeitado. Ocorre que, antes de sua realização, o prazer é “processado” a fim de produzir efeitos éticos determinados pelo pensamento racional. O filósofo não vive (à maneira de muitos, senão da maioria) o prazer pelo prazer, como que entregue ao puro impulso mamífero de sobrevivência, mas somente sob certas modalidades criadas, desejadas e determinadas por sua consciência e por seu gênio. Só então ele se permite viver a sensação hedônica incitada por seu corpo. Cumpre, portanto, à sua razão e à sua cultura a tarefa de esculpir o seu prazer. Em suma: é preciso haver intencionalidade, artifício, cálculo e projeto ético, caso contrário não existe hedonismo filosófico. De resto, mesmo os mais libertinos dentre os filósofos vivificaram seus prazeres com razões que não são exatamente unanimidades para o grosso da sociedade. Isso é muito diferente do que ocorre hoje, por exemplo, em nossas sociedades dominadas pela ideologia capitalista.

Pois o capitalismo, a fim de manter sua base de sustentação, vale dizer, o consumismo, explora com mestria o princípio de prazer dos seres humanos, sem dúvida, mas para dar cabo dessa operação precisa alienar os indivíduos de seus desejos potencialmente próprios com a intenção de submetê-los às suas regras. Assim, o que capitalismo quer e consegue promover é a uniformização dos desejos e, por conseguinte, a padronização dos comportamentos humanos. Sua sobrevivência depende disso. Eis porque, antes de analisarmos, no próximo capítulo, como dois sábios da Antiguidade grega, Aristipo de Cirene e Epicuro de Samos,

31

Devido à universalidade do princípio de prazer, Comte-Sponville (2011, p. 273) diz ainda que “o hedonismo é tão irrefutável quanto insatisfatório: escapa do paradoxo apenas para cair na tautologia”.

fizeram do hedonismo uma força ética genuína e um princípio de distinção, precisamos denunciar as deturpações contemporâneas do hedonismo que são, na verdade, apropriações distorcidas de forças da natureza inerentes aos indivíduos, forças estas as quais impulsionam seus movimentos, mas que se encontram confiscadas e desviadas pela ordem ideológica vigente na sociedade atual. Essa ordem é produzida pelo sistema de produção capitalista em sua versão extrema, a saber, o neoliberalismo que, hoje, se mostra como o maior dos totalitarismos. Tal ideologia do culto ao dinheiro, à mercadoria e ao consumo irracional se especializou no sequestro das energias hedônicas dos indivíduos para maculá-las em seus jogos nefastos os quais, pregando o prazer como isca, produzem apenas ilusões, frustrações, insatisfações, egos falhos, dores, sofrimentos, vazio existencial ou, numa palavra, niilismo. Tratemos logo, pois, de distinguir o hedonismo filosófico daquilo que ele não é: um hedonismo vulgar.