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4 A INSPIRAÇÃO CIRENAICA E EPICURISTA: GENEALOGIAS DA ÉTICA

5.3 Do utilitarismo jubiloso

O humano é um ser carregado de paixões, de pathos, um ente natural, logo animal, que possui em seu cerne aquilo que Onfray, a partir de Bataille, chama de a parte maldita (ONFRAY, 1995, p. 143 e 208). Pois ao contrário do que se acredita, a barbárie contemporânea de nossa civilização ocidental em frangalhos tem menos a ver com uma entrega generalizada às nossas pulsões animais do que com a tentativa de “erradicar pura e simplesmente as paixões de onde elas se encontram para esvaziar o homem de sua substância e transformá-lo em cadáver antes do tempo” (Ibid., p. 143). O hedonismo funciona como um antídoto à lógica castradora que impera na civilização porque se quer aliado e cúmplice da natureza e deseja antes trabalhar a partir de suas forças selvagens do que condená-las de antemão. Enquanto “ética afirmativa”, no sentido nietzschiano da expressão, o hedonismo defendido por Michel Onfray “quer as partes animais do homem até o limite do aceitável” (Ibid.) e considera que o pior e o mais prejudicial pertencem aos resultados provenientes de uma luta ascética, sempre vã, travada contra o que, no humano, é natureza. Sem a construção de uma ética, na ausência de um trabalho de escultura sobre a matéria bruta, a natureza despontará violentamente em algum momento e o fará produzindo efeitos desastrosos. Melhor então domá-la numa relação de cumplicidade com suas forças. “Toda a questão ética”, lembra Onfray, “reside na determinação dos limites: a partir de que momento essas potências magníficas arriscam-se a tombar para o lado sombrio? Além de que marcos elas são intoleráveis? O hedonismo permite uma resposta” (Ibid.).

Num primeiro momento é preciso ter em mente que o tropismo hedonista natural é o princípio fundador dessa ética cultural de mesmo nome: há o “movimento natural, e universal, que empurra os homens a buscar o prazer, em seguir em direção a ele, a desejá-lo ao mesmo tempo que a fugir do desprazer, a afastar-se da dor, do sofrimento e das penas” (Ibid., p. 144). Em seguida, partindo desse fato, é preciso ocupar-se da possibilidade “de realizar uma intersubjetividade contratual na qual os sujeitos consentem, tanto um quanto o outro, a uma álgebra dos prazeres que se instrua das partes malditas” (Ibid.). Às partes malditas estão ligadas as paixões geradoras do riso, mas também das lágrimas; do erotismo, mas igualmente da pulsão masoquista de morte; do egoísmo exacerbado, mas não menos do eu equilibrado e preocupado tanto consigo mesmo como com o mundo e com os outros. Enfim, a parte maldita é simplesmente a animalidade que nos constitui e que levamos conosco, mais ou menos manifesto, para as relações intersubjetivas que estabelecemos numa civilização dada.

É nesse sentido que Onfray nos lembra que o hedonismo é uma arte de lidar com a impureza que nos habita sem intervalos. De fato, o que em nós é passional e desiderativo foi tratado historicamente como impuro porque manifesta mais explicitamente o corpo, ao passo

que o puro define a ausência de desejos e de paixões. A arte hedonista se posiciona contra essa utopia delirante da moral que pretende fazer do ser humano um anjo castrado. O grande anseio “dos apóstolos do ideal ascético” sempre foi o de “aniquilar o desejo no homem” a fim de “produzir uma carne branca, despojada de seu sangue e de sua matéria, de seus humores e de sua linfa, de sua vitalidade e de suas forças” (ONFRAY, 1999a, p. 165). “Transformar o homem em anjo, a matéria em ideia” (Ibid.), o interesse próprio em moral da compaixão, eis as ilusões compartilhadas entre sacerdotes, padres, pastores e filósofos cristãos.

Aqui Onfray aborda o tema de nossa tendência natural ao egoísmo: para ele precisamos reconhecer essa força, não pretender extirpá-la ou dissimular sobre ela, mas contê- la trabalhando-a para que, dentro dos limites adequados, essa energia se converta em voluntarismo ético – inclusive e sobretudo na relação com o outro. Todos, sem exceção, tendem ao prazer próprio. Então que o lugar do outro em nosso entorno seja ocupado a partir da perspectiva do hedonismo e não forçosamente contra ela. Enquanto ética, o hedonismo define-se precisamente pela consideração desse outro a partir do princípio de que “o gozo desejado por um” indivíduo “deve imperativamente ser colocado em perspectiva com o do outro” (ONFRAY, 1995, p. 144). Ora, na condição de puro impulso instintivo, o gozo se quer, naturalmente, egoísta: “O egocentrismo ou o egoísmo só escutam a voz do gozo pessoal: meu prazer, e só ele” (Ibid.). Do mundo selvagem de onde provimos (um mundo sobre o qual não cabe julgamentos morais) até a nossa sociedade consumista e mercantil dita civilizada, estamos diante de um continuum, ou seja, permanecemos no registro do egoísmo. A ética surge apenas quando a razão assume a dianteira e faz avançar um esforço voluntário que visa limitar uma paixão suscetível de gerar sofrimentos num contexto cultural complexo no qual não se escapa à necessidade de manter relações interpessoais. Que tais relações nos sejam, portanto, a nós e aos outros, de benefícios mútuos.

Como “um prazer pessoal, sem o outro, pode rapidamente tornar-se um prazer apesar do outro” e mesmo “contra ele” (Ibid.), o que produz sofrimento quando se deve promover a alegria, Onfray repete sem cessar que o hedonismo busca o oposto do egoísmo porquanto se trata de uma atitude filosófica que implica necessariamente “uma preocupação” ativa “de júbilo para si”, decerto, mas “ao mesmo tempo que para o outro” (Ibid.). Que não se veja aqui, nessa consideração para com o outro, qualquer resquício da moral cristã da compaixão. Lembremos que o hedonismo é uma ética individualista. No entanto, ela se anularia de tal condição tão logo pendesse para alguma forma de egocentrismo, pois nessa condição toda e qualquer ética é anulada. Complementando o que já foi dito anteriormente, repitamos que, se a ética não é uma moral com suas pretensões universalitas, tampouco o individualismo é

sinônimo de egoísmo. O egoísta pensa apenas em si e pretende reduzir o mundo à sua limitada consciência representativa de si mesmo. O indivíduo, por sua vez, entende que a experiência única e intransferível de ser si mesmo e de sentir a vida deve, por analogia, ser reconhecida igualmente no outro. É seu dever, então, raciocinar da seguinte maneira: “Se sofro, o outro também sofre e inclusive pode sofrer por uma ação minha”. Por conseguinte, “se gozo e faço gozar – conforme o princípio de Chamfort de que Onfray faz cláusula pétrea de sua filosofia – então me constituo como agente ético porque tal só é possível na relação com um ser distinto de mim”.

A alteridade é, pois, uma exigência ética e a dinâmica própria do hedonismo, explica Onfray, “considera que não existe volúpia possível sem consideração do outro” (Ibid.) o que, conforme foi assinalado, não se dá por “amor ao próximo” (Ibid.) à maneira da moral da renúncia de si,

mas por interesse, fique bem entendido, pois o outro é o conjunto da humanidade da qual eu extraio minha própria pessoa, o que cada um de nós experimenta. Assim, todos são o outro para mim, porém eu sou o outro para todos os outros. E aquilo que pratico na direção do outro se acha, dentro de uma perspectiva eudemonista, colocado em prática na minha direção. O gozo que proporciono encontra, no seu caminho, o gozo que me proporcionam. Teoricamente. Quando há falta de simetria, há falta de ética, ausência de regra hedonista e queda para o egocentrismo (Ibid.).

Todos nós somos, por natureza, seres solipsistas, mas alguns se constituem, através da cultura e de uma educação filosófica, como indivíduos. Por sinal, apenas em contraste com o outro é possível extrair a boa individualidade. O individualismo, portanto, não veda a intersubjetividade: ao contrário, ela é sua própria condição de possibilidade. Por outro lado, o egocentrismo (essa espécie de solipsismo não lapidado) interdita toda boa interação com o outro, logo toda ética digna do nome. Como encontrar o equilíbrio que nos mantenha o máximo possível na trilha da ética? A intersubjetividade hedonista pressupõe, para Onfray, a prática de uma patética, ou seja, uma arte de lidar com as paixões, e não apenas as nossas como as que pertencem àqueles com os quais nos relacionamos na medida de uma interpretação afetiva possível. Trata-se, evidentemente, de uma arte sutil, complexa e de difícil execução porquanto exige uma sensibilidade elevada e sempre atenta às nuances da expressão emotiva que se dá na interação com outrem por meio da linguagem, dos gestos e dos atos. “Uma patética é então uma estética das paixões”, elucida Onfray, acrescentando que ela funciona como “uma poética das partes malditas” (Ibid.), isto é, um trabalho realizado

com aquelas partes passionais do ser humano desprezadas pela moral ascética, mas desejadas pelo hedonismo.

A relação com nossas próprias paixões se dá de modo intuitivo, imediato, direto e, por isso mesmo, confusa para os que são incapazes de se autoanalisarem, de conhecerem a si mesmos, em suma, de filosofarem. Mas essa relação que experimentamos conosco evidencia a impossibilidade de compartilhar verdadeiramente qualquer afeto de nosso corpo com o outro. “Cada individualidade está condenada a viver sua única vida, e somente sua vida, a ressentir e experimentar, o positivo como o negativo, para si só e por si só” (ONFRAY, 2001, p. 40). Não obstante, o corpo alheio de fato nos toca afetivamente e, em troca, também o nosso o afeta. Dessa interação surgem sinais, e são precisamente esses sinais produzidos a partir de afecções mútuas que devem ser lidos pelo indivíduo ético, com todos os riscos interpretativos que isso pressupõe.

Os corpos com os quais nos relacionamos e que nos afetam expressam paixões e estados de alma a serem decodificados, interpretados de algum modo, depois trabalhados racionalmente a fim de produzir, em nós, uma ação coerente com um projeto ético. Esse processo define a boa intersubjetividade. No entanto, tudo é muito delicado, visto que o acesso ao outro em si mesmo nos é vedado, absolutamente. Entre nós e eles/elas nenhuma sensação, percepção ou emoção podem ser realmente transferidas, a não ser de modo comunicativo e participativo, portanto indireto e distante (Ibid.). É o que se tem. Leiamos, então, nas entrelinhas das manifestações comunicativas com o outro a fim de construir uma compreensão mais próxima possível daquilo que está oculto por trás das aparências. “Para além das peles que nunca são penetradas mas são condenadas às superfícies, às ductibilidades superficiais, ela [a patética] visa a alma para tocar no outro, atrás da aparência, nas suas profundezas” (ONFRAY, 1995, p. 144-145). Nesse jogo fenomenológico dos sentimentos, o mesmo vale no sentido oposto: o esforço de nossa parte em nos fazer entender por um terceiro.

Prisioneiros do nosso próprio eu, “cada signo emitido em direção ao outro é”, antes de tudo, “uma tentativa de romper um pouco mais o solipsismo criando as condições de uma ilusão de intersubjetividade” (Ibid., p. 145). Realmente, como “nunca se abandona a própria sombra”, uma intersubjetividade radical é impossível (ao menos enquanto a biotecnologia não consegue transportar pensamentos, sensações e emoções de um cérebro para outro). Mas isso que Onfray chama de “quimera” das relações interpessoais se mostra suficiente para evitar os mórbidos efeitos do “isolismo” (Ibid.), expressão utilizada por ele na acepção que Sade lhe

atribui80 e que devemos entender como o isolamento extremado definido pela completa “ausência de relações com outrem” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 327). Diferentemente da solidão, que é consubstancial ao ser humano e caracteriza uma relação “ao mesmo tempo singular e inalienável consigo e com tudo” (Ibid.), no isolamento não existe qualquer tipo de relação com o exterior, especialmente com outras realidades subjetivas, e essa condição tende a definhar o indivíduo e pôr em risco sua própria personalidade. É por isso que a pena de isolamento na solitária é uma das mais cruéis e temidas até mesmo pelos criminosos mais perigosos. Qual Eu sobreviveria se condenado a si de forma tão radical? A interação com os não eu é necessária até mesmo para a sobrevivência mais elementar.

A relação com o outro, ainda que superficial por natureza, é uma exigência da vida. A esta, por sua vez, pertence uma dinâmica própria pela qual cada ser humano, movido por interesses pessoais, instrumentaliza outro ser humano, inevitavelmente. A diferença está no fato de que isso ocorre em graus tão variados quanto os que levam da barbárie amoral à ética praticada por um sábio virtuoso. No jogo das relações interpessoais, o hedonista é aquele que emprega sua energia na tentativa de fazer convergir o interesse alheio com o seu. Com qual intenção? A de criar as condições de possibilidades que favoreçam as relações intersubjetivas mais prazerosas e desfavoreçam, proporcionalmente, as mais sofríveis. Donde sua necessidade de excelir como intérprete dos sinais que as intenções alheias deixam escapar em seus gestos, feições, expressões faciais, olhares, tonalidades vocais, ruborização da face e outras singelas e sutis manifestações do corpo as quais, não raro, dizem mais e melhor que palavras porque provêm diretamente dos afetos. Sobre isso, escreve Onfray que:

Entre os seres, circulam então signos, traços quase imperceptíveis em um rosto, um esboço de sorriso, um olhar fixo que investiga, um silêncio fundado, uma rigidez no corpo, uma docilidade dentro da alma, um fio metálico na voz, longe daquilo que é dito, mas inteiramente no modo, na maneira, uma volúpia no gesto, uma intenção solícita e mil outras paixões transformadas em informações. Todas elas exigem a sagacidade, a celeridade e o espírito da delicadeza. Não há ética possível sem essas virtudes necessárias à decodificação fulgurante (ONFRAY, 1995, p. 145).

Significa dizer que o hedonismo é uma ética muito mais sutil e complexa do que gostariam de reconhecer seus detratores porque, para ser digno dela, é preciso possuir uma alma leve, maleável, perspicaz e atenta como a dos sábios da Antiguidade helenística. Por trás dessa arte da “decodificação fulgurante” encontramos uma atitude aristocrática e seletiva

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“O isolismo é o egoísmo vazio: enquanto que o egoísta triunfa no prazer [...] o isolista morre na solidão” (La

(Ibid.) bem como, se quisermos, certa impureza relacional, se por impureza for preciso entender uma ética submetida aos interesses (Ibid.) particulares dos envolvidos. Efetivamente, por tudo o que já dissemos até o momento, o hedonismo é, nesse sentido, assumidamente impuro e assim deverá permanecer aos olhos dos moralistas que solicitam a crença no altruísmo puro onde supostamente reina a ausência completa, na realização da ação moral, de qualquer vestígio de interesse ou satisfação pessoal. Ação moral desinteressada... eis um oximoro com que fantasiam teólogos e filósofos idealistas que pretendem o impossível: escapar à individualidade e ao princípio de prazer a ela ligada. Ao contrário, de modo a compor mais realisticamente com o mundo, Onfray afirma que o hedonismo necessariamente se apresenta como “um utilitarismo”, e isso no sentido anglo-saxão do termo” (Ibid.).

Para explicar o que isso significa na perspectiva de uma ética que se quer jubilosa, vale lançar mão da linguagem do mundo dos negócios ao modo de metáfora: o hedonismo é um utilitarismo por envolver, sempre, entre duas pessoas, por exemplo, “um cálculo de interesse que permite lucros para ambas: suplemento de alma, aumento de volúpias, entesouramento de prazeres, capital jubiloso e dividendo em matéria de ser” (Ibid.). Ora, o utilitarismo é uma ética “que necessita de um cálculo permanente visando determinar, incessantemente, as condições de possibilidade do máximo de prazer para si e para o outro” (Ibid.), e é isso a própria ética, ou seja, a indispensabilidade do outro. Aqui, porém, ela é hedonista, pois não basta que a relação com o outro seja pacífica ou harmoniosa, ela tem de ser positivamente prazerosa.

Algumas páginas mais adiante Onfray é ainda mais preciso nesse ponto: “Visto ser impossível evitar que o outro seja objeto para mim, que ao menos ele seja creditado de um júbilo enquanto instrumento” (Ibid., p. 152). Reciprocamente, “se devo ser uma coisa para o outro”, continua ele, “que eu seja um pretexto que goze. O utilitarismo filosófico, o hedonismo, quer o cálculo dos júbilos com a intenção de um máximo de benefícios para um e para outro” (Ibid.). Ora, nada ofende mais os ouvidos das boas almas do que ouvir as palavras “cálculo” e “prazer” ligadas à ética. Não obstante, o hedonismo mantém sua força – trata-se de “gozar” tanto quanto “fazer gozar” (Ibid., p. 145) – e seu realismo. Há de jamais ignorar, ainda, a existência de “uma variedade importante de modulações sobre este tema e que existem prazeres indiretos obtidos pelo fato de proporcionar gozo, tanto quanto prazeres diretos resultando das satisfações recebidas” (Ibid.).

Fica claro nessas linhas escritas em A escultura de si que Michel Onfray não crê em ações éticas desinteressadas, uma vez que os ditos “prazeres indiretos” são aqueles que resultam da satisfação pessoal de fazer o outro fruir: é que existe um sutil e por vezes intenso

júbilo em proporcionar alegria e felicidade a outrem. Onfray também não faz distinção entre hedonismo e utilitarismo e, a este, acrescenta a noção de pragmatismo como sendo aquilo que lhe dá movimento e sentido na realidade concreta. Mais uma vez contrariando os significados comuns que associam o utilitarismo ao comportamento de quem se preocupa tão só em extrair vantagem pessoal de suas relações sem levar em conta o interesse alheio, até mesmo em detrimento dele, o utilitarismo, em filosofia, remete à mais alta consideração do outro no campo da ética consequencialista cuja formulação mais acabada surgiu no século XIX com os pensadores ingleses Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Na verdade, o utilitarismo é um desdobramento natural do hedonismo no domínio da política uma vez que estende seus princípios ao conjunto da sociedade, e não apenas a uma limitada comunidade de indivíduos. É, por assim dizer, um eudemonismo social já que “o princípio de utilidade, a saber, a maior felicidade para o maior número de pessoas, age como ponto cardeal da filosofia ética” (ONFRAY, 2010, p. 26). Para Onfray, hedonismo e utilitarismo são inseparáveis e compartilham a mesma gênese na história das ideias na figura de Demócrito de Abdera:

Singularmente, o filósofo de Abdera estabelece as bases de um pensamento utilitarista de efeitos visíveis muito mais tarde – em alguns anglo-saxões do século XIX, como Jeremy Bentham e John Stuart Mill. De fato, em Demócrito, o contentamento depois o agradável individuais e subjetivos definem o útil. Consequentemente, o descontentamento e o desagradável caracterizam o inútil” (ONFRAY, 2008, p. 65).

Na Antiguidade, porém, sua prática comunitária mais refinada surge, como vimos, com Epicuro e sua escola hedonista do Jardim – uma ideia compartilha com Jean-Marie Guyau (1854-1888). Por isso Onfray fala da criação, por parte de Epicuro, de “uma prudência utilitarista e pragmática” de extrema atualidade:

Na perspectiva que é a sua, como filósofo-médico, Epicuro – sigamos aqui a tese de Jean-Marie Guyau – inventa o utilitarismo. Evidentemente, Epicuro considera o bem idêntico ao bom, que por sua vez abrange o que parece útil para evitar o sofrimento e criar prazer. Inversamente, o mal e o mau caracterizam o que gera o sofrimento. (Ibid., p. 200).

O que vale para o indivíduo serve igualmente para o grupo que, por sua vez, se inicia como tal já a partir do momento em que duas pessoas se envolvem numa relação de cumplicidade ética. Assim, a utilidade diz respeito ao que garante prazer ou felicidade para ambas as partes, ao passo que a inutilidade está associada a tudo quanto produz dor ou

infelicidade para um ou para os dois indivíduos. Nada a ver com o lugar comum que toma o utilitarismo como um princípio egoísta da vantagem pessoal sobre o outro.

Quanto à noção de pragmatismo, a sociedade mercantil que é a nossa impregnou igualmente esse termo com suas próprias obsessões: é pragmático tudo o que é suscetível de aplicação prática para a geração de lucros e rendimentos comerciais, o que vale ainda sob o ponto de vista dos conflitos trabalhistas uma vez que o mercado de trabalho demanda um pragmatismo ligado à competência pessoal para liderar grupos de pessoas, gerenciar conflitos, aumentar a eficiência da empresa e agir em seu nome a partir de uma eficácia polivalente. Apropriação indevida, aqui também, daquilo que, em filosofia, o pragmatismo representa, a saber, uma corrente de pensamento fundada por Charles Sanders Peirce (1839-1914) e William James (1842-1910), dois filósofos americanos. O que é o pragmatismo? Trata-se, como explica André Comte-Sponville em seu Dicionário filosófico (2011, p. 466), de “uma