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O prazer da ausência de perturbação

4 A INSPIRAÇÃO CIRENAICA E EPICURISTA: GENEALOGIAS DA ÉTICA

4.2 Epicuro de Samos

4.2.1 O prazer da ausência de perturbação

A sabedoria epicurista é antes de tudo corporal. De fato, o corpo ocupa o centro das atenções dessa filosofia de tal modo que, com o grego nascido na ilha de Samos em 341 a. C. e morto em 271 a. C. reencontramos, de passagem, uma ideia que nos ocupou anteriormente, qual seja: toda filosofia procede de uma fisiologia que lhe corresponde necessariamente. Por outros termos, o pensamento provém de um corpo em interação com um mundo, uma época, um lugar, um povo. Em suma, uma filosofia emerge, sempre, de um contexto biográfico. Onfray observa que muitos séculos antes de Nietzsche viver e teorizar essa mesma ideia Epicuro já afirmara que o pensamento se origina do corpo, e não do mundo das ideias universais e imutáveis que se mantêm imortais por força e graça de suas reminiscências em almas imateriais e igualmente imortais. Ao contrário, cada pensamento é único e singular porque redutível a um estado corporal específico (ONFRAY, 2008, p. 171). Nada há de mais antiplatônico e oposto à tradição filosófica dominante cristianizada por ideias puras e imutáveis. “Uma fisiologia da filosofia” já existe, pois, “em pleno século IV antes de nossa era” (Ibid.) graças à poderosa intuição de Epicuro, uma intuição que Onfray considera

um rasgo notável – mais um – por parte de um filósofo que consegue cristalizar sozinho um pensamento que, apesar do aspecto fragmentário com que nos chegou, tem um peso considerável em matéria de resistência ao regime de escrita platônico, cristão e idealista da filosofia ocidental. Corpo glorioso, no sentido pagão do termo! (Ibid.).

A razão filosófica em Epicuro é estrita e singularmente corporal porque toda sua visão de mundo assim o é. Seguindo as teses fundamentais de Demócrito, ele afirma que só existem corpos e arranjos atômicos próprios a esses corpos. Átomos, um número infinito de átomos de tamanhos e qualidades variados e seu movimento no vazio: eis os componentes básicos da realidade, e isso dos fenômenos que nos cercam à complexa alma de um filósofo, também ela um agregado de átomos que lhe dá forma e vida. Tudo é redutível a um arranjo atômico e, por

conseguinte, o todo é físico e corpóreo. Assim, para Epicuro, falar em alma imortal e incorpórea pressupõe o devaneio e o uso de “palavras vãs” (DL, 2014, X, 67, p. 299). As ideias procedem dos corpos humanos e, em última instância, das fisiologias e idiossincrasias desses corpos. No caso das ideias epicuristas, por exemplo, são elas próprias inerentes e imanentes à realidade “atômica e material” chamada... Epicuro (ONFRAY, 2008, p. 173). Não deixa de ser interessante pensar que o epicurismo, essa filosofia hedonista que perdura por séculos após a morte do mestre e que ainda hoje é passível de ser retomada em seus detalhes não possui outra origem, não provém de outra fonte senão do corpo de Epicuro e de sua maneira muito particular de ver e sentir o mundo (Ibid.).

Com efeito, o corpo desse filósofo é um corpo doente e frágil (como será o de Nietzsche), mas por isso mesmo bastante ativo numa incansável busca por sua saúde, seu equilíbrio e seu bem-estar. Epicuro foi de fato um homem doente – o seu discípulo Metrodoro dedica ao tema uma obra chamada Da saúde precária de Epícuros (DL, 2014, X, 24, p. 288) – , mas também foi médico, sobretudo médico de si mesmo – daí sua autoridade para escrever um livro intitulado Opiniões sobre as doenças e a morte (Ibid., p. 289), infelizmente perdido assim como centenas de outros escritos de sua autoria. Epicuro foi (como Nietzsche?) um laboratório de experimento filosófico em si e para si mesmo. De sua constituição fisiológica frágil em interação com um temperamento firme e sereno; do homem doente, porém exímio na arte de perscrutar-se e de formular os cuidados adequados para si; do pensador enfermo, contudo médico na melhor tradição hipocrática emerge, pois, um pensamento filosófico que faz do corpo seu melhor aliado e da arte de ser feliz – isto é, de ser o menos infeliz possível – um ideal de sabedoria prática concreta. Em suma:

Doente, débil, frágil, incapaz de excessos imediatamente nocivos à sua carcaça de hidrópico, seus inimigos o censuram por não ter deixado a cama durante anos por ócio, fleugma congênita ou preguiça conceitual, ao passo que permanecia amarrado a ela pela dor, crucificado pelo sofrimento. Será de admirar que tal homem construa um sistema colocando acima de tudo a arte de não sofrer? De escapar às aflições? De conhecer o prazer da ausência de perturbações? (ONFRAY, 2008, p. 173).

Por essa passagem já percebemos as mudanças de tom e postura que Onfray assume em relação a Epicuro se a comparamos com os trechos citados anteriormente, no tópico sobre Aristipo. Esqueçamos aquelas críticas medonhas. A partir de agora o elogio a Epicuro vigora absolutamente e não é por menos. Passemos, então, ao que realmente importa: que o leitor retenha, a partir do que foi dito acima, que o hedonismo de Epicuro não poderia nunca ser

aquele de Aristipo pois corpos distintos correspondem a pensamentos diferentes. Um esbanjava saúde e detinha um temperamento conveniente às celebrações dionisíacas mais extravagantes. O outro conheceu mais intensamente os males que podem acometer um corpo quando este é obrigado, pela natureza, a conviver íntima e frequentemente com eles, quais sejam, a dor crônica, o sofrimento, a doença, a prostração. No entanto, Epicuro conhece igualmente, e mais intensamente, as alegrias singelas proporcionadas pela saúde recuperada ou por um alívio momentâneo da dor. Antes de conceber sua teoria hedonista do júbilo que existe em deixar de sofrer ele experimenta o fenômeno em sua própria carne.

Epicuro encarna como nenhum outro filósofo o ideal helenístico da salvação existencial pela prática de uma filosofia. Sua obra serve, antes de tudo, como uma espécie de “sublimação e compensação” (Ibid., p. 174) para seus tormentos físicos. Noutros termos, Epicuro cuida de si mesmo através da razão na medida em que o discurso racional lhe permite os meios de mitigar os sofrimentos do corpo. Assim, seus textos e pensamentos têm uma tarefa a cumprir: a de fornecer os meios intelectuais necessários à construção de uma existência feliz a despeito desta estar “colocada a priori sob o signo da dor” (Ibid.) e do sofrimento. O lógos, o discurso racional é, então, colocado a serviço da terapia de um corpo doente. Que outra utilidade teria o pensamento para um filósofo-médico senão aquela voltada para “uma terapia, uma medicação, uma medicina da alma, portanto do corpo” (Ibid.)? Nessa ordem de ideias Onfray chama a atenção para um detalhe curioso poucas vezes observado: o próprio nome de Epicuro coincide incrivelmente com sua prática filosófica uma vez que “a etimologia do patronímico” do pensador grego informa que Epíkouros significa... “aquele que socorre” (Ibid, p. 181). E se levarmos em conta as variações registradas – epikoureîn (socorrer); epikouría (socorro, assistência) – podemos ser levados a acatar a sugestão de Onfray de que Epicuro parece mesmo destinado “a trabalhar pela salvação: a sua, depois, na mesma ocasião, a dos outros...” (Ibid.).

Além dos males inerentes à sua própria doença, Epicuro foi obrigado a lidar também com as hostilidades de um mundo exterior em decadência em razão da perda da autonomia política ateniense, fato este responsável por jogar a incerteza existencial sobre o destino de centenas de cidadãos. Lembremos que o período helenístico é marcado por uma forte turbulência histórica em virtude da transição da cultura grega clássica para o mundo imperial romano. Num primeiro momento os gregos, juntamente com a democracia que lhes conferia liberdade na participação do governo da polis, são subjugados pelo império dos macedônios e, posteriormente, pelos romanos. Deixa de existir a liberdade de decisão política acerca do destino de suas próprias Cidades-Estados. A Grécia transita de uma democracia autônoma e

isolada para uma monarquia macedônia aberta ao mundo – aliás, como um mal que veio para o bem, foi somente graças às expedições de Alexandre, o Grande, que a cultura grega se difundiu por todos os países mediterrâneos. Em seguida o reino dos macedônios se rende ao imperialismo romano que, por sua vez, integra a cultura grega à sua.

No epicentro dos acontecimentos políticos a perda de soberania gera instabilidade e insegurança entre os gregos. As pessoas temem a nova ordem que se instaura pela força no poder e, entre outros males, isso os deixa mais vulneráveis às doenças da alma geradas e alimentadas pela superstição popular. O medo da morte paralisa frequentemente o cotidiano dessa gente. A ignorância e a imaginação causam pavores que potencializam o efeito dos males efetivamente existentes, além de criar aqueles restritos ao imaginário comum. Na contramão da insensatez em que o Ocidente mergulha após a morte de Alexandre e a consequente disputa entre seus generais pela partilha do império, o Jardim epicurista surge com o propósito de oferecer uma terapêutica filosófica que opõe a razão à fé; a filosofia à religião; a imanência à transcendência; uma economia dos prazeres às dores do mundo; a liberdade à servidão; a autonomia à dependência; o individualismo comunitário à lógica gregária da política que exige de homens e mulheres adequação às normas coletivas. Uma sabedoria de vida em tempos de decadência, eis o projeto epicurista bem como de outras escolas filosóficas que surgem no mesmo período dito helenístico. “Haverá algo mais verdadeiro como justificação de uma visão filosófica do que sua aspiração soteriológica?”, pergunta Onfray, que responde: “Pensamos para viver, sobreviver – apesar de tudo...” (Ibid.).

Nesse contexto, Epicuro se revela um pensador resistente e insubmisso aos males provenientes do seu ambiente histórico-social – ele próprio chegou a Atenas na condição de exilado (Ibid., p. 175). Assim, “fisicamente frágil, socialmente desclassificado, movendo-se num momento político decadente, ele compra o Jardim, na periferia de Atenas (...), e o transforma em enclave de resistência” (Ibid., p. 176) intelectual e cultural. Diferentemente da tendência de boa parte dos filósofos que antecederam a época helenística, Epicuro não se interessa em intervir na Cidade para convencer os cidadãos sobre a melhor forma de governo ou bajular os poderosos na condição de conselheiro real – aliás, seria perigoso se o tentasse em virtude do clima político bastante hostil de então. Como única solução possível (e desejável) o pensamento se volta cada vez mais para a introspecção individual, para o cuidado de si, se distancia da política, busca a independência face as circunstâncias. Como observa Onfray, é preciso “mudar-se mais do que mudar a ordem do mundo”:

A ideia se tornará fórmula sob a pena de Descartes; ela triunfa no projeto epicurista. Quando o mundo desmorona, quando a cultura antiga desaparece, nas horas de crepúsculo, as auroras se anunciam: o epicurismo desabrocha numa época em ruínas. A construção de si como única resposta à desintegração de um mundo faz lembrar outros períodos da história... (Ibid.).

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Passemos agora aos detalhes desse hedonismo que, ao contrário do que fizeram crer as calúnias infundadas de seus detratores, faz o elogio do comedimento e cultiva, como virtudes maiores, a prudência, a amizade, o riso, alegria, a liberdade, a autonomia, a construção de si e outras “variações sobre o tema da doçura de viver e do puro prazer de existir” (Ibid., p. 180). Um puro prazer que não pode ser vivido sem um combate ininterrupto contra o mal absoluto para todo hedonista digno desse nome: a dor. O sofrimento parece mesmo ser a coisa mais constante da vida, o elemento mais persistente da natureza, e é contra ele que o epicurismo trava sua batalha maior.