• Nenhum resultado encontrado

Um exercício de escrita e leitura de si

Os filósofos tomam então a escrita autobiográfica como um exercício espiritual do exame e cuidado de si. Nessa ordem de ideias, Michel Onfray reafirma a noção de exercícios espirituais para pensar o romance autobiográfico como uma prática de si que passa por uma escrita introspectiva que é, na verdade, uma leitura de si. Trata-se da introspecção tão recomendada pelos filósofos estoicos da Antiguidade e, assinala Onfray, “um dos principais exercícios espirituais da prática existencial da disciplina” (ONFRAY, 2012a, p. 111). Assim, “no detalhe da vida cotidiana do pensador”, explica ele, “o romance autobiográfico é escrito à maneira de um trabalho filosófico” (ONFRAY, 2018b, p. 240) de si para consigo. “O conjunto desse projeto”, continua Onfray, “procede” e visa “um voluntarismo ético” (Ibid.). Nessa perspectiva do exame da própria vida e da reflexão existencial a escrita autobiográfica acrescenta à escrita filosófica em seu todo elementos que servem para delinear um “testemunho do trabalho entre si e si efetuado pelo filósofo que aspira à sabedoria” (Ibid., p. 243).

Modelos de referência dessa prática atravessam a Antiguidade e parecem se concentrar, depois do período helenístico grego, nas práticas filosóficas cultivadas sob o Império Romano. Após as Cartas, Máximas e Sentenças de Epicuro chega-se, cronologicamente, às Cartas a Lucílio de Sêneca – obra considerada por Onfray como “um monumento no gênero do romance autobiográfico” (Ibid., p. 252) – e ao Manual de Epicteto, de sorte a nos darmos conta de que é toda uma tradição que perdura e evolui por séculos nessa prática de se implicar pessoalmente em reflexões filosóficas compartilhadas com um interlocutor ou discípulo, também eles envolvendo os detalhes de suas vidas em trocas epistolares carregadas de preceitos de sabedoria.

Dentre os antigos, Marco Aurélio e os seus Pensamentos para mim mesmo (obra também conhecida como Meditações) são uma referência maior para Onfray devido à mudança de paradigma que o pensador estoico promove: “Com o imperador filósofo, a escrita filosófica coincide absolutamente com a escrita de si”, de modo que “o exercício do romance autobiográfico se sobrepõe muito exatamente à doutrina” (Ibid., p. 243-244). Desse modo, como observa Denis Huisman, Marco Aurélio pratica “o estoicismo como um ideal estético da existência” (HUISMAN, 2000, p. 362) onde sua vida, seus gestos e atitudes formam a principal matéria de suas reflexões: ele viveu “sua condição humana pensando-a” (Ibid.) a fim de viver de acordo com o que julgava ser o ideal estoico. Daí o caráter inspirador de sua obra, pois nos textos de Marco Aurélio não lemos, mas respiramos o exemplo vivo da ideia de que “a obra é tanto o livro como a vida” (ONFRAY, 2018b, p. 244). Tal é o espírito da filosofia antiga existencial que Onfray busca reativar em seu próprio projeto filosófico.

Em verdade, estamos aqui diante “da grande tradição socrática” que exorta à “introspecção analítica” (ONFRAY, 2012a, p. 109) de si na qual a escrita autobiográfica serve como um espelho reflexivo. Trata-se de uma linhagem a qual pertencem claramente Agostinho e suas Confissões, Montaigne e seus Ensaios, Pascal e seus Pensamentos, Descartes e suas Meditações metafísicas, Rousseau e suas Confissões, mas também seus Devaneios do caminhante solitário, Nietzsche e seu Ecce Homo (Ibid.) e, adicionemos por nossa conta, John Stuart Mill e sua bela Autobiografia. Como entender, pois, que muitos ainda neguem legitimidade a essa longa tradição que não recusa o discurso pessoal nem odeia o eu (não obstante Pascal...18), mas, pelo contrário, o cultiva e o afirma porque reconhece nele o único meio e “ponto de partida” (ONFRAY, 2010, p. 15) possível para o exercício

18

Onfray observa que a tradição e sua história oficial da filosofia “ama a humildade orgulhosa de um Pascal, que, como se sabe, afirma que o eu é odioso, mas, no mesmo fôlego, utiliza 753 vezes a palavra eu nos papelinhos dos seus Pensamentos” (ONFRAY, 2010, p. 13-14).

filosófico? Como compreender que ainda se torça o nariz aos que hoje, à maneira de Onfray, reivindicam essa tradição praticando-a? Thoreau (1817-1862) critica o fato de que “a maioria dos livros omite o eu ou a primeira pessoa” quando, afinal de contas, “é sempre a primeira pessoa que está falando” (THOREAU, 2015, p. 17). Onfray reafirma essa maneira não muito acadêmica, porém muito francesa, de filosofar na primeira pessoa e lembra, a propósito, que o próprio Discurso do método de Descartes por pouco não foi intitulado História da minha vida (Ibid., p. 14).19

Para um filósofo, a autobiografia nunca é um fim em si mesmo, jamais é a simples escrita da própria vida, mas a narração dos meios pelos quais floresceram seus pensamentos e para os quais ele deseja não a ocultação, e sim a valorização desse aspecto muito humano em sua obra. Ele deseja, portanto, revelar a relação vivencial que mantém com a filosofia. A noção socrática de vida examinada exige essa prática da confissão pessoal. Peguemos, por um instante, o exemplo de Montaigne, um mestre moderno absolutamente impregnado pelo espírito antigo: noutra ocasião (COSTA, 2014, p. 41) comentamos o quanto os Ensaios falam do método de educação imposto por seu pai, que o obrigou a aprender latim antes do francês, de sua inabilidade nos exercícios manuais ou esportivos, sua falta de jeito para administração da casa, “de seu gosto pelas ostras e pelo vinho clarete”, sobre o fato de ele nunca tomar “água ou vinho puros”, sobre seu sofrimento com os cálculos renais, as razões que o levaram a ser prefeito de Bordeaux, o horror de viver em meio à guerra civil religiosa, “seus hábitos de leitura, sua falta crônica de memória, seu gato, seu grande amigo, o filósofo La Boétie, a morte deste, seu famoso tombo de cavalo que lhe serve de experiência viva à reflexão sobre a morte, etc”. Pois bem, quando se trata de um filósofo com o gênio de Montaigne, nada disso é dito gratuitamente, mas funcionam como pequenas pepitas da vida que, para além da narração pura e simples de momentos tão pessoais, ensejam para o pensamento sempre à espreita a oportunidade de se manifestar. Dessa forma, o bom leitor dos Ensaios não deixará de perceber o quanto é “a partir dessas histórias – meios de pensamento e não fins em si” (ONFRAY, 2010, p. 14) – que Montaigne

disserta sobre: o papel da educação na construção de uma identidade; a parte herdada em toda evolução pessoal; o papel maior do corpo em sua filosofia; uma reflexão sobre a identidade, o ser, a incerteza ontológica diante de outrem; a parte animal no homem; a importância da determinação, da

19

Nesse sentido, conferir também o excelente e inspirador ensaio de André Comte-Sponville chamado A ego-

filosofia ou a solidão do pensamento: sobre uma tradição francesa em filosofia (In: COMTE-SPONVILLE,

2001, p. 69-102). Ver especialmente as páginas 85-99 no qual o autor aborda essa característica tão marcante da filosofia francesa: ser feita, assumidamente, na primeira pessoa.

segurança e da rigidez estoica; a possibilidade de viver como epicuriano; e outras lições de vida capazes de servir à construção de si para seu autor, decerto, mas também ao leitor envolvido numa cumplicidade amistosa (Ibid.).

Se enganam, pois, os que pensam que a escrita de si exclui o outro porque, na leitura de um filósofo, o outro, o leitor, encontra quase sempre seu espaço ao se deixar enredar nas idas e vindas do pensamento. Montaigne estava bastante consciente desse fenômeno: “O que serve para mim pode porventura servir também a um outro” (MONTAIGNE, 2006, II, 6, p. 70), disse ele. O outro, de fato, poderá se nutrir das ideias alheias a fim de formar seu próprio pensamento uma vez que as proposições feitas por um pensador para si mesmo e a partir de problemas que lhe dizem respeito diretamente estão abertas a interpretações, apropriações e vivências outras. O filósofo parte sempre de si, mas não fica, forçosamente, preso a si mesmo. Por outro lado, ele dispensa qualquer sentimento de culpa por filosofar e escrever na primeira pessoa do singular.

Assim, “entre a recusa do ego e o egotismo alucinado” (ONFRAY, 2010, p. 14), ou seja, entre a detestação do eu e o narcisismo desenfreado, “há um espaço para dar ao eu um estatuto singular: uma ocasião de apreender o mundo a fim de penetrar alguns de seus segredos” (Ibid.). A partir daí, “a narração de um romance autobiográfico” adquire a potência de interferir positivamente noutras subjetividades, também elas desejosas de encontrar pontos de referências (ONFRAY, 2018b, p 244): “A escrita de um romance autobiográfico singular presume a leitura de romances autobiográficos exemplares” (Ibid., p. 245) porque, em filosofia, a leitura é esse exercício espiritual que supõe um “diálogo silencioso e necessário para a indução do movimento ético” (Ibid., p. 244), que é o efeito produzido em nós a partir do contato com as obras de Sêneca, Epicuro, Marco Aurélio ou Montaigne.

Também a filósofa brasileira Marcia Tiburi já abordou o tema da filosofia como experiência pessoal e autoconfissão biográfica. Em seu livro Olho de vidro, de 2011, ela escreve um ensaio introdutório no qual expõe os determinantes tanto das razões motivacionais que a levaram a escrever sobre o tema quanto do método adotado para fazê-lo. Haveria aí alguma relação com a prática onfrayriana de escrita e método? Teria a filósofa brasileira lido o pensador francês e se inspirado, ao menos em parte, em seu modo de composição? Talvez não. Todavia, sem dúvida existe uma forte convergência entre ambos quando ela escreve que

a experiência filosófica é sempre a do acontecimento da própria vida e que a autobiografia não é para o filósofo a narrativa dos fatos, mas do pensado do qual ele é o pensante, do que ele elabora na vida contemplativa, na vida

teórica que caracteriza seu fazer como modo de existir (TIBURI, 2011, p. 58).

Com efeito, no livro em questão Marcia Tiburi realmente conta de que forma sua participação por cinco anos em um programa de televisão funcionou para ela como um “laboratório do pensamento” no qual elabora sua filosofia da televisão, um objeto midiático até então desprezado por ela assim como pela maior parte dos intelectuais. Aludindo a Descartes, Marcia escreve, então, um “discurso do meu método” (In: ibid., p. 13-61) e, ciente de pisar em terreno hostil quando se trata de filosofar confessando uma experiência pessoal, o texto abre com um parágrafo de advertência um tanto cerimonioso, mas, igualmente, apologético de sua postura incomum:

Em primeiro lugar devo pedir desculpas ao leitor pelo longo prefácio com que inicio este livro. Em segundo lugar, a quem não se interessa por motivações devo sugerir que salte esta conversa preliminar e vá para ao primeiro capítulo, onde as questões são colocadas de um modo direto, livres da subjetividade falante deste trecho. Em terceiro lugar, se, munido de sua paciência, desejar passear nestas veredas, prometo só o que tenho a dar: o desejo de sinceridade intelectual. Boa leitura a quem considerá-la um valor (Ibid., p. 13).

Sem dúvida, esse é o maior valor inerente à escrita autobiográfica: a “sinceridade intelectual” de quem reconhece não haver outro modo de pensar e de viver um pensamento senão a partir de uma subjetividade cheia de si e orgulhosa de si porque construtora de si. Sendo assim, mais à frente, na página 58, Marcia Tiburi lança esta questão provocadora: “É possível ser filósofo sem viver a vida com base na pergunta pelo próprio significado da experiência vivida?” (Ibid.). Michel Onfray é dos que mais firmemente vem respondendo que não!