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Pan-hedonismo: a vida sob o domínio de dois senhores soberanos

Grandes nomes da história das ideias reconheceram o predomínio do tropismo hedonista natural e a importância desse fato para pensar a condição humana propriamente dita. Não se escapa a essa constatação quando nossa espécie é considerada em sua natureza. Alguns foram além e afirmaram que o único critério realmente universal sobre o qual devemos pensar as relações entre os humanos, portanto a moral, depois a ética e a felicidade, é o prazer e a dor, ou, o que dá no mesmo, a alegria e a tristeza, o bem-estar e o sofrimento.

Demócrito de Abdera (460-357 a. C.) parece ter sido o primeiro deles, a julgar por este fragmento: “Pois o prazer e o desprazer são o limite (das coisas vantajosas e desvantajosas)”

(DEMÓCRITO, 1996, p. 265). Posteriormente a fórmula é ampliada, desenvolvida e celebrada pelos cirenaicos (os adeptos da escola cirenaica, criada por Aristipo de Cirene (435- 350 a. C.) no século IV a. C., cuja filosofia será objeto de análise mais à frente) que admitiam apenas “dois estados da alma – o prazer e a dor” (DIÔGENES LAÊRTIOS, 2014, II, 87, p. 69).24 Estes filósofos são os primeiros a elegerem o prazer como bem supremo, portanto como princípio e razão de ser da ética. Para isso se fundamentam na natureza humana, ou seja, no fato de que desde a infância somos “atraídos instintivamente para o prazer” assim como somos levados a evitar “o seu oposto, a dor” (Ibid.). Historicamente os cirenaicos podem ser considerados os fundadores do hedonismo filosófico, apesar de, como veremos, Michel Onfray relativizar um pouco essa ideia.

Epicuro de Samos (341-271 a. C.), claro, que assim como Aristipo será capital para este nosso estudo quando discutirmos a gênese da ética hedonista, afirma por sua vez ser o prazer “o princípio e o fim da vida feliz” (Ibid., X, 128, p. 312) uma vez que o prazer é “nosso bem primordial e congênito” (Ibid.). Sendo assim, é a partir do prazer e por ele que escolhemos e rejeitamos o que quer que seja “e a ele voltamos usando como critério de discriminação de todos os bens as sensações de prazer e de dor” (Ibid., X, 129, p. 312-313). Como se vê, ética hedonista e natureza humana não se separam no epicurismo assim como no cirenaísmo. Já Aristóteles (384-322 a. C.), mesmo não sendo partidário da ética hedonista, não deixou de reconhecer esse “pan-hedonismo”25 e dedicou todo o livro X de sua Ética a Nicômaco à discussão do tema, deixando para a história esta fórmula universal: “O prazer e a dor, com efeito, se estendem ao longo da existência inteira e exercem peso na influência relativamente à virtude e à vida feliz, visto que os seres humanos elegem o prazeroso e se esquivam do doloroso” (ARISTÓTELES, 2014, X, 1, p. 357). O estagirita confirma, também ele, o tropismo hedonista.

Entre os modernos essa verdade se faz notória sob a pena epicurista de Montaigne (1533-1592): “O prazer é nossa meta (...), na própria virtude o fim último a que visamos é a volúpia” (MONTAIGNE, 2002, I, 20, p. 120), escreve ele dos Ensaios. Trata-se de uma ideia que ganha força entre alguns representantes maiores do Iluminismo francês, como é o caso do Barão D’Holbach (1723-1789), pensador que fez do princípio hedonista o fundamento de sua

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Doravante, a referência a Diôgenes Laêrtios aparecerá como DL.

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Encontramos essa expressão sendo utilizada por André Comte-Sponville (2011, p. 468) e dela nos apropriamos. Assim como o termo panteísmo significa a ideia de que Deus está em tudo e que o mundo seria o conjunto de suas manifestações ou emanações, de modo análogo pan-hedonismo expressa uma ordem (no caso, a ordem da vida humana) segundo a qual o tropismo hedonista reina absolutamente: O prazer está em tudo. Donde essas palavras de Pascal: “O homem é escravo do deleite; o que mais o deleita, infalivelmente o atrai” (Citado por C.-SPONVILLE, 2011, p. 468).

moral utilitarista e virtuosa: “Os homens são forçados, pela sua natureza, a amar a virtude e a recear o crime, pela mesma necessidade que os obriga a buscar o bem-estar e a fugir da dor” (HOLBACH, 2010, p. 800). É a natureza a força que impera nos seres humanos mesmo quando estes são analisados na perspectiva da política e da moral, e é ela que “os força a diferenciar entre os objetos que lhes dão prazer e aqueles que lhes causam dano” (Ibid.) em qualquer âmbito que seja.

Antes de D’Holbach, John Locke (1632-1704), em seu célebre Ensaio sobre o entendimento humano, faz essa mesma observação certeira ao escrever que a natureza “pôs no homem desejo de felicidade e aversão à aflição” (LOCKE, 2012, p. 50), e que estes são os únicos “princípios práticos inatos que operam e influenciam incessantemente (como sói) todas as nossas ações” (Ibid.). Também Helvétius (1715-1771), pensador esquecido pela tradição, no entanto mais sensato e realista que um Kant, disse o seguinte:

A sensibilidade física produziu em nós o amor ao prazer e o ódio à dor; que o prazer e a dor foram depositados (...) em todos os corações, e aí fizeram desabrochar o germe do amor de si, cujo desenvolvimento deu origem às paixões, de onde saíram todos os nosso vícios e todas as nossas virtudes” (HELVÉTIUS, 1979, p. 230).

Jeremy Bentham (1748-1832), que leu Helvétius e com ele aprendeu a fórmula do utilitarismo, corrente política e moral cujo princípio é a promoção da felicidade do maior número de pessoas (se constituindo, portanto, como um hedonismo aplicado socialmente por meio da política), escreve em forma de imperativo categórico esta fórmula que veio a se tornar célebre: “A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer” (BENTHAM, 1979, p. 3). Estes “dois senhores”, esses dois impulsos da natureza, onipotentes e onipresentes no corpo, logo na alma dos humanos, são incontestavelmente as molas propulsoras de seus pensamentos assim como de suas ações, afirma Bentham. Somos por eles governados “em tudo o que fazemos, em tudo o que dizemos, em tudo o que pensamos, sendo que qualquer tentativa que façamos para sacudir este senhorio outra coisa não faz senão demonstrá-lo e confirmá-lo” (Ibid.).

Enfim, Sigmund Freud (1856-1939) expressa essas mesmas ideias sob uma nova roupagem conceitual denominada princípio de prazer: “O princípio de prazer é um dos dois grandes princípios que regem, segundo Freud, a totalidade da nossa vida psíquica, ou antes, é o único: todo ser humano (talvez até todo animal) tende a fruir o mais possível e a sofrer o menos possível” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 469). O conceito correlato a este é o princípio de realidade, porém ele vem menos se contrapor à sua verdade do que condicioná-la

às condições de possibilidade que o mundo real da vida prática no âmbito da civilização impõe. Assim, segundo Freud, “o princípio de realidade também tem por fim o prazer (...), mas um prazer que, embora diferido e atenuado, tem a vantagem de oferecer a certeza que o contato com a realidade e a conformidade com as suas exigências proporcionam” (Citado por COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 469). Comte-Sponville observa com razão que em sua teoria psicanalítica (supostamente científica...) dos princípios de prazer e de realidade Freud não faz mais que “um comentário, mas psicanaliticamente fundamentado, dos parágrafos 129 e 130 da Carta a Meneceu” (Ibid.) de Epicuro.

Mas precisamente o que esses filósofos vêm afirmando ao longo da história do pensamento encontra, hoje, corroboração científica digna do nome. Esses pensadores que remontam a Demócrito e que estiveram na contramão da tradição espiritualista, platônica, idealista, ascética e cristã, numa palavra, transcendentalista; esses pensadores que consideraram o corpo em sua natureza imanente ao mundo real para dele extrair lições fundamentais sobre a universalidade do princípio hedonista a partir do qual puderam sugerir repostas éticas e políticas a grandes questões humanas; pois bem, o que esses filósofos materialistas, sensualistas, empiristas, hedonistas, utilitaristas, numa palavra, imanentistas sempre intuíram e afirmaram a ciência, hoje, em particular a neurobiologia, tende a evidenciar cada vez mais como sendo realmente a base ontológica certa para que pensadores contemporâneos como Michel Onfray continuem dialogando e dando prosseguimento à tradição filosófica hedonista tão desprezada e perseguida pelo ideal ascético de ontem e de hoje.26 “Não há ética fora do hedonismo”, sentencia Onfray (1995, p. 116). Como efeito, o nosso autor deseja, em nosso século XXI, a retomada da tradição iniciada por Aristipo e Epicuro a fim de propor uma ética filosófica consistente e forte o bastante para combater os niilismos que nos são contemporâneos.

A ontologia, isto é, o discurso sobre a realidade que fundamenta essa ética deve, à maneira do que fizeram os filósofos que acabamos de citar, ancorar-se na natureza que nos constitui. Esta, por sua vez, delegou seus poderes de comando aos “dois senhores soberanos” de que fala Bentham, ou seja, o prazer e a dor, hipótese hoje reforçada, dizíamos, pelos avanços da ciência contemporânea. Os cientistas, quando não são caluniados pelos filósofos (em geral pelos idealistas), são seus verdadeiros aliados (comumente entre os materialistas). Um exemplo para nós emblemático encontra-se na atitude do neurocientista português

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José Ferrater Mora (1912-1991), por exemplo, escreve que “o hedonismo teve muitos inimigos, por motivos o mais diversos: Platão, numerosos filósofos cristãos – sobretudo os de tendência ascética – , Kant e outros pensadores foram anti-hedonistas. Em geral, o hedonismo foi frequente objeto de crítica e, em alguns casos, de menosprezo” (MORA, 2001, p. 329).

António Damásio e, mais precisamente para o nosso interesse no momento, nas belas e verdadeiras palavras com as quais ele inicia seu livro de título e subtítulo bastante sugestivos: Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. Leiamos, então, António Damásio:

Os sentimentos de dor ou prazer são os alicerces da mente. É fácil não dar conta dessa simples realidade porque as imagens dos objetos e dos acontecimentos que nos rodeiam, bem como as imagens das palavras e frases que os descrevem, ocupam toda a nossa modesta atenção, ou quase toda. Mas é assim. Os sentimentos de prazer ou de dor ou de toda e qualquer qualidade entre dor e prazer, os sentimentos de toda e qualquer emoção, ou dos diversos estados que se relacionam com uma emoção qualquer, são a mais universal das melodias, uma canção que só descansa quando chega o sono, e que se torna um verdadeiro hino quando a alegria nos ocupa, ou se desfaz em lúgubre réquiem quando a tristeza nos invade (DAMÁSIO, 2004, p. 11).

Com essa bela passagem escrita por um cientista de alma filosófica, concluamos pelo fato de que, sim, existe um hedonismo universal definido por esse tropismo entre prazer e dor instalado em cada ser humano, bem como em cada outro animal, pela natureza. Contudo, há igualmente, como extensão dessa natureza primeira, porém como obra astuciosa do epifenômeno que é a razão, um hedonismo humano, exclusivamente humano, até mesmo mais que humano, vale dizer, um hedonismo filosófico, logo cultural. Este último parte daquela tendência instintiva e universal, evidentemente, mas seus fins são diversos e até mesmo infiéis à sua natureza primeira porque se realizam no âmbito da cultura e do artifício do querer humanos. É que o ser humano, ao menos o ser humano sábio, percebeu que vive melhor segundo sua natureza quando não lhe obedece cegamente, mas ponderadamente. Para isso ele se vale da sua razão enquanto artifício cultural.