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A felicidade entre prazeres em repouso e júbilos em movimento

4 A INSPIRAÇÃO CIRENAICA E EPICURISTA: GENEALOGIAS DA ÉTICA

4.1 Aristipo de Cirene

4.1.3 A felicidade entre prazeres em repouso e júbilos em movimento

A liberdade, então, está acima de tudo. Ela é o caminho que mais seguramente conduz à felicidade porque é aquele que permite a independência de espírito e a autonomia ética necessárias à fruição dos prazeres sem o risco de uma alienação. Todavia, em Aristipo, hedonismo e eudemonismo, apesar de se complementarem, não se confundem. Sendo assim, e considerando que o próprio Aristipo sugeriu o tema, abordemos a felicidade partir da distinção feita por ele entre esta e o prazer, uma vez que se trata de um problema importante por nos conduzir a uma clara oposição entre o mestre de Cirene e Epicuro, o sábio do Jardim. Já sabemos que Aristipo concebe o prazer como o soberano bem. Falta-nos analisar, no entanto, a clara distinção que ele faz entre este e a ideia de felicidade. Com efeito, Diógenes Laércio registra que para os cirenaicos somente “o prazer isolado” é propriamente dito o “bem supremo”, ao passo que a felicidade não é compreendida por esses filósofos senão como a somatória “de todos os bens isolados, na qual incluem também os prazeres passados e futuros” (DL, 2014, II, 87, p. 69). Está claro: a felicidade é o conjunto maior no qual está contido a totalidade dos prazeres vividos e por viver, e esta é uma definição idêntica a que apresentamos anteriormente (Cf. supra, tópico 3.5).

Não obstante, e este é o ponto, os cirenaicos negam que exista prazer na recordação ou na expectativa dos prazeres porquanto estes só existem propriamente no instante presente em que se manifestam no corpo. Por essa razão, prazer e felicidade só podem ser concebidos como duas formas irredutíveis de se relacionar com o tempo, um tempo posto sob o signo da alegria: “Se a definição temporal do gozo coincide com o instante”, explica Onfray,

a da felicidade refere-se aos três constituintes do tempo: passado, presente e futuro. A lembrança de um prazer, a expectativa e o desejo de um prazer são maneiras de gerar uma alegria que estrutura e constitui a felicidade (ONFRAY, 2008, p. 123).

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Impossível não lembrar aqui de Nietzsche, pois, de fato, o filósofo alemão escreve em A gaia ciência ser tão “odioso seguir” quanto “guiar”: “Obedecer? Não! E tampouco – governar!” (NIETZSCHE, 2001, “Brincadeira,

astúcia e vingança”, § 33, p. 33). Quanto à citação de Aristipo feita por Xenofonte, trata-se de um registro

doxógrafo importante de que Onfray fez uso em L’Invention du plaisir: Fragments cyrénaïques (Cf. ONFRAY, 2002, p. 49-50 e 188).

Recordar um júbilo ou esperar pela realização de um pode até significar uma alegre expectativa, mas não é o mesmo que gozar. O gozo em si mesmo pertence exclusivamente a um ato realizado no puro instante presente. Porém, condensado assim na ponta extrema de um momento imediato fadado a tornar-se rapidamente passado, sua natureza se mostra evanescente e seu prolongamento no tempo, impossível – donde a necessidade de se entregar aos seus ritmos cíclicos compostos por desejos, necessidades e satisfações ininterruptamente recorrentes. Por conseguinte, o término de um prazer vivido na carne representa o fim do movimento fisiológico que o produziu bem como o prenúncio de um novo movimento. Aquilo que permanece na memória corporal, a doce lembrança que resta da experiência já não é prazer, e sim felicidade. Eis aqui a prova, segundo os cirenaicos, de que é o prazer, e não a felicidade, o verdadeiro bem: enquanto aquele aparece sempre como o alvo almejado e o fim a ser alcançado, esta não parece ser desejada por si mesma, mas unicamente em função do conjunto dos prazeres que encerra (DL, 2014, II, 88, p. 69). Apenas o prazer é concretamente vivido. A felicidade, enquanto lembrança, desejo e expectativa em relação aos prazeres permanece, assim, como certo estado de espírito pleno e ideal, mas sem sustentação própria. Em suma, sem os júbilos efetivamente vividos não há felicidade. E ainda que gerem sofrimentos, os prazeres existem por si mesmos, ao passo que a felicidade, sem estes, não passa de sonho e idealização sem nenhuma materialidade.

Donde esta outra problemática: considerando que alguns prazeres provêm de causas geradoras de desprazeres – atente-se bem: não são os prazeres por eles mesmos que geram dores, mas suas fontes causais quando são mal escolhidas ou mal dosadas (um exemplo clássico disso é a alimentação e o consumo de bebidas alcoólicas que, em excesso, causam sem dúvida prazer, ainda que este dure pouco para logo dar lugar a dores e frustrações) – , e como a evitação da dor é um elemento estratégico imprescindível a toda ética hedonista, e considerando, ainda, que o acúmulo de prazeres dessa natureza não produz felicidade, sendo penoso para o indivíduo cultivá-los, tais prazeres devem, então, ser evitados de modo decisivo (Ibid., II, 90, p. 69). Eis aqui, no cerne da doutrina cirenaica, um aparente paradoxo: enquanto, num primeiro momento, como vimos, Aristipo não faz nenhuma distinção entre os prazeres porquanto todos eles produzem sensações agradáveis, constatamos agora, por outro lado, que ele preconiza um princípio qualitativo segundo o qual os júbilos devem ser escolhidos a partir de sua potência eudemonística.

Apesar disso, Aristipo define o prazer de modo bem diferente de como ele será concebido na doutrina epicurista. Aqui, na alvorada da história do hedonismo, o júbilo surge,

é inventado, como diz Michel Onfray,51 já em seu ápice. Ou seja, ele é positivo, ativo, cinético, dinâmico. Uma vez que prazer e dor são movimentos (um suave, o outro brusco), portanto afecções positivas que agem sobre o corpo, Aristipo constata a impossibilidade de existir prazer num estado de repouso em que porventura o corpo e a alma se encontrem. Também não há, para ele, prazer em escala negativa, o que significa dizer que o alívio proporcionado pela remoção de uma dor que nos aflige não deve ser confundido com um gozo propriamente dito. É assim para os epicuristas, uma vez que estes defendem a ideia de que no momento em que ocorre a extinção de uma dor surge, concomitantemente, o prazer, precisamente o prazer de deixar de sofrer.

Oportunamente seja dito que o nosso Machado de Assis, em seu Memórias póstumas de Brás Cubas, no capítulo intitulado A propósito de botas, ilustra com ironia literária essa “felicidade barata” professada pelos epicuristas que contraria as teses cirenaicas. Machado chega inclusive a mencionar o próprio Epicuro. Leiamos a passagem, pois ela é emblemática e, como parte de toda grande obra literária, rica em ideias filosóficas:

(...) Deixei-o nessa reticência, e fui descalçar as botas, que estavam apertadas. Uma vez aliviado, respirei à larga, e deitei-me a fio comprido, enquanto os pés, e todo eu atrás deles, entrávamos numa relativa bem- aventurança. Então considerei que as botas apertadas são uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as descalçar. Mortifica os pés, desgraçado, desmortifica-os depois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro. Enquanto esta ideia me trabalhava no famoso trapézio, lançava eu os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha perder-se no horizonte do pretérito, e sentia que o meu coração não tardaria também a descalçar as suas botas. E descalçou-as o lascivo. Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse rápido, inefável e incoercível momento de gozo, que sucede a uma dor pungente, a uma preocupação, a um incômodo... Daqui inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas (ASSIS, 2008, XXXVI, p. 113).

Nos cirenaicos não é assim, porquanto consideram eles que “prazer e dor são movimentos, ao passo que nem a ausência da dor nem a ausência do prazer são movimentos” (DL, 2014, II, 89, p. 65). O que pensar, então, da falta de movimentos, isto é, da ausência dos afetos fundamentais de toda vida animal? Para Aristipo, a ausência de dor definitivamente não é um prazer, mas “a condição da pessoa adormecida” (Ibid.). É portanto um estado de

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Em Onfray, o capítulo de As sabedorias antigas que trata de Aristipo, bem como sua obra doxográfica dedicada aos cirenaicos se chamam, precisamente, A invenção do prazer (Cf. ONFRAY, 2008, p. 103-125 e Id., 2002).

completa insensibilidade e indiferença, de sentidos e emoções adormecidos, condição própria de um corpo anestésico. O hedonismo, ao contrário, preconiza um corpo de aguçada sensibilidade, até mesmo um corpo hiperestésico. Não é que deixar de sofrer não seja agradável, longe disso: como dissemos, uma vez que todo filósofo hedonista faz da dor o mal absoluto, livrar-se dele já representa uma doce vitória, como demonstra com perfeição o Brás Cubas de Machado de Assis. Mas daí a se contentar com esse estado de espírito em que nem fruímos nem sofremos? Fazer dessa condição de neutralidade física e psíquica um ideal? Não, a serenidade desejada por Aristipo não vai tão longe, ou melhor, não fica tão aquém das possibilidades de júbilos positivos que a vida nos oferece.52

A ausência de dor e de prazer não representa nada para Aristipo exceto uma qualidade intermediária (Ibid., II, 90, p. 69), uma espécie de ponto neutro momentâneo entre as constantes movimentações que se dão de um polo a outro entre a dor e o prazer. Trata-se de uma dinâmica a que o corpo está submetido. Para lançar mão de uma imagem, pensemos numa linha vertical graduada representando a escala das afecções: abaixo de zero temos todas as variações inerentes à negatividade, a saber, penas, angústias, dores, penúrias e sofrimentos diversos. Obviamente é melhor encontrarmo-nos no nível neutro ou zero (quem sabe até mesmo mortos...) ou em algum ponto próximo disso do que permanecermos indefinidamente no epicentro dessas zonas negativas e sombrias carregadas de rangidos e gemidos, de lástimas e lamentos, de agonias e tormentos dantescos. Todavia, apenas o que se encontra acima de zero é digno de ser denominado prazer, júbilo, gozo ou alegria.

Em suma, para Aristipo a fruição é positiva ou não o é, pois para ele não existe o prazer dito negativo tão caro a Epicuro em um desenvolvimento posterior do hedonismo. Para o cirenaico, a ausência de perturbação é simplesmente o intervalo que coincide com uma aparente pausa do movimento que oscila ininterruptamente entre um sofrimento e um júbilo em seus mais diversos graus de intensidade e complexidade. Contudo, esta disposição fisiológica cara à noção grega de ataraxía (calma, tranquilidade, ausência de sofrimento) não é um prazer, menos ainda um desprazer, mas algo como “um entre-dois que nada basta para denominar prazer” (ONRAY, 2008, p. 122). Significa afirmar que “não ser infeliz não

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Aliás, recorramos aqui, mais uma vez, ao neurocientista português António Damásio para ressaltar que nem mesmo as regulações vitais homeostáticas do corpo buscam essa neutralidade ou estado de equilíbrio das funções orgânicas: “Não contente com as benesses da sobrevida”, escreve Damásio, “a natureza tratou de nos proporcionar uma mais-valia: o equipamento inato da regulação da vida não está desenhado para produzir um estado neutro, a meio caminho entre a vida e a morte. Pelo contrário, a finalidade do esforço homeostático é produzir um estado de vida melhor do que neutro, produzir aquilo que nós, seres pensantes, identificamos com o bem-estar” (DAMÁSIO, 2004, p. 42-43). Ou seja, nosso impulso ao prazer é algo mais profundo do que supomos e mais: a função deste está diretamente relacionada à produção de uma maior vitalidade, portanto de uma vida mais potente.

equivale a ser feliz; não sofrer não é usufruir; a ausência de negatividade não constitui uma positividade” (Ibid.), mas sim uma espécie de neutralidade emocional que não interessa a um Aristipo tão afeito às agitações agradáveis da vida.

Não obstante, pode-se legitimamente perguntar: o que deseja, então, um cirenaico? Qual sua meta? Que télos para sua ética hedônica? No que se resume seu projeto filosófico? Não parece menos genuíno responder que todos os seus fins se concentram na possibilidade de realizações plenas no âmago mesmo do instante presente, um instante, porém, sempre em movimento, sempre em devir. Sobre isso, Michel Onfray diz o essencial:

Tornar-se disponível para o presente e solicitar-lhe oportunidades ativas para conhecer os sinais característicos do prazer – a volúpia que instiga

agradavelmente os sentidos, para falar como Cícero – , eis uma definição do

hedonismo. Pura presença disponível no mundo, capacidade de acolher volúpias e alegrias, adesão ao real, são maneiras de se curar dos sofrimentos psíquicos, tarefas a que Aristipo designa a filosofia (ONFRAY, 2008, p. 122)

Anos antes de escrever essa bela passagem, a diferença entre prazer epicurista e gozo cirenaico levou Onfray a tecer duras críticas ao sábio do Jardim quando de seu primeiro comentário sobre Aristipo. Com efeito, em A arte de ter prazer ele qualifica os epicuristas de “tristes” por assimilarem “o prazer à satisfação negativa, à quietude que atua nos cadáveres” (ONFRAY, 1999a, p. 239). Mais à frente, sempre opondo a ordem estática dos epicuristas aos desejos dinâmicos dos cirenaicos, ele escreve: “O prazer epicurista consiste simplesmente na evitação da dor: é negativo e reativo – gozar é não sofrer – , ao passo que o dos cirenaicos é positivo e ativo” (Ibid., p. 242). Até aí tudo bem, mas o contraste entre as duas escolas se torna ainda mais acentuado na pena do então jovem Onfray, que se vale dessa diferença para radicalizar seu elogio aos cirenaicos em detrimento dos epicuristas. Assim, “uns visam a impassibilidade do cadáver, os outros a exuberância da vida” (Ibid.). Desse modo, recorrendo à imagem do corpo inerte e sem vida para se referir à ataraxia de Epicuro, ele escreve: “O epicurista quer destruir nele as paixões, os desejos, a tentação da volúpia: seu modelo é o cadáver que ignora a fome e a sede, o frio e o calor, o desejo e a inquietude” (Ibid.). E mais: “A doce impassibilidade da carne morta”, eis a meta do epicurista... em vida.

Por fim, em outra passagem o nosso autor conclui que “Epicuro não gosta da vida” e que por isso dedica seu arsenal filosófico à prática do “ideal ascético” enquanto que Aristipo, este sim, “gosta da existência e se rejubila na afirmação e na boa saúde” (Ibid., p. 242-243). Onfray se refere a Epicuro até mesmo como um “pseudo-hedonista” (Ibid., p. 265), uma

afirmação realmente injusta que nem mesmo a lembrança feita na mesma página da dívida que os libertinos do Grande Século têm para com o atomismo epicurista ameniza. Não é que essas considerações sejam de todo equivocadas – elas de fato consistem numa interpretação possível do sistema de Epicuro – , mas, sim, que esse elogio sem reservas a Aristipo em comparação com essa crítica forte feita ao hedonismo mais morno e ameno de Epicuro nos parece próprios de uma verve juvenil ainda muito viva nesse momento específico em que Onfray escreve (lembremos que A arte de ter prazer data de 1991, quando o nosso autor tem apenas 32 anos). O fato é que, posteriormente, como veremos, o amadurecimento intelectual de Onfray trouxe consigo uma adesão quase que total ao mestre do Jardim e, ao menos em As sabedorias antigas, a importância de Epicuro supera sobremaneira a de Aristipo que, no entanto, permanece uma referência importante.