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Da dor de estar no mundo à potência hedonística de existir

Em Féeries anatomiques: généalogie du corps faustien Michel Onfray, com humor, imagina as queixas e resmungos daqueles que tanto se incomodam com suas páginas escritas na primeira pessoa: “Que prazer em fornecer armas para a crítica que execra a mistura do gênero autobiográfico e do trabalho filosófico...” (ONFRAY, 2003, p. 79). Todavia, não se trata de uma provocação gratuita, e sim do exercício legítimo de um método originário da convicção de que “toda teoria procede de experiências vividas por uma carne arranhada e dolorida de estar no mundo” (Ibid.). Repitamos: vida e filosofia, na obra de Michel Onfray,

são duas instâncias indissociáveis. Dito isso, que nos seja permitido, a fim de exemplificar, fazer uma abordagem sobre o prefácio do livro A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista, no qual o nosso autor narra a experiência determinante de sua vida de filósofo, de teórico do hedonismo e de arauto de uma ética que toma o prazer como guia existencial. Dessa forma poderemos seguir pela ponte que nos conduzirá diretamente aos três capítulos restantes desta dissertação, capítulos exclusivamente dedicados à elucidação desse hedonismo filosófico o qual não existiria, para Onfray, sem a precoce experiência com a mais intensa dor de existir – pois a dor, à sua maneira, é também um guia para a existência.

E de fato o texto em questão se chama Algodiceia: genealogia da minha moral (ONFRAY, 1999a, p. 11-21). Ora, algodiceia é a junção da palavra grega álgos, que significa “dor”,20

e “odisseia”, do grego odysseía, que, como é notório, deriva diretamente da Odisseia de Homero, poema grego épico, para significar, em sentido figurado, qualquer narrativa enriquecida de aventuras extraordinárias (Michaelis) ou uma “série de complicações, peripécias ou ocorrências singulares e inesperadas” (Aurélio). A julgar, pois, pelo significado de “algodiceia”, o nosso autor pretende narrar a odisseia de uma dor, a sua, para dela extrair uma interpretação metafísica e, assim, fazer da forte experiência com o sofrimento a gênese de uma ética hedonista, vale dizer, uma ética de combate à dor que toma o corpo como cúmplice e aliado na busca do prazer enquanto elemento expansível da potência de vida sem, contudo, em nenhum momento, ignorar a condição trágica em que esta está imersa, condição necessária bem difícil de ignorar quando a morte acena de tão perto.

Não se escapa sempre à dor e ao sofrimento. Quanto à morte, esta se impõe universalmente para suplantar a vida que enquanto tal fora afirmada com ela, apesar dela e, por um ínfimo instante, contra ela. Para Onfray, a lição deixada por sua algodiceia não foi apenas a de resistir à morte enquanto isso for possível, mas também a de que é preciso fazê-lo com arte, prazer e alegria apesar da dor e do sofrimento predominante no mundo e do nada que nos espera quando enfim deixarmos de aqui estar. “Nenhuma gaia ciência está isenta de uma concepção trágica do real” (ONFRAY, 1999a, p. 277), e a gaia ciência hedonista de Michel Onfray se inscreve na tradição atomista de Demócrito e Epicuro para, a partir dessa base ontológica, demonstrar como é possível construir sentido para uma vida posta a priori sob o signo da dor e da ausência de todo encantamento metafísico. É da afirmação da

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No vocabulário epicurista encontra-se a forma substantivada algedón a qual significa, precisamente, “dor” ou “sofrimento” (Cf. SILVA, 2018, p. 104). Entre as variantes de sentido que a palavra adquire na obra de Epicuro nos apropriamos, por ora, desta: “Ausência de felicidade causada por dores do corpo” (Ibid.). De álgos deriva também o termo médico “algia” para expressar qualquer tipo de dor, bem como “algofilia”, que define, na psiquiatria, a “perversão sexual” caracterizada pelo desejo de sentir dor (Aurélio).

condição trágica do ser humano que surge, então, uma filosofia da alegria e do prazer, mas cuja base existencial não deixou de ser desesperante na mais profunda relação com a dor, e isso até o ponto de a própria morte ser desejada como o mais doce dos bálsamos.

Assim, Onfray inicia o livro no qual tece os princípios de um pensamento sobre o corpo e as virtudes éticas do hedonismo narrando as memórias indeléveis de um enfarte sofrido aos... vinte e sete anos de idade. “Naquela segunda-feira, 30 de novembro”, escreve ele, “meu corpo experimentou uma sapiência que se transformaria em hedonismo” (Ibid., p. 13). Estranhamente, a sabedoria veio de um corpo cuja vontade de vida foi inteiramente consumida pela agudeza máxima em que a dor se fez sentir: “Todos os movimentos necessários à minha descida da ambulância para dar entrada no pronto-socorro do hospital foram dolorosos. Eu tinha vontade de um imenso sono, de uma morte reparadora” (Ibid., p. 14). Em momentos como esse, é forte a impressão de que o ápice da dor e do dilaceramento do corpo foi alcançado. Daí que nem mesmo a morte assusta mais, pelo contrário: “Há uma paz em saber que um além do pior está totalmente excluído” (Ibid., p. 15). Talvez a dor seja a forma mais eficaz de o real se impor em toda sua intensidade, brutalidade e autoridade (Ibid.). Mas pode ocorrer também de a própria consciência ser perturbada e, assim, qualquer consolo se extingue. Nesse caso, a dor impera absolutamente e se faz sentir em toda sua pureza. No extremo, “o nada” se torna “desejável e parece doce quando a dor aniquila todo controle e o corpo” é reduzido a uma pura “estrutura animal” (Ibid.). “Sofrer como um animal”, eis o que significa “conhecer a deserção da consciência e da inteligência, depois a emergência de um devir imundo – a carne como único receptáculo da morte, como lugar de eleição do traspasse” (Ibid.).

Primeiros socorros, primeiras incisões efetuadas na carne pelos médicos. Diagnósticos apontam a necessidade de transferência emergencial, de helicóptero, até o hospital de referência. Contudo, a neblina impossibilita a operação de voo e o transporte precisa ser feito de ambulância. Nesse caso, o paciente enfrenta um trajeto que prolonga sua convivência com a dor no lugar da morte desejada: “Passar tão perto da morte e escapar dela me parecia inadequado, um pouco como uma falta de gosto – pois é preciso saber morrer quando ainda é tempo” (Ibid., p. 17) – todavia, não está nas mãos de um enfartado sob cuidados médicos decidir acerca da morte voluntária... Na emergência do hospital, operações cirúrgicas são feitas sobre um corpo nu esgotado, fragilizado, destruído pela dor e incapacitado para a vida. Nesse momento, uma constatação se impõe: “A morte é simples, pois transforma definitivamente o corpo em puro objeto, ao passo que o sofrimento, mais complicado, coloca- o do lado da impureza: mistura de passividade e consciência, de desordem e saber, de

impotência e certeza” (Ibid.). Segue-se uma descrição dos procedimentos médicos: “A pele é incisa, a carne aberta, o corpo penetrado” (Ibid.) por sondas que forçam caminho pelas artérias até o coração, “onde desabrocham em buquês metálicos” (Ibid.). “O sangue jorra da virilha aberta, escorre pelas pernas e imagina-se a própria carne maculada pelo próprio sangue” (Ibid.).

Sobre a dor, André Comte-Sponville diz algo interessante: ela é um de nossos “afetos mais fundamentais” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 183), tal como o prazer, sendo, no entanto, o exato contrário deste. Segundo diz com justeza, não existe teoria capaz de expressar o que é a dor com propriedade. A experiência de por ela ser afetado encerra toda manifestação possível. O corpo, aqui, é soberano e detém, sozinho, toda a razão. Assim, ele já “nos diz o bastante” o que é a dor, “e melhor que uma definição” (Ibid.). Por isso Comte-Sponville é econômico nas palavras sobre a dor no verbete que lhe dedica em seu Dicionário Filosófico sem, no entanto, deixar de dizer o que pode ser dito, e suficientemente, sobre ela: “A dor é mais que uma sensação penosa e desagradável”, escreve ele. A dor “é uma sensação que não se pode esquecer, que se impõe absolutamente, que impede qualquer bem-estar, qualquer relaxamento, qualquer repouso, enfim que é possível suportar, quando é viva, apenas no horror ou no heroísmo” (Ibid.).

Por conseguinte, o conhecimento pela dor é aquele que vem através dos abismos inerentes à condição trágica da existência humana. Conseguir escapar ao abismo após encará- lo tão dramaticamente exige de um filósofo que se faça a metafísica dessa vivência. Uma lição da qual não é possível se esquivar aqui é a da mais manifesta certeza quanto à singularidade radical da experiência profunda da vida evidenciada na impossibilidade de partilhar afetos fundamentais como prazer e dor, tão radicalmente instalados na dimensão atômica e nuclear do corpo de cada um de nós. “A dor é uma odisseia singular que possui, assim como o prazer, o estranho privilégio de revelar a solidão, de mostrar a evidência metafísica em luzes ofuscantes e aterrorizantes” (ONFRAY, 1999a, p. 19), escreve Onfray, concluindo que “o conhecimento da dor se metamorfoseia em conhecimento pela dor” (Ibid.) na qual a experiência de quase morte se transforma, a posteriori, em experiência metafísica apreendida com a maior das propriedades apenas pelo corpo, já que nele impressa definitivamente.

Após sobreviver à morte, ainda na sala de recuperação, outra lição existencial adveio da necessidade imposta pelo destino de ter de testemunhar, após os esforços desmedidos dos médicos e enfermeiros, a morte de um idoso igualmente infartado. Como não desenvolver a partir daí uma radical alteridade, princípio elementar de toda ética e da ética hedonista em

particular? As teses de Michel Onfray estão, todas elas, enraizadas em suas próprias experiências da vida viva, inclusive no que ela tem de mórbido e de contato com a morte. Dessas experiências provêm sua incansável tentativa de definir e defender um sistema hedonista em torno do qual orbitam suas obras. Tal filosofia procede, portanto, de uma lição de morte, morte esta que, porque não se efetivou, pôde, por isso mesmo, instruir sobre o seu contrário, a vida. Assim, dando seu testemunho existencial, Onfray escreve que “depois daquela lição de trevas” não restava outra coisa senão “fazer do corpo um parceiro da consciência, reconciliar a carne e a inteligência” (Ibid., p. 21). De fato, esse corpo que pensa e essa carne capaz de cultura e inteligência constituem os fundamentos fisiológicos de sua ética e de seu projeto filosófico.

Três anos mais tarde Onfray retorna ao centro hospitalar, desta vez na condição de sobrevivente visitante. Estamos lendo o epílogo do livro, sugestivamente intitulado Disjecta membra, uma expressão latina que significa “fragmentos dispersos”. O nosso autor é agora um filósofo decidido a tomar lições de anatomia antes de seguir em frente. Visita então as regiões menos vivas e mais macabras do hospital universitário, as salas de dissecações. Numa delas se depara, como que por acaso, “com antebraços num balcão, e, no outro, duas mãos” (Ibid., p. 316), órgãos separados de seus corpos originais, eles próprios reduzidos à condição de fragmentos corporais. Em seguida vê cadáveres e ainda outros órgãos espalhados, restos mortais úteis como materiais pedagógicos à ciência médica. Assiste então a um grupo de estudantes de medicina, futuros cirurgiões, exercitando sua arte sombria sobre um tórax aberto de um corpo sem cabeça e sem braços. Desprovido da vocação necessária, sua experiência se faz acompanhar por náuseas e mal-estares. Como poderia ser diferente, uma vez que se seu próprio corpo escapou da condição em que agora estes se encontram, corpos inertes, há muito esvaziados de sua energia vital?

É ao término dessas páginas autobiográficas que Onfray declara seu amor à vida e sua vontade de usá-la “até furar a sola” (Ibid., p. 319), um sentimento carregado dessa urgência de viver que um dia foi expresso por Henry David Thoreau numa página do seu Walden: “Queria viver profundamente e sugar a vida até a medula, viver com tanto vigor e de forma tão espartana que eliminasse tudo o que não fosse vida” (THOREAU, 2015, p. 95-96). Também Onfray deseja eliminar de seu horizonte tudo o que não é vida, com a diferença de que seu ímpeto está nos antípodas de uma austeridade espartana, pois o seu desejo é o de viver de modo verdadeiramente hedonista. Contudo, priorizar a pulsão de vida em detrimento da pulsão de morte significa também afirmar a vida tal como ela é, e ela é algo que está condicionado à mortalidade. Algodiceia e Disjecta membra, prólogo e epílogo de um tratado

para uma Arte de ter prazer, são textos que expressam um pensamento trágico. Eles demonstram que na obra de Onfray o impulso à vida com prazer e alegria não é inconciliável com a condição trágica dessa mesma vida, mas, ao contrário, é a sua própria expressão visto que o hedonismo, “sem o trágico”, não é senão “uma impostura”.21

O que é o trágico em Michel Onfray? Aqui ele não inventa nada de novo, porque não precisa. O trágico é simplesmente a atitude existencial de quem procura, sem alimentar ilusões, ver e encarar a realidade tal como ela é, inclusive com suas dores, seus sofrimentos e principalmente com a finitude que a natureza impõe a tudo o que vive. Nem pessimista nem otimista, o indivíduo trágico é aquele que vê as coisas como elas são. Que o real se manifeste em toda a sua autenticidade: a vida “é assim e não de outra maneira. Fatum, diziam os romanos” (ONFRAY, 2019, p. 32), e isso é o próprio trágico, ou seja, uma adesão ao que é. Podemos dizer, assim, que o pensamento trágico é caracterizado por uma intensa consciência da morte, sendo a morte aquilo que funda, ontologicamente, a condição trágica do ser humano.

Não devemos nos enganar em relação a isso, pois tudo passa por aí: “Toda existência é construída sobre areia” e “a morte é a única certeza que temos” (ONFRAY, 1999a, p. 21). Contudo, que atitude o filósofo hedonista deve assumir ante o fato da morte? Sem cultivar um pessimismo mórbido nem um otimismo ilusório – um ama a morte, o outro finge que ela não existe – , sua postura tem de ser o de um desprezador da morte (Ibid.). A morte está logo ali, como se sabe. No entanto, basta saber disso e não se enganar quanto a isso. De resto, enquanto estamos aqui, vivendo, cuidemos de recusá-la e de desprezá-la. Ora, para Michel Onfray “o hedonismo é a arte desse desprezo” (Ibid.), o que se traduz em uma forma de arte da afirmação da vida. Deixemos, pois, à morte o que a ela pertence. A vida é um pequeno intervalo da matéria consciente entre dois nadas: o nada que fomos, e o nada que seremos por toda uma eternidade. O hedonismo é uma opção por um modo de vida enquanto há vida. É, então, uma recusa da morte.

Mas com isso atingimos uma de nossas questões principais, a saber: o que é, propriamente dito, o hedonismo, inclusive em sua condição pré-filosófica? Com efeito, antes de abordarmos o hedonismo enquanto sabedoria e arte de conduzir uma existência, precisamos considerar seu aspecto ontológico, qual seja, a de uma força da natureza que impulsiona a vida e a ação humana a partir de dois afetos primordiais: a dor e o prazer. O

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L'écriture, la mort, les médias, la politique : les confidences du philosophe. Entrevista de Michel Onfray ao Le Figaro de 27 de abril de 2018. Disponível em: https://www.lefigaro.fr/vox/societe/2018/04/27/31003- 20180427ARTFIG00347-l-ecriture-la-mort-les-medias-la-politique-les-confidences-du-philosophe-michel- onfray.php. Acesso em: 21 dez. 2019.

hedonismo é uma espécie de dialética entre a morte e a vida, entre o desprazer e a alegria, entre o sofrimento e o gozo. Em Michel Onfray, como vimos em Algodiceia, é precisamente porque a dor existe que precisamos cultivar o prazer.

3 O QUE É HEDONISMO?

O nosso autor é categórico: “Somente o corpo permite conhecer”, porquanto o corpo é uma máquina sensualista “que sente, prova, toca, olha, ouve e informa um cérebro que constrói a realidade, fabrica imagens e produz representações” (ONFRAY, 2009, p. 31). O corpo é a via direta para o conhecimento da physis, isto é, da natureza e de si mesmo enquanto ente natural. Do mesmo modo, apenas o corpo permite o prazer, e o prazer é parte integrante do processo de conhecimento do mundo. O hedonismo é tributário do sensualismo, ou seja, trata-se de uma ética ancorada numa ontologia da matéria corporal (Ibid.). Por isso a tradição filosófica hedonista nunca toma o corpo como um objeto a ser desprezado, mas, ao contrário, sempre o teve em altíssima conta. O prazer, por certo, mas também as paixões, bem como a dor e o sofrimento tornam-se, aqui, “instâncias dignas de consideração filosófica” (ONFRAY, 1995, p. 162). É que somente pensando o corpo e buscando os meios de libertá-lo das amarras morais e dos erros da ignorância o filósofo pode conceber uma ética que é, na verdade, uma dietética de seus prazeres – e o prazer, diferentemente da dor, é, para falar como Espinosa, paixão alegre, pulsão de vida, aumento da potência de existir, donde sua importância enquanto fundamento ético.

Os usos dos prazeres são vários e pressupõem uma arte de lidar com eles que culmina, em última instância, em uma arte de viver. Somente uma sabedoria hedonista permite fazer do conjunto dos prazeres possíveis uma potência de vida, ao passo que seu oposto, a ignorância, frequentemente o converte em pulsão de morte. Eis então a razão de ser deste capítulo: iniciar uma abordagem conceitual do hedonismo visando distinguir o hedonismo inerente à nossa natureza biológica daquele que será pensado, a posteriori, como um produto genuinamente cultural que, no entanto, faz daquela natureza mesma sua substância principal. É preciso ainda dizer o que o hedonismo filosófico não é, e ele não é isso que hoje vulgarmente se entende por hedonismo no âmbito da sociedade capitalista e consumista que é a nossa. Enfim, não é possível pensar o prazer e suas implicações éticas sem analisarmos sua relação com a felicidade. Desse modo, fecharemos este capítulo com o convite que Onfray nos faz para não ver o hedonismo e o eudemonismo como dois mundos conceituais e existenciais demasiado distantes um do outro.