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A aplicação da justiça transicional na Grécia pós-autoritária

A princípio, o Governo estava relutante em iniciar qualquer pro- cesso de justiça transicional (Alivizatos e Diamandouros 1997, 37-39).

No contexto das tensas relações greco-turcas, compreende-se a relutân- cia em aplicar justiça transicional contra segmentos dos militares, num período em que a guerra com um país vizinho podia eclodir a qualquer momento. A juntar às prioridades salientadas acima, o Governo tinha igualmente de considerar, no caso de um saneamento, a possibilidade de uma reação das Forças Armadas, no seio das quais a Junta ainda tinha bolsas de apoiantes, e esse receio conteve o novo Governo de- mocrático.

A estas razões para a purga inicialmente hesitante de funcionários do aparelho de Estado que tinham estado ao serviço dos coronéis, há que acrescentar a afinidade ideológica de outrora entre alguns membros dos Governos pós-1974 de Karamanlis e os oficiais da Junta Militar. Os pri- meiros, isto é, os ministros tradicionalistas, tinham sido quadros da elite política conservadora pré-1967, representada pela conservadora União Nacional Radical de Karamanlis no pós-guerra. Os coronéis tinham su- bido na hierarquia militar durante o período pós-guerra civil (1949-1967), altura em que a classe política conservadora, o Exército, as forças de se- gurança e o Rei partilhavam uma ideologia fortemente nacionalista e an- ticomunista, que controlava apertadamente o regime parlamentar (Mou- zelis 1978; Alivizatos 1979; Fleischer 2006).

Por outras palavras, os governos de Karamanlis pós-1974 não tinham pressa em avançar com a aplicação da justiça transicional. No entanto, depois de ser iniciado o primeiro processo jurídico contra os coronéis, por um cidadão individual, em setembro de 1974, e particularmente de- pois do golpe militar abortado de fevereiro de 1975, o Governo seguiu aquele exemplo. Esta mudança de orientação política pode ser explicada pelo facto de Karamanlis se aperceber de que, sem o saneamento das Forças Armadas, ficaria de mãos atadas por muito tempo. Também pode ser explicado pelo clamor generalizado contra o facto de os chefes da Junta não terem sido presos na sequência do desastre de Chipre. Kara- manlis era um político conservador, mas conseguia aperceber-se de que os ventos sopravam para a esquerda. Ao contrário do seu primeiro man- dato como primeiro-ministro (1955-1963), tornou-se agora mais sensível às tendências dominantes na sociedade. De facto, por muito tempo de- pois de 1974, e apesar de a maioria do eleitorado votar na conservadora ND, nas eleições de novembro de 1974, ideias políticas de esquerda e antiocidentais dominaram a sociedade grega até aos anos 1980. Iniciar o processo da justiça transicional era uma tarefa complicada que continha aspetos morais e práticos. Entre 1967 e 1974, largos segmentos das Forças Armadas, da função pública, das universidades e do sistema judicial

aquiesceram, mais do que colaboraram, com o regime. A este respeito, a Grécia não foi exceção ao padrão que tinha emergido noutros países sob domínio autoritário. Em resultado disso, o regime pós-1974 enfrentou três desafios que eram comuns a todos os regimes pós-autoritários.

Primeiro, não era evidente a dimensão que teria o círculo de pessoas implicadas em processos punitivos. Para além de um número desconhe- cido de militares de altas e médias patentes e de agentes da Polícia, guar- das, membros de Governo, governadores civis, presidentes de Câmara e gestores de empresas públicas, era preciso pensar nos não dirigentes que participaram ativamente na tomada de edifícios públicos, como o Parla- mento, e que torturaram opositores da Junta. Segundo, em alguns casos de mau procedimento, não tinha sido transgredida nenhuma lei crimi- nal.2Por exemplo, dado o princípio legal de nullum crimen nulla poena sine lege (não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia escrita, estrita e certa), era problemático processar judicialmente torcio- nários, se a tortura não estava especificamente incluída nas cláusulas da lei criminal. Terceiro, quando os implicados eram considerados culpados pelo tribunal, era difícil traçar uma linha que distinguisse entre sentenças mais ou menos severas para os condenados. Visto que, para as vítimas, a dor, a perda e a humilhação infligidas pela Junta eram incomensuráveis, nenhuma pena podia compensar o que elas tinham sofrido.

O Governo Karamanlis decidiu-se por uma aplicação rápida e come- dida de justiça transicional (Sotiropoulos 2007). Embora o sistema judi- cial fosse formalmente independente do braço executivo do Governo, em breve se tornou claro que o Governo conseguia dar o tom dos pro- cessos punitivos e, como veremos adiante, até alterar as sentenças impos- tas. A combinação de três variáveis – as prioridades do próprio Karaman- lis relativamente ao conflito greco-turco, à estabilidade política e à adesão do país à CEE; a periódica agitação subterrânea de elementos pró-Junta entre os militares, a qual durou de agosto de 1974 a fevereiro de 1975; e a indulgência dos juízes na maior parte dos julgamentos – resultou numa proporção significativa de possíveis culpados serem deixados impunes, sendo os restantes tratados com menor severidade. Em agosto de 1974, menos de um mês após a transição, o Governo de unidade nacional ob- rigou a reformarem-se o chefe do Estado-Maior-General das Forças Ar- madas e o chefe do Estado-Maior do Exército – os dois oficiais mais gra- duados do Exército – e o homem forte da Junta, o brigadeiro Ioannides.

Em setembro, o Governo publicou legislação que afetava os colabora- dores da Junta das universidades e do sistema judicial. Os professores universitários que tinham sido contratados no período de 1967-1974 para preencher os lugares de académicos que tinham sido despedidos pela Junta deviam ser escrutinados por uma comissão instituída para esse fim pelo Ministério da Educação. Nos meses seguintes, foram impostas san- ções a 92 professores (39 dos quais acabaram por perder o lugar), en- quanto os juízes que tinham sido saneados pela Junta por causa das suas convicções democráticas foram reintegrados no sistema judicial. No total, 23 juízes que tinham colaborado com a Junta foram punidos, quer com despromoções quer com reformas compulsivas (Pikramenos 2002, 306).

Também se efetuaram saneamentos noutras instituições. Durante se- tembro de 1974, foram demitidos 17 oficiais da Polícia, e todos os presi- dentes de Câmara que tinham sido nomeados para os municípios pelos coronéis foram afastados dos cargos, tal como o foram juristas que ti- nham sido designados para direções dentro da Ordem dos Advogados, diretores de meios de comunicação social do Estado e gestores de em- presas públicas e cooperativas agrícolas (Woodhouse 1985, 170; Hadji- vassiliou 2000, 302). Em outubro de 1974, cinco dos oficiais de cúpula da Junta – os três protagonistas do golpe de abril de 1967, George Papa- dopoulos, Nicolaos Makarezos e Stylianos Pattakos, e dois destacados oficiais da Junta, Ioannis Ladas e Michael Roufogales – foram presos e deportados para uma pequena ilha ao largo da costa leste da Ática. No mesmo mês, foi publicado um decreto presidencial determinando que não haveria amnistia para as ofensas criminais, como alta traição, come- tidas pelos envolvidos no golpe de 1967. Os líderes do grupo foram pro- cessados judicialmente no mês seguinte; note-se, porém, que estas ações só acontecem depois de um advogado ter tomado a iniciativa, a 9 de se- tembro, de levar a tribunal 15 dos quadros superiores da Junta, incluindo os seus chefes (Woodhouse 1985, 168).

Na sequência do golpe abortado de fevereiro de 1975, o Governo al- terou a sua atitude, anteriormente cautelosa, em relação às Forças Arma- das (Danopoulos 1991). Enquanto apenas 39 oficiais tinham sido passa- dos à reserva até setembro de 1974 (Hadjivassiliou 2000, 302), em fevereiro de 1975 cerca de 200 oficiais foram reformados compulsiva- mente. Algumas fontes afirmam mesmo que foram afastados entre 500 e 1500 oficiais – até cerca de 10% do corpo de oficiais desse tempo (So- tiropoulos 2007). Em julho de 1975 o Supremo Tribunal civil (Areios Paghos) decidiu que, à exceção dos militares, os membros da elite gover- nativa da Junta não seriam julgados por alta traição pela sua participação

no derrube de um governo democraticamente eleito e no apoio a um re- gime político opressivo durante sete anos. O tribunal decidiu que foi co- metida alta traição apenas «momentaneamente» na noite de 20-21 de abril de 1967, e não continuadamente por um período de sete anos; por consequência, apenas os oficiais que participaram na tomada do poder em 1967 podiam ser julgados por alta traição. A sentença do tribunal re- fletia o ponto de vista do ministro da Justiça da ND, Costas Stefanakis, que acreditava que processar judicialmente um grande número de apoiantes da Junta num tribunal aberto levaria ao caos (Τα Νέα, 3 de julho de 1975, 1).

Em 1975, realizaram-se muitos julgamentos. O primeiro foi o julga- mento de militares que tinham levado a cabo o golpe de 1967. Este foi seguido de um segundo julgamento dos três chefes da Junta e dos oficiais de patentes superiores e intermédias que comandaram a repressão do le- vantamento da Escola Politécnica, durante a qual um tanque derrubou o portão da escola para permitir aos soldados entrarem no campus. Os crimes cometidos incluíam homicídio involuntário de espectadores e de alguns dos estudantes que tinham ocupado o campus.

Depois deste julgamento, houve uma série de julgamentos em diver- sas cidades, tendo alguns deles continuado para além de 1975. Estes pro- cedimentos procuravam garantir a condenação de oficiais de patentes in- termédias e baixas e de soldados na Polícia Militar, na Polícia civil e na Guarda, os quais eram acusados de torturar pessoas que tinham ficado presas depois de serem detidas por resistirem à Junta. Realizaram-se 41 julgamentos de alegados torcionários. No maior deles, foram proces- sados 32 oficiais e polícias militares com base nos testemunhos de 128 vítimas de tortura (Τα Νέα, 6 de agosto de 1975, 1).

Um outro julgamento foi anunciado, mas nunca se concretizou. Esse teria implicado oficiais que tinham planeado o golpe de julho de 1974 contra o Governo do arcebispo Makarios, em Chipre. O Governo adiava periodicamente este julgamento, apresentando desculpas vagas para os atrasos (por exemlo, avançar para o julgamento ia contra o interesse na- cional). Obteve a concordância dos partidos da oposição num caso em que, aparentemente, mais de um governo nacional – assim como serviços diplomáticos e secretos – tinha tomado parte. No julgamento referido acima contra os protagonistas do golpe de 1967, os três líderes foram con- denados à morte, oito dos seus seguidores tiveram penas de prisão per- pétua, outros sete foram sentenciados a penas de prisão entre cinco e vinte anos e dois foram absolvidos. No segundo julgamento, acrescendo às sentenças impostas aos três chefes da Junta, Dimitrios Ioannides (que

derrubou Papadopoulos em novembro de 1973) e Nicolaos Dertilis (o oficial que comandou o esmagamento da ocupação estudantil da Poli- técnica) receberam ambos duras sentenças.3As penas impostas àqueles

que foram considerados culpados de tortura foram muito mais leves, não passando muitas vezes de pouco mais do que alguns meses na prisão. O quadro 7.1 mostra como a proporção de oficiais condenados variou por sector (militares, Polícia e Guarda).

Os partidos políticos gregos