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Os dois legados do fascismo e o problema dos saneamentos

Com a execução de Mussolini em 28 de abril de 1945, podia consi- derar-se que a experiência fascista tinha chegado ao fim. A nova classe dirigente viu-se então confrontada com dois legados diferentes do pas- sado fascista; legados associados a dois contextos geográficos distintos. Nas regiões do Norte-Centro, uma sangrenta guerra civil marcou uma rígida divisão que foi agravada pelos massacres de civis durante a retalia- ção das tropas alemãs e as subsequentes vendette contra os seguidores der- rotados de Mussolini. Nesta parte do país, a Itália dos anos anteriores à guerra parecia pertencer a um passado distante.

Nas regiões do Sul, a queda sem derramamento de sangue do regime autoritário, depois da demissão de Mussolini, permitiu o regresso do que restava da classe dirigente anterior ao fascismo, a qual estava disposta a coabitar com os setores menos comprometidos e menos politizados da administração pública que se tinham alinhado com o regime, dentro de um cenário que se caracterizava pela continuidade das instituições e pela prevalência da lealdade à monarquia (Catalano 1972). O dilema que os apoiantes da democracia enfrentavam era, portanto, entre recuperar o caráter do antigo regime ou construir um novo. A grande maioria da po- pulação no Sul inclinava-se para a primeira opção, rejeitando qualquer hipótese de renovação política e/ou social. Contudo, no Norte, estava consolidado o apoio à mudança revolucionária (Pavone 1991; De Felice 1995).

As respostas a este problema variaram consideravelmente segundo a matriz ideológica de cada um dos partidos antifascistas, que, ou se tinham restabelecido, ou tinham conseguido legalizar a sua anterior estrutura clandestina, graças à qual tinham mantido uma presença limitada na so- ciedade italiana durante o fascismo. Durante o primeiro período de tran- sição depois de 25 de julho de 1943, todos estes partidos tinham con- cordado em coordenar as suas atividades dentro do Comité de Libertação Nacional (CLN – Comitato di Liberazione Nazionale). Embora a sua colaboração continuasse por algum tempo depois do fim da guerra, desde o princípio que vieram ao de cima diferenças consideráveis dentro da CLN: diferenças que afetavam tanto as perspetivas de uma Itália demo- crática unificada como as decisões mais imediatas que havia que tomar.

Os partidos antifascistas moderados viam com agrado a ideia de cons- truir um Estado democrático que mantivesse um grande grau de conti- nuidade com as instituições pré-fascistas. Esta sua visão baseava-se no facto

de que uma grande parte da legislação, a estrutura fundamental da admi- nistração pública e o sistema judicial tinham sobrevivido, mais ou menos incólumes, às duas décadas de fascismo, dado que, com efeito, tinham apenas feito compromissos com as instituições mais importantes – a Igreja e as Forças Armadas – sem abrir inteiramente mão da sua autonomia. Os partidos antifascistas radicais, que eram de longe os partidos mais fortes entre os grupos armados de voluntários que combateram os alemães e os seus aliados fascistas – os partisans –, tinham opiniões diferentes que, ainda que não coincidissem inteiramente, eram pelo menos convergentes, em particular ao princípio, em relação à necessidade de trabalharem juntos para garantir uma clara descontinuidade entre a situação que tinha prece- dido (e, na opinião deles, facilitado) a ascensão do fascismo e a Itália pro- gressista e democrática que desejavam ver emergir.

O primeiro terreno de batalha entre estas duas posições prendia-se com suas diferentes visões da justiça transicional ou, melhor dizendo, os métodos pelos quais podiam realizar materialmente o seu objetivo teo- ricamente comum de desfascizar o país (Neppi Modona 1984).

O primeiro fator que complicou as coisas foi o facto de que o ajuste de contas com o fascismo começou enquanto ainda não se tinham ca- lado as armas da guerra. Depois de 25 de julho de 1943, a hostilidade ge- neralizada para com os responsáveis por arrastar Itália para a guerra ex- plodiu em manifestações efervescentes. Contudo, depressa se tornou claro que a maioria apenas desejava ver um rápido fim das hostilidades. Houve poucos atos de vingança, e os que de facto se verificaram acon- teceram no Norte do país. As multidões limitaram-se a atacar os símbolos do regime: monumentos, retratos de Mussolini, sinalização das estradas e sedes partidárias. O Governo Badoglio, no qual não havia nenhum an- tifascista genuíno, agiu com discrição, essencialmente assegurando um consenso no sentido de que a monarquia ficasse garantida. Dissolveu as principais instituições do regime autoritário e obteve a promessa do úl- timo secretário do Partido Fascista (PNF – Partito Nazionale Fascista) de que não criariam obstáculos ao novo governo. No entanto, não dissolveu a polícia política, a detestada Organização para a Vigilância e a Repressão do Antifascismo (OVRA – Organizzazione per la Vigilanza e la Repres- sione dell’Antifascismo). Houve muitas ações através das quais tentou estabelecer a rutura simbólica com o regime anterior; porém, a censura manteve-se e foi declarado o estado de sítio quando se viu confrontado com as primeiras greves e manifestações de rua.

Os verdadeiros saneamentos tiveram um ímpeto inicial (Woller 1997; 1998): muitos jornalistas notoriamente fascistas foram despedidos,

20 dos 90 prefeitos e um terço dos presidentes de Câmara foram demi- tidos e teve-se um cuidado especial com o sector da Educação. Todavia, quando se formou uma comissão para supervisionar os saneamentos na administração pública, as preocupações da classe governante aumentaram e o rei, aborrecido com o rumo que as coisas estavam a tomar, ameaçou o primeiro-ministro, dizendo-lhe que se não pusesse fim aos saneamen- tos, teria de resignar ao cargo.

O cenário complicou-se ainda mais com a presença da AMGOT, que tinha de tratar da descontaminação política das áreas conquistadas pelas tropas britânicas e americanas. Os governos britânico e americano não estavam de acordo quanto à maneira de tratar esta questão: Roosevelt era a favor de um saneamento radical, enquanto Churchill receava que demissões generalizadas de funcionários públicos que tinham estado ao serviço do Estado fascista deixassem um vazio que seria preenchido pela esquerda, que era o único grupo que tinha mantido a organização sob a ditadura. Em resultado disso, a administração militar limitou-se a tomar medidas para liquidar o fascismo, mas não se aventurou em nenhum programa de democratização ou de reeducação. As administrações locais foram dissolvidas, prefeitos e presidentes de Câmara foram demitidos e os fascistas mais proeminentes foram presos; contudo, levantou-se quase logo o problema de como lidar com os fascistas comuns – muitos dos quais estavam protegidos pelo silêncio conivente da população. A fim de compreender que papéis tinham tido e estabelecer responsabilidades, foram distribuídos questionários ao pessoal administrativo e às chefias; porém, esta medida revelou-se totalmente inadequada. As forças ocupan - tes, por consequência, concentraram-se nos estabelecimentos de Educa- ção, de onde retiraram do cargo presidentes, diretores e supervisores e despediram membros do pessoal docente.

O terceiro ator na primeira fase da justiça transicional teve a ver com os partidos antifascistas. Confrontados com prevaricação do Governo, organizaram protestos para forçar a demissão de funcionários públicos que tinham sido acusados de participar em perseguições e de agir com arrogância sob a ditadura fascista. O receio de que estes tumultos pu- dessem desencadear movimentos revolucionários instigou Badoglio a tomar algumas medidas mais incisivas. Enquanto o funcionamento dos governos locais era retomado sem o envolvimento de fascistas e com a inclusão de jovens quadros dos partidos antifascistas, foram publicados os primeiros decretos – ainda que não sem disputa dentro do Governo – determinando medidas a tomar contra funcionários públicos que ti- nham sido membros do PNF. Foram criadas comissões, que incluíam

vítimas das perseguições políticas do fascismo, para analisar a posição de todos os suspeitos. O seu objetivo era identificar aqueles que podiam participar na reconstrução democrática do país e aqueles que deviam ser excluídos.