• Nenhum resultado encontrado

Policiamento de protestos para os novos tempos

Depois do reequilíbrio de 1976, as forças de Polícia portuguesas vol- taram a estar politicamente protegidas sob a moldura discursiva de lei e ordem. Além disso, a memória da perda de autoridade da Polícia em 1974-1975 serviu de álibi para os novos excessos no uso da força. Nove manifestantes foram mortos pela Polícia entre 1976 e 1981 (quadro 6.2) mas, quando a Polícia foi confrontada com críticas, o Governo expressou reiteradamente a sua confiança nela:

[...] a democracia deve à Polícia de Segurança Pública e à Guarda Nacio- nal Republicana [n]a possibilidade da sua própria institucionalização... [aplausos] porque têm sido essas forças da segurança que têm permitido que as leis votadas nesta Assembleia possam ser aplicadas neste país, muitas vezes contra forças de perturbação que pretendiam impedi-lo [Diário da Assembleia da República, 27 de maio de 1981, n.º 70, 2711 (intervenção do deputado Afonso Moura Guedes do PSD, um dos partidos do Governo)].

Apesar desta atitude de lei e ordem, a consolidação da democracia e o desvanecimento de alternativas políticas anticonstitucionais permitiram a adaptação do policiamento da ordem pública às tendências que se ve-

rificavam noutros países democráticos. Estas tendências implicavam a diferenciação das noções de lei, de autoridade e de ordem, a substituição da doutrina da escalada da força pela proteção do direito de manifestação e a procura pela Polícia da negociação com os movimentos sociais da utilização do espaço público, delineando o chamado «modelo de suba- plicação da lei» do policiamento de protestos (Della Porta e Reiter 1998; Waddington 2007).

Em Portugal, o novo modelo de subaplicação da lei só foi adotado depois dos debates sobre os tumultos da Polícia em 1981 e 1982, quando estava no poder a coligação de centro-direita AD (Aliança Democrática). A mobilização do Governo da AD contra a greve geral de fevereiro de 1982 e o tiroteio no Porto na véspera do 1.º de maio desse ano, em que a Polícia matou dois sindicalistas desarmados, tornou evidente que o Go- verno estava a usar a Polícia para fins partidários. Durante a noite de con- frontos no Porto, alguém gritou «Abaixo o fascismo!» e o historiador César Oliveira comparou o comportamento da Polícia com cargas da Polícia autoritária que tinha testemunhado durante o regime anterior (Diário da Assembleia da República, 27 de maio de 1981, n.º 70, 2703). Es- taria a «Polícia fascista» de volta, como alguns receavam?

O socialista e antigo ministro da Administração Interna Jaime Gama fez um diagnóstico mais pertinente. Reconheceu que desde o 25 de Abril de 1974, muito se tinha feito «para uma afirmação desinibida da autori- dade democrática, sem ceder às tentações do autoritarismo». Contudo, também acreditava que várias práticas portuguesas se afastavam daquelas que estavam associadas à ação policial democrática:

Primeiro, a tentativa para a intromissão ministerial na conduta direta das operações policiais, restringindo a autonomia técnica e profissional necessária ao bom êxito no cumprimento das respetivas missões operacionais; segundo, a tentativa para utilizar as forças de segurança como décor político-partidário do discurso autoritário de certos setores governamentais, retirando aos apa- relhos de segurança a necessária independência de julgamento e atuação, Quadro 6.2 – Pessoas mortas pela polícia durante greves e manifestações

em Espanha e em Portugal (1970-1995)

Espanha Portugal

1970–1975 18 5

1976–1981 59 9

1981–1995 16 2

face às motivações específicas dos conflitos; e, terceiro, a tentativa para fazer introduzir em aproximação parcial as forças de segurança nas disputas sociais, à margem de critérios de legalidade estritamente relacionados com a ordem e a tranquilidade públicas e numa lastimável ótica classista [Diário da Assem- bleia da República, 11 de março de 1982, n.º 63, 2680].

O relatório judicial sobre o «1.º de maio sangrento» de 1982 – que o Governo não deu a conhecer durante seis meses depois de completado – dizia que a desinformação política do Governo tinha sido a principal causa que desencadeara a violência da Polícia (Livro Branco 1984; Colaço e Gomes 2001). Na sequência do escândalo, as forças policiais adquiriram maior autonomia operacional, ao mesmo tempo que foi limitada a uti- lização de armas de fogo durante o controlo de manifestações. A transi- ção para o novo modelo democrático «de subaplicação da lei» foi anun- ciada pela primeira vez pelo comandante superior da GNR:

A técnica de execução dos atos de autoridade não pode basear-se somente em preceitos legais; deve atender-se à necessidade de evitar a criação de um mal maior que aquele que pretende impedir-se [Diário da Assembleia da Re- pública, 5 de maio de 1982, n.º 84, 3525].

De acordo com estas novas linhas diretoras, a GNR desenvolveu tam- bém novos procedimentos operacionais e a sua própria força antimotim para o país rural (Oliveira 2000). Estas inovações reduziram as vítimas do controlo policial de manifestações de massas (quadro 6.2). Alem disso, desde os anos 1990, a formação da Academia da Polícia tem vindo a abandonar as antigas noções de irracionalidade do comportamento de multidões e a explicar que manifestações e greves são uma característica normal da vida democrática moderna (Oliveira 2000; 2005).

O comedimento no uso da força durante manifestações também foi incentivado em Espanha. Antes de 1982, a lei era interpretada estrita- mente e os governadores civis frequentemente não permitiam manifes- tações de rua nas suas províncias, ao mesmo tempo que as manifestações não autorizadas eram sempre sujeitas à intervenção da Polícia (Vega 2008). Depois da vitória do Partido Socialista, em 1982, os novos gover- nadores civis pressionaram a Polícia para ser mais contida. Depois dos fracassos policiais em Riaño, em 1987, e em Reinosa, em 1988, a Guarda Civil também modernizou a formação das suas brigadas de ordem pú- blica, bem como o equipamento e as diretrizes (Jaime-Jiménez 1996).

A partir de 1989, a perspetiva de acolher os Jogos Olímpicos e a Expo, em 1992, levou a mais avanços na reorganização das unidades antimo-

tim. Já nos anos 1990, a mudança tinha sido tão grande que, dos homens que estavam em serviço nos anos 1970, apenas restavam poucos oficiais superiores. Ao mesmo tempo, «a necessidade de se distanciarem das prá- ticas do regime de Franco resultava em que muitas ações de protesto foram enfrentadas pela Polícia com métodos menos enérgicos do que noutros países com tradição democrática mais antiga» (Jaime-Jiménez 1996).