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Responsabilização democrática

Responsabilização é a chave para a ação policial democrática (Green- wood e Huisman 2004). Uma arena política aberta, em que a imprensa e o público podem exigir melhor serviços de Polícia, é o primeiro nível de responsabilização que diferencia democracia de autoritarismo. Na eventualidade de comportamento impróprio, as autoridades políticas podem ser pressionadas a introduzir mudanças, até serem afastadas do poder através do voto. Em teoria, se a Administração Pública, os tribunais civis e o Governo representativo funcionassem de forma perfeita, não seria necessário nenhum outro poder de reparação ou supervisão. O problema é que existe uma propensão estrutural para a disfunção na Polícia – mesmo que só marginalmente. Estudos antropológicos mostram que as forças policiais desenvolvem subculturas violentas, atitudes cínicas e extrema desconfiança perante avaliações externas, portanto a proteção dos direitos requer sistemas acrescidos de controlo sobre a conduta da Polícia (Bayle 1992; Rosanvallon 2006).

Verificou-se um duplo desenvolvimento durante as primeiras fases das transições ibéricas. Primeiro, os governos usaram as origens demo- cráticas do seu poder, da Constituição e, portanto, das leis civis e penais que a Polícia impunha, como condição suficiente para a natureza demo- crática da conduta da Polícia. Segundo, os governos apenas reconheciam casos individuais de comportamento inapropriado de polícias e reco- mendavam ao público que procurasse a reparação através dos tribunais civis, sublinhando que, uma vez que os agentes da Polícia perdessem a proteção da «garantia administrativa», eram passíveis de ações cíveis.

No entanto, a incapacidade dos tribunais de monitorizar e controlar a Polícia era clara desde o princípio da democratização. Mesmo em Por- tugal, o corpo de juízes da ditadura tinha sobrevivido quase intacto e emergiu um padrão de conluio com a Polícia (Pinto 2008). Os juízes to- mavam partido pela Polícia e davam-lhe mais crédito do que ao público.

Além disso, as forças policiais tendiam a proteger os seus, ocultando a identidade dos agentes acusados. Ao mesmo tempo, em ambas as demo- cracias ibéricas, o Governo resguardava dos olhares do público os relató- rios internos que revelavam prevaricações da Polícia.

Em 1986, o Provedor de Justiça português publicou um relatório acusa dor, que afirmava que a Polícia portuguesa «não era adequada para a democracia». Falava de «violência sistemática, abuso de poder, desres- peito pela lei e mau uso de armas de fogo» como fazendo parte das ca- racterísticas mais marcantes da Polícia. Descobriu que os controlos in- ternos não propunham qualquer correção e apelava a melhor formação e maior responsabilização. Embora não se verificasse qualquer morte em consequência da ação policial em manifestações, depois de 1982, a Polícia portuguesa em breve se tornaria uma das mais letais da Europa, em casos de pequena criminalidade e situações de detenção e custódia. Desmilita- rização e melhor formação eram as soluções sugeridas (Câncio 2001; Co- laço e Gomes 2001).

Em ambos os países foi promovido o profissionalismo. Abriam-se novas academias e os recrutas recebiam formação mais prolongada e mais especializada (mais prolongada em Espanha do que em Portugal). Du- rante os anos 1980, as forças policiais urbanas foram desmilitarizadas e os novos comandantes deixaram de ser transferidos do corpo de oficiais do Exército. Em vez disso, foram criadas academias superiores de Polícia e foi favorecido o recrutamento de agentes com formação universitária. Em Espanha, a passagem a civil da Polícia urbana completou-se com a aprovação da lei de 1986. Em Portugal, a estrutura militar da PSP man- teve-se até 1999. Os direitos sindicais dos agentes da Polícia, que tinham sido estabelecidos em Espanha em 1986, não foram permitidos em Por- tugal até 2002, e mesmo então os novos sindicatos tiveram dificuldade em obter o estatuto legal (Colaço e Gomes 2001; Durão 2008). As Guar- das mudaram mais lentamente, mas também foi reforçada a formação profissional de oficiais e subordinados.

Para estabelecer mais responsabilização, o Governo de Espanha con- tava com os progressos da cultura profissional e o reforço dos controlos internos dentro do CNP e da Guarda Civil. O Ministério do Interior con- sidera que este procedimento foi um sucesso e está a tentar introduzir sis- temas semelhantes nas forças de Polícia municipal, algumas das quais es- tiveram envolvidas em escândalos de corrupção (El País, 12 de maio de 2008). Contudo, os ativistas dos direitos civis queixam-se da impunidade da Polícia quando lida com vítimas de exclusão – tais como ciganos ou imigrantes – e quando lida com movimentos alternativos, como «ocupas»,

anarquistas ou radicais nacionalistas: queixa igualmente expressa pela Co- missão das Nações Unidas para os Direitos Humanos (HRC 1996; 2008, Martí et al. 2007).

A seguir à vitória do Partido Socialista (PS) nas eleições de 1995, em Portugal, o novo Governo propôs «o reforço de mecanismos de controlo da Polícia» (Diário da Assembleia da República, 8 de novembro de 1995, 6). Com a persistência de violência e corrupção, o Governo adotou a abordagem mais moderna à responsabilização da Polícia: a criação de uma nova instituição para supervisionar a Polícia – A Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI). A IGAI investigou o uso excessivo de força e alguns dos seus relatórios tiveram como resultado que alguns agentes fossem castigados. Também estabeleceu um novo conjunto de regras para a utilização de armas pelos agentes da Polícia (Lima 2006).

Conclusões

Durante a transição do autoritarismo para a democracia, em Espanha e Portugal, o papel que a Polícia tinha desempenhado durante as décadas precedentes foi posto em causa, porquanto a democracia exigia uma transformação dos objetivos e atitudes na ação da Polícia. A conduta da Polícia foi entendida segundo duas molduras cognitivas pré-construídas que delimitavam os conteúdos, direção e significado social da reforma da Polícia: a moldura de direitos civis tinha dificuldade em reconhecer o progresso no sentido de um policiamento democrático, enquanto a mol- dura de lei e ordem punha obstáculo ao melhoramento da responsabili- zação.

Em Portugal, foi proposta uma renovação radical durante os anos de 1974 e 1975; isso conduziu, porém, à inação da Polícia e à perda de con- trolo por parte do Governo face a qualquer coletivo de pessoas que de- cidisse agir ilegalmente. A experiência da paralisia da Polícia funcionou como um segundo legado por cima do legado autoritário, atrasando até finais dos anos 1990 reformas subsequentes da Polícia, como a desmili- tarização, uma melhor responsabilização e o direito dos agentes de Polícia a pertencerem a um sindicato.

Depois de 1976, as forças policiais, em ambos os países, passaram por um processo de profissionalização. Em Espanha, com o Governo cons- ciente dos dilemas portugueses de 1975-1975, a Polícia foi considerada uma ferramenta essencial do Governo que os políticos nunca se arrisca- ram a minar, apesar do custo desta abordagem em termos de credibili-

dade democrática. Ainda assim, em Espanha as forças policiais conhece- ram uma mudança mais rápida e extensa do que as suas congéneres por- tuguesas, em parte porque era necessária uma ampla transformação a fim de ultrapassar o défice de credibilidade (quadro 6.3). Além disso, a devo- lução regional e local desencadeou uma maior renovação das estruturas da Polícia. O duplo legado em Portugal e, em Espanha, o défice de cre-

Quadro 6.3 – Sinopse comparada das mudanças nas forças policiais urbanas

Portugal Espanha

Justiça retributiva Sim, mas apenas Não, aministia recíproca na polícia política

Ruturas simbólicas Sim, mas as de 1975 Sim, duradouras:

com o passado foram de curta duração • Mudança de nome

• Mudança de nome do ministério (ano 1)

do ministério (ano 1) • Mudança de nome da força

• Duas mudanças da cor dos uniformes

Mudanças na estrutura Não Sim: Polícia Armada e CGP/CSP fundidos no novo CNP

Descentralização Não Sim:

• Forças regionais no País Basco e na Catalunha • Forças municipais

na maioria das cidades

Desmilitarização Sim, mas lenta: Sim, rápida:

• Novos agentes civis • Direitos sindicais em 1978 (CSP)

apenas em 1986 e 1986 (CNP)

• Estrutura civil em 1996 • Novos agentes civis

• Direitos sindicais desde 1978 (CGP)

em 2007

Nova escola de oficiais Sim, grau universitário Sim, grau universitário em 1984 em 1996

Formação mais Sim, mas lenta (1996) Sim, rápida (1981)

prolongada

Novas funções Sim Sim

Responsabilização Sim, interna e externa Sim, mas sobretudo interna

plural mas lenta

dibilidade e a devolução regional, explicam a descoberta contraintuitiva de que a transição contínua de Espanha transformou o sistema policial autoritário muito mais rápida e profundamente do que a transição des- contínua de Portugal.