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O debate público sobre o passado fascista e os seus legados

O debate público sobre o passado autoritário e os seus legados mul- tiformes caracterizou-se por duas posições contraditórias que foram ali- mentadas e ressoaram tanto no campo político como entre os intelec-

tuais: a tendência para esquecer o passado, por um lado, e a imposição de um paradigma antifascista de legitimação democrática, por outro (Zu- nino 2003; La Rovere 2008). Nos primeiros anos do pós-guerra, o conflito entre estes pontos de vista expressou-se em duas frentes principais de dis- cussão, com alguns pontos comuns, mas não se sobrepondo inteira- mente: uma dizia respeito à eficácia dos saneamentos, enquanto a outra tinha a ver com o grau de continuidade entre o regime fascista e a demo- cracia que fora criada a seguir à queda daquele.

Depois da vitória da DC nas eleições de 18 de abril de 1948, conse- guida como resultado de uma abordagem fortemente anticomunista, a esquerda acusou-a de reabilitar uma grande parte da classe dirigente do regime anterior e, com isso, trair a resistência e frustrar os ideais de uma renovação moral cultivados pelos combatentes antifascistas. Os comunis- tas e os socialistas acusaram o Governo centrista de evitar deliberadamente quaisquer penas exemplares daqueles que tinham obtido os maiores pro- veitos sob o regime anterior, impedindo que os saneamentos se tornassem uma oportunidade para o país inteiro de examinar coletivamente a sua consciência em relação às causas que tinham conduzido ao sucesso do fascismo. Os partidos moderados responderam a isto declarando que não teria sentido atacar a massa de funcionários públicos e as suas chefias, que se tinham alinhado com o regime simplesmente para manter uma vida tranquila. A sensação geral era de que a dupla queda do fascismo, em 1943 e em 1945, constituía um aviso suficientemente assustador para pre- venir que no futuro se cedesse a quaisquer tentações autoritárias.

Ao contrário, os defensores da necessidade de se pôr o fascismo para trás rapidamente declaravam que o regime fascista não tinha conseguido promover uma mentalidade de base ideológica no povo italiano. Como resultado, não havia necessidade de levar a cabo a tarefa traumática de ree- ducar os apoiantes do velho regime de uma maneira semelhante à que es- tava a ser levada a cabo relativamente à desnazificação da Alemanha. A explosão geral de alegria que acompanhou a resignação forçada de Mus- solini foi apresentada como uma prova de que o apoio ao regime não era mais do que uma demonstração de oportunismo de massas, ao qual ape- nas duas minorias com motivações ideológicas eram alheias: os mais fa- naticamente leais ao credo fascista e a oposição ligada aos partidos clan- destinos. Esta interpretação foi fomentada por uma leitura dicotómica da participação de Itália na II Guerra Mundial, que, entre 1940 e 1943, era considerada uma guerra de toda a nação e que foi transformada, durante os dois anos seguintes, numa guerra ideológica entre duas fações radicais hostis ao desejo de paz que era sentido pela maioria do povo italiano. Esta

chamada «zona cinzenta» da sociedade italiana era composta por aqueles que não queriam tomar partido durante a guerra civil (Chiarini 2005).

À esquerda, a esta memória despolitizada do fascismo e da guerra era contraposta uma versão hiperpolitizada, que se centrava numa interpre- tação que considerava a resistência antifascista – em particular, durante a sua fase armada – uma promessa da redenção do país dos vícios e de- feitos que o tinham levado a apoiar o estabelecimento de um regime au- toritário (Chiarini 2005). De acordo com esta ideia, e apesar de ser rejei- tado pela parte saudável da população, o fascismo tinha revelado o gérmen do autoritarismo entre os sectores mais reacionários da sociedade italiana, o qual continuaria a representar uma ameaça latente se não fosse erradicado por meio de políticas socialmente progressistas, capazes de estabelecer uma democracia robusta.

A competição em torno da memória, alimentada por estes pontos de vista opostos, subia de tom sempre que se avizinhava alguma alteração decisiva na política italiana do pós-guerra, gerando periodicamente alar- mes da parte dos comunistas e dos socialistas sobre o risco de um imi- nente renascimento do fascismo. Os primeiros foram, por sua vez, acusa - dos de agitar esse espectro para induzir na dinâmica do sistema político uma viragem à esquerda. O alarme que era desencadeado pelos partidos de esquerda, e ocasionalmente partilhado pela DC e pelos seus aliados do Governo, trazia de novo à ribalta, periodicamente, a ameaça de dis- solução do MSI que estava implícita na «Lei Scelba». O espectro do su- cesso de um «Regime de Salvação Pública» inspirado em ideias mais ou menos neofascistas esteve no centro do debate público ao longo dos anos 1960. Isto incluiu a descoberta das conspirações da loja maçónica P-2, que tinha ramificações em alguns sectores institucionais. Dentro do con- texto deste clima ideológico e cultural, todos os outros partidos italianos representados no Parlamento assinaram o «pacto dos partidos constitu- cionais», que os comprometia a rejeitar qualquer acordo governamental com o MSI, tanto a nível nacional como local. Apesar da dissipação gra- dual das tensões políticas durante os anos 1980, este pacto sobreviveu até 1993, quando foi varrido de cena, na altura em que uma grande parte da classe política que estivera por trás da sua criação foi apanhada nos escândalos Tangentopoli.

O desaparecimento ou transformação radical dos partidos que tinham dominado a Primeira República e a passagem para um novo sistema elei- toral que favorecia a criação de grandes coligações num contexto bipolar, assinalaram a legitimação de facto do MSI, que passou, em apenas uns meses, de uma posição marginal para participante no Governo. Em certa

medida, isto foi o resultado de um efeito de boomerang: visto que as acusa - ções de conluio com o fascismo tinham sido utilizadas pelos partidos de esquerda e de centro para desacreditar a direita, a inevitável reabilitação da última, a seguir ao desaparecimento da DC e dos seus aliados, reque- ria, para os parceiros que constituíam o novo Polo da Liberdade (Polo delle Libertà), de centro-direita, que se lançasse luz sobre as zonas mais sombrias da memória do regime autoritário. O antifascismo foi acusado de ter desempenhado o papel de cavalo de Troia do comunismo.

Esta troca de opiniões abriu caminho ao debate público mais azedo em que participaram intelectuais, jornalistas, políticos e figuras institu- cionais tais como antigos presidentes da República – Francesco Cossiga, Oscar Luigi Scalfaro, Carlo Azeglio Ciampi e Giorgio Napolitano. A es- querda acusou a direita «revisionista» de procurar minimizar os crimes do fascismo; a direita lembrou que a maior contribuição para a luta dos partisans tinha sido dada por pessoas que aspiravam a trazer para Itália um regime não menos ferozmente totalitário do que o de Hitler, reavi- vando deste modo a ideia de equiparar o nazismo ao comunismo.

Um contributo considerável para a disputa entre as várias interpreta- ções do conflito entre antifascismo e fascismo e, em particular, dos acon- tecimentos associados à guerra civil, proveio do enorme sucesso dos livros do famoso jornalista de esquerda Giampaolo Pansa (2003; 2005; 2006; 2007; 2009). Nestas obras, ele denunciava os «ajustes de contas» logo a se- guir à guerra como parte de um plano comunista para tomar o poder atra- vés de meios à margem da lei. Ao mesmo tempo, a esquerda questionava mais vigorosamente do que antes a ideia de retirar ao fascismo a respon- sabilidade pela perseguição aos judeus: foram recordadas as leis raciais de 1938, negando-se que estas fossem inspiradas – como frequentemente tinha sido afirmado – por um desejo de satisfazer os aliados alemães.

O passado, cuja memória está sempre destinada a desempenhar o papel da variável independente na política doméstica (Wüstenberg e Art 2008), regressou assim à sua posição de tema de disputa cultural com in- sinuações imediatamente políticas, estando a direita a governar numa co- ligação que inclui membros de um partido cujas origens neofascistas de- claradas são questionadas.

Conclusões

As contradições e os condicionalismos segundo os interesses dos par- tidos políticos que marcaram a administração da justiça transicional e,

em seguida, a adoção de uma política do passado na Itália pós-fascismo, não impediram a consolidação da democracia. Apesar de as discussões em torno do fascismo ainda estarem vivas, o legado do regime de Mus- solini foi domesticado e normalizado.

Contudo, as memórias do fascismo cultivadas pelos italianos conti- nuam divididas. Os apelos a uma avaliação partilhada do passado, inces- santemente reavivados por representantes de instituições, são aceites quase unanimemente pelos membros da classe política, mas são ignora- dos pela maioria dos cidadãos (Rusconi 1995). A esquerda radical insiste em afirmar a atual aplicabilidade do antifascismo e utilizou isso frequen- temente contra Berlusconi, que foi acusado de aspirar a ser um novo Mussolini. Muitos eleitores de direita continuaram a sentir-se e a definir- -se como fortemente anticomunistas, ao mesmo tempo que são indul- gentes em relação ao fascismo.

Não obstante, parece não haver sinais, no seio da sociedade italiana, de uma rejeição da democracia ou de qualquer simpatia por um modelo autoritário de regime. Apesar de a popularidade dos partidos políticos se ter reduzido ao mínimo e de se estar a espalhar cada vez mais uma atitude antipolítica na opinião pública, a somar à atração considerável que exercem o estilo e as ideias de atores políticos populistas, as sonda- gens não revelam nenhum aumento de inclinações para apoiar um re- gime autoritário (Morlino e Tarchi 2006; Tarchi 2007) e os indicadores disponíveis levam-nos a concluir que a situação continua a ser mais ou menos a mesma que foi encontrada em três estudos realizados em dé- cadas sucessivas (LaPalombara e Waters 1961; Barnes 1972; Santamaría e Sani 1985).

Estas sondagens mostraram como, em Itália, a imagem do passado autoritário entre a geração mais nova, e na sociedade em geral, se manteve positiva, sem, no entanto, se traduzir num estímulo para adotar atitudes e/ou o comportamento daqueles que cultivam esse passado. Uma ava- liação positiva do fascismo foi acompanhada em décadas passadas por uma preferência pela democracia, demonstrando a presença disseminada entre a população italiana de neodemocratas, isto é, daqueles «que não negam o passado autoritário [...], [que] aceitaram o governo autoritário no passado e [que] agora aceitam um regime democrático» (Morlino e Mattei 1998, 1757). A presença de fascistas nostálgicos que desconfiam do pluralismo foi sempre muito mais limitada e, até hoje, não parece re- presentar uma ameaça concreta para a democracia italiana.

Referências bibliográficas