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Portugal revolucionário: o eclipse da moldura de lei e ordem

Em Portugal, a moldura dos direitos humanos tornou-se dominante a seguir à revolução. Além de dissolver a PIDE, o MFA anunciou uma reorganização futura das polícias, alegando que as forças existentes «não se adequavam à democracia». Primeiro, algumas medidas simbólicas sa- lientaram a quebra com o passado: o Ministério do Interior passou a cha- mar-se Ministério da Administração Interna e os agentes da Polícia rece- beram cravos vermelhos para as manifestações do 1.º de maio. A juntar a isto, a tão odiada unidade antimotim foi desmantelada, não obstante o facto de a sua formação em técnicas de intervenção não letal a tornar muito semelhante às suas congéneres democráticas.

Apesar destas medidas iniciais, a moldura de direitos civis não reco- nhecia as polícias existentes como membros do novo regime democrá- tico. Durante os meses seguintes, todas as vezes que a Polícia utilizou a força, tal foi denunciado como mau procedimento, até pelos membros do Governo Provisório e do MFA. Como resultado, tanto a PSP como a GNR ficaram desmoralizadas e afastaram-se dos conflitos sociais. Os militares tomaram a seu cargo as funções da Polícia dada a inadequação desta, mas, como o seu papel de «libertadores» não era compatível com a «repressão fascista», era frequente recusarem-se a usar a força «contra o povo». Enquanto não havia eleições, as «massas populares» que tinham

sancionado a Revolução dos Cravos tinham-se tornado a fonte principal da legitimidade política do MFA. Por conseguinte, a coerção pública tor- nou-se quase inexistente nos conflitos sociais e esta extraordinária suba- plicação da lei criou uma excelente oportunidade para a radicalização dos protestos sociais (Durán Muñoz 2000; Palacios Cerezales 2003). Ma- nifestações não autorizadas, ocupações de fábricas, de terras e de casas expandiram-se, ao mesmo tempo que as atividades legais dos partidos políticos ficavam vulneráveis a violentas contramanifestações (Hammond 1988; Pinto, P. R. 2008).

Em setembro de 1974, toda a polícia foi colocada sob a supervisão direta das Forças Armadas e, em abril de 1975, foi decretada a unificação da PSP urbana e da GNR rural. As autoridades procuravam também uma redefinição democrática da Polícia, em total harmonia com a moldura de direitos civis: se a nova polícia era para ser democrática, tinha de mudar a sua organização interna, a sua cultura e a forma como lidava com o público. Esta tentativa de redefinição estava igualmente a aconte- cer dentro das Forças Armadas. O MFA apoiava a realização de assem- bleias internas em todas as unidades militares, incluindo a GNR, e aí ofi- ciais, suboficiais e todos os homens deviam discutir a vida da unidade e promover a consciência política dentro da classe militar. Na PSP, houve assembleias de polícias não hierárquicos na maior parte dos distritos e cada assembleia tinha de nomear delegados a uma reunião nacional da Polícia em que se ia discutir a reorganização.

Na primeira assembleia nacional da Polícia, em 11 de junho de 1975, os delegados debateram o saneamento de oficiais «fascistas» da PSP, os «princípios da fusão com a GNR» e a maneira como se podia construir a chamada «aliança das forças de segurança com o povo». Na medida em que as questões que estavam em jogo eram «a destruição do fascismo» e a construção de uma nova sociedade, os que estavam no comando não deviam continuar a exercer as suas funções em virtude da autoridade que lhes era conferida de cima, mas, sim, pelo consentimento dos que ser- viam sob as suas ordens e pela vontade expressada pelas chamadas «mas- sas populares». Os proponentes da moldura de lei e ordem interpretaram essas experiências como um processo de intimidar os oficiais da Polícia, minando a hierarquia e deixando a Polícia nas mãos do Partido Comu- nista (PCP) (Palacios Cerezales 2008).

Foi marcada uma segunda reunião para agosto, mas as circunstâncias políticas estavam a mudar rapidamente e nunca se realizou. Durante o «Verão Quente» de 1975, a maioria conservadora do Norte do país, até aí silenciosa, começou a mobilizar-se sob a liderança da Igreja Católica, que

organizou encontros, peregrinações e manifestações – algumas das quais foram violentas. Liberdade e anticomunismo tornaram-se a bandeira comum para uma ampla coligação política de conservadores, socialistas democratas e antigos salazaristas, enquanto multidões em fúria saquea- vam sedes do PCP no Norte do País. Alguns oficiais da linha dura do MFA pressionaram para uma «forte ação repressiva», a fim de salvar a re- volução das forças «reacionárias» e «terroristas», tentando fazer passar uma interpretação revolucionária da moldura de lei e ordem. Contudo, a maioria dos militares não queria recorrer a tiroteios ou ser associada a repressões violentas e recusou-se a usar a força para controlar a violência popular anticomunista.

Em abril de 1975, as eleições tinham demonstrado que a maioria do eleitorado apoiava políticas moderadas. Quando se tornou nítido que a ala radical do MFA não era capaz de governar sem recorrer à força, ela perdeu o apoio tanto dentro como fora das Forças Armadas e, em setem- bro de 1975, um governo moderado substituiu os radicais. Não obstante, a agitação social continuou espalhada e o Estado ainda sofria de falta de autoridade. Vários membros do Governo foram sitiados nos seus minis- térios por manifestantes irados sem que a polícia interviesse, e até a As- sembleia Constituinte foi mantida sob sequestro durante 36 horas por uma manifestação de trabalhadores. Em todas essas ocasiões, a Polícia estava insegura do apoio político que receberia caso fosse necessário re- correr à força, portanto preferiu não entrar em ação. Contudo, os apoian- tes da moldura de lei e ordem descobriram uma nova base de apoio po- pular e, de setembro a novembro, grandes multidões manifestaram-se por todo o país em apoio ao Governo, entoando: «Ordem, ordem, ordem!» (Palacios Cerezales 2003).

As persistentes disputas sociais e políticas mostravam que a legitimi- dade democrática não era suficiente para assegurar a obediência à lei, por isso o Governo precisava de restituir a confiança às polícias, a fim de res- taurar a sua autoridade. A unificação da GNR e da PSP foi suspensa, a disciplina interna restabelecida e ambas as forças foram providas de armas automáticas – uma decisão que representou a nova confiança política na polícia. Enquanto a moldura de direitos civis tinha sido hegemónica – fazendo «força» significar «fascismo» –, o Governo não tinha conse- guido governar, por isso a necessidade democrática de autoridade tinha de ser enfatizada.

Num episódio muito significativo, que se passou a 1 de janeiro de 1976, a GNR disparou sobre uma manifestação da extrema-esquerda no Porto, matando quatro pessoas. Tanto os jornalistas presentes no local

como o relatório subsequente da Comissão Russell afirmaram que os guardas tinham perdido o controlo e que os disparos não tinham sido necessários; contudo, tanto o Governo como o Conselho da Revolução se colocaram do lado da GNR e responsabilizaram os manifestantes pela violência. A restauração da confiança política na Polícia foi desse modo afirmada explicitamente, incitando o público a respeitar de novo as in- dicações e instruções dos agentes de polícia. Os movimentos populares em breve descobriram que a situação política tinha mudado e as ações radicais coletivas desapareceram, permitindo a Portugal voltar a ser uma sociedade desmobilizada e pouco politizada (Palacios Cerezales 2003).

A Polícia retomou as suas funções habituais. Em março de 1976 apre- sentou a sua nova unidade antimotim, que incluía muitos elementos que tinham pertencido à polícia autoritária. Do ponto de vista da moldura de direitos civis, a restauração da autoridade das polícias significava o re- gresso a algumas práticas do passado. Como declarou um jornal depois das mortes de janeiro de 1976, «eles agora matam em nome da democra- cia, tal como costumavam matar em nome da ordem» (Diário de Lisboa, 2 de janeiro de 1976).

Para a Polícia e os oficiais do Exército que posteriormente vieram a comandá-la, a revolução tinha sido uma experiência traumática: tinham experimentado a desordem e visto a natureza frágil da sua autoridade. O resultado foi o abrandamento do ritmo de reforma das polícias. A crise de Estado tinha resultado num segundo legado para a Polícia portuguesa, uma variante do «duplo legado ímpar de autoritarismo e revolução», que um destacado académico situa no coração da democracia nascente em Portugal (Pinto 2001).